Kaelos cambaleava, mas seus pés cravavam firmemente no solo destruído. Sua armadura deslizava como placas de ferro derretido, revelando carne corroída, músculos pulsando e ossos parcialmente expostos. Cada passo era acompanhado por um som de carne esmagada contra os restos da armadura que ainda resistia, um espetáculo grotesco que parecia desafiar qualquer conceito de vida.
Ele olhou para Iskren, que estava ajoelhado, esparramado em meio à própria escuridão. O corpo dele era um mosaico de abominações — partes líquidas, sólidas, e fragmentos de osso que flutuavam desconexos. Iskren ainda estava inteiro, mas não invencível. Seus múltiplos olhos, agora opacos e dispersos, encontraram Kaelos, e por um instante, o silêncio reinou.
"Você realmente se tornou isso?" A voz de Iskren ecoava como um trovão abafado, carregada de uma tristeza inesperada. "Um deus caído rastejando entre ossos e destroços... Nunca pensei que viveria para ver algo assim."
Kaelos riu, um som áspero, arranhado, como metal sendo rasgado. "Não me coloque entre vocês, Iskren. Nunca fui um de vocês. Nunca fui uma ferramenta para o equilíbrio nem para o caos." Ele avançou, um pé arrastando no chão quebrado, cada movimento acompanhado por pedaços de sua carne caindo. "Eu era o único que ousava pensar além do ciclo... Por isso me traíram. Por isso me usaram."
Iskren suspirou, ou talvez fosse apenas um som escapando de suas formas desiguais. "Você não entende. Não entende nada. Nós não traímos você porque quisemos. Foi porque precisávamos. Você era perigoso demais para esse mundo."
Kaelos parou a poucos metros, sua espada negra, agora pulsando com fragmentos da luz de Elys, em sua mão deformada. Ele inclinou a cabeça, seus olhos vazios encarando Iskren. "Perigoso? Não... Eu era livre. Algo que você e os outros deuses nunca foram. Vocês precisavam de correntes para me conter, e ainda assim, aqui estou eu."
Iskren tentou se erguer, mas suas pernas, ou o que restava delas, não responderam. Ele estendeu um dos braços amorfos, como se quisesse tocar Kaelos. "Eu lembro... Lembro do que éramos antes. Quando ainda havia harmonia entre nós. Antes de tudo desmoronar. Antes de você escolher... isso."
"Você lembra porque nunca foi forte o suficiente para esquecer," Kaelos respondeu friamente, sua voz cortando como uma lâmina. Ele ergueu a espada, a ponta cintilando com um brilho que parecia antinatural, uma fusão de luz e trevas. "Eu não me lembro porque não importa. Você só é memória. Uma barata rastejando entre ruínas."
Iskren tentou falar, mas Kaelos já havia avançado. A espada cortou o ar com um som agudo, um grito metálico que parecia rasgar a própria realidade. Quando ela atravessou Iskren, a escuridão ao redor do deus se retorceu violentamente, como se o próprio universo estivesse vomitando sua existência. O corpo de Iskren desmoronou, uma mistura de líquidos viscosos, fragmentos de ossos, e resquícios de poder que se dissiparam no ar em um lamento silencioso.
Kaelos, agora de joelhos, fincou a espada no chão. Ele olhou para o vazio onde Iskren estivera, sem expressão, sem emoção. Apenas um leve murmúrio escapou de seus lábios rachados.
"Mais um para cair. Mais um passo para o fim."
E, então, o silêncio retornou, quebrado apenas pelo som da carne de Kaelos queimando contra os destroços ainda quentes da batalha.
Kaelos ficou de pé enquanto a espada, fincada no chão, pulsava com um brilho sombrio, quase como o último suspiro de Iskren ainda tentando se rebelar. Sua armadura, outrora uma extensão do próprio caos, começou a rachar, emitindo sons de metal estalando sob uma pressão invisível. As rachaduras se espalhavam como teias de aranha, expondo carne negra, vermelha e retorcida por baixo.
*CLANG.* Um pedaço do ombro caiu, revelando músculos que pareciam pulsar independentemente do corpo, como se vivos por conta própria. O peito da armadura cedeu, fragmentos estilhaçando-se ao tocar o chão. Debaixo, os ossos do tórax estavam cobertos por veias grotescas que serpenteavam como parasitas, algumas se movendo sutilmente, como se fossem tentáculos internos tentando escapar.
Seus braços foram os próximos. Quando os fragmentos de metal deslizaram para longe, seus dedos deformados se revelaram, com unhas longas e rachadas que pareciam garras, enquanto as juntas estavam cobertas por protuberâncias ósseas que furavam a pele como espinhos. O braço direito, maior que o esquerdo, parecia dobrar em ângulos errados, mas ainda mantinha uma força desumana.
O rosto foi o último. O elmo caiu com um estrondo seco, expondo uma cabeça parcialmente coberta por carne e cicatrizes abertas. Um lado do rosto parecia ter derretido, a pele pendendo como cera em uma vela deformada. O outro era esquelético, com a mandíbula exposta e dentes irregulares como lâminas embutidas em carne apodrecida. O olho esquerdo estava fechado, lacrado por cicatrizes, enquanto o direito brilhava com uma intensidade negra que parecia devorar a luz ao seu redor.
Enquanto o corpo de Kaelos tentava se regenerar, carne nova começava a crescer sobre as feridas, mas não de forma natural. Tecidos brotavam em espirais grotescas, como galhos retorcidos de uma árvore morta, conectando pedaços que não deveriam estar juntos. Ossos estalavam enquanto eram realinhados, mas muitos permaneciam fora do lugar, criando uma silhueta que, embora ainda humanóide, era distorcida. A coluna vertebral, visível por um rasgo nas costas, parecia pulsar como se tivesse sua própria vida, e protuberâncias ósseas se formavam ao longo dela, como espinhos de uma criatura abissal.
Ele olhou para as próprias mãos, agora sem a armadura. Por um momento, algo parecido com um sorriso deformado surgiu no rosto esquelético. Sua voz veio rouca, mas ainda carregava o peso de sua própria existência:
"Regenerar... Não é voltar a ser inteiro. É apenas manter-se de pé."
Com o último fragmento de metal caindo ao chão, Kaelos deu um passo à frente, a pele recém-regenerada esticando e rasgando, enquanto ele aceitava, sem medo, o grotesco espetáculo de sua própria sobrevivência.
Kaelos desapareceu do campo de batalha, reaparecendo no interior de uma caverna úmida e escura, onde as sombras dançavam ao som do silêncio. A espada ainda estava em sua mão, pulsando com um brilho irregular, como um coração faminto. Ele a olhou, desgastado. Havia poder ali, mas também um lembrete incômodo da garota. Elys.
Ele caminhou até o fundo da caverna, onde começou a moldar um altar improvisado com magia. Rochas se erguiam e colidiam, criando uma estrutura grotesca que parecia pulsar com a energia da própria escuridão. Kaelos ergueu a espada com esforço, fincando-a no centro do altar. Runas vermelhas e vibrantes se espalharam pelo chão, iluminando o ambiente com um brilho macabro.
Assim que o metal da lâmina tocou o altar, a espada tremeu, como se resistisse à contenção. E então, a voz de Elys invadiu sua mente.
"Você acha que pode me selar?"
Kaelos não respondeu de imediato. Ele apenas apertou os punhos, sentindo o sangue escorrer de sua mão ferida enquanto as runas sugavam parte de sua essência para alimentar o selo.
"Você está morta," ele murmurou, sua voz fria, quase desinteressada. "Aceite isso."
"Não é tão simples assim." A voz de Elys era calma, mas carregada de um peso profundo, quase provocativo. "Você prendeu minha luz, mas não pode apagá-la. Eu estou aqui, Kaelos, e nunca vou embora."
"Se isso é uma tentativa de quebrar minha sanidade, vai precisar se esforçar mais." Ele virou-se, olhando o altar agora envolto em uma aura tênue, como se a espada pulsasse em desafio. "Já passei por coisas piores."
A voz de Elys riu, um som fraco, mas cortante. "Você se engana. Não sou apenas uma lembrança. Eu sou parte de você agora, uma sombra dentro da escuridão que tanto idolatra."
Kaelos fez uma pausa, sua mandíbula se contraindo. "Você fala demais."
"Eu sou apenas o começo."
Ele deixou a caverna sem olhar para trás, ignorando as provocações. O ar gélido da noite tocou sua carne desgastada, enquanto ele se forçava a andar. Cada passo era uma lembrança da ruína que havia sofrido.
Seu próximo destino era claro. O Rei dos Porcos.
Uma criatura grotesca e abominável, o Rei dos Porcos, Gorath havia roubado não apenas o corpo físico de Kaelos, mas parte de sua identidade. Um deus degenerado, ele governava seu covil como um glutão insaciável, cercado por servos deformados e banquetes de carne humana.
Kaelos murmurou para si mesmo, sem qualquer emoção, como se fosse uma constatação inevitável. "Chegou a hora."