Havia algo de mágico em olhar o pôr do sol da montanha mais alta da cidade, que eu particularmente não compreendia.
Eu amava muito sentir a brisa fresca do outono recente da cidade, que era bem diferente do calor escaldante no verão. Também não se comparava ao tempo incerto do inverno. Somente a primavera ultrapassava com a beleza das flores, árvores e frutos que eu não cansava de admirar em toda sua glória e majestosidade.
Morávamos mamãe e eu, desde que...
Desde que o homem que me colocou no mundo decidiu que não éramos boas o suficiente para ele.
Que belo engano por parte dele!
Ele não era bom o suficiente nem pra ele mesmo. Só para a nova família dele.
Agora o homem mora do outro lado do país com sua mulher e os "filhos" dela. Pelo que soube eles moram numa espécie de comunidade esquisita, típica de um filme de terror de canibais. Acredito que sem a parte dos canibais. Eu espero.
Nesse exato momento são 7:51 da noite de uma sexta feira. O dia foi corrido, mas eu consegui acalmar um pouco para conseguir vê o pôr do sol.
Mamãe é o que eu tenho de mais próximo de uma família estável, embora ela me olhe com um certo desprezo. Acredito que seja porque eu a lembro "dele".
Já não lembro exatamente de como ele seja, pois faz anos desde que o vi pela última vez. Porém, eu sei que tenho os olhos dele, castanhos escuros na luz normal e castanhos mel contra a luz.
Desde que me entendo como gente, sei bem que não somos uma "família convencional" e respeitável. Tudo piora quando só eu sei que ela não gosta de mim.
Durante muitos anos fiquei triste, deprimida e até revoltada com isso. Hoje, no entanto, acho engraçado que ela me deteste por eu lembrar o cara que ela mais amou na vida.
Será que isso vai acontecer comigo também? Se sim, meu filho não irá sentir o mesmo que eu sinto agora.
O completo desprezo da pessoa mais importante da minha vida.
Eis a questão, como se um dia eu pudesse ter um filho. É muito mais fácil virar freira ou a velha estranha da rua cheia de gatos. Não que eu seja lésbica, não sou. Só que, GAROTOS. Garotos é um tópico sensível para mim.
Na maioria das vezes eles mantém distância, mesmo que eu mostra-se interesse em algum. Essa semana vou começar as aulas na droga da escola nova.
Ensino médio! Ebaaa! Não estou exatamente empolgada com essa coisa nova acontecendo. Escola nova, "amigos" novos, pessoal novo, tudo novo. Eu falo isso como se tivesse amigos na escola antiga.
Não me entenda mal, eu não sofria ataques, ou algo do tipo, só era calada e na minha demais para socializar com as outras meninas, ou feminina demais para estar inserida no grupo dos meninos.
-Talia! - minha mãe me chama da porta do quarto dela e eu chego mais rápido do que você possa contar até cinco.
-Sim? - pergunto assim que estou no campo de visão dela.
-Pega, compra essas coisas da lista, não esquece de nada.
Pego o pedaço de papel contendo os nomes e o cartão de débito da mão dela. Folheando as linhas, vejo itens comuns de casa. Repito mentalmente para me manter ocupada e não pensar em como estou tensa com a escola nova. Sabão, desinfetante, esponja, batata e tomate. Assim que chego no pequeno mercado, escolho todos e coloco na certinha, pago e vou para casa. Que fica uma rua abaixo.
A batata e o tomate serão para o jantar. Após comer lavo a louça e escovo o dente. Agora estou na cama deitada com meu pijama.
Espero ter uma boa noite de sono. Diferente de muitas.
A semana correu rápido, como um cavalo galopando um vasto pasto. As aulas começaram e eu tive alguns pequenos problemas aqui e ali. Não acredito que estar na minha não está mais funcionando.
Uma galera irritante de umas meninas e uns meninos tão inteligentes quanto uma pedra, todos populares. Por que as pessoas com menos massa cinzenta são feitas de deuses? A espécie humana é realmente uma piada.
-Oi, Talita - uma menina com cara de que espremeu um limão inteiro na boca logo cedo, fala ao se aproximar de mim, durante o intervalo na mesa do refeitório.
-Meu nome não é Talita, é Talia - corrijo seu erro calmamente, meu extinto me diz que ela errou de propósito, pois está na mesma sala que eu
-Tanto faz. Soube que você está de olho no meu namorado, eu só quero avisar pra ficar longe dele, entendeu?
A menina que parece ter uns 20 anos ou mais por causa da espessa camada de maquiagem fala como se não fosse uma menina da minha idade. Ela não tem pais? Ou senso? Ou noção? Acho que a resposta pra maioria dessas perguntas é um sonoro NÃO.
-Eu não sei quem é seu namorado, e se soubesse não se preocupe, ele não saberia quem sou eu.
-Ah, eu sei disso. Meu Dani não me trocaria por uma coisinha igual você, eu só estou avisando. Se sinta avisada, entendeu fofinha?! - Como é possível uma menina tão nova ter tanto deboche e ser tão odiavel? Senti vontade de revirar meus olhos, mas Deus me segurou no chão
-Ok - foi tudo que disse para a garota mais irritante que conheci até hoje.
O resto do dia ocorreu normalmente como deveria ter sido desde a manhã, sem garotas chatas e garotos sem cérebro me perturbando. Ao final das aulas vi a garota miss simpatia com o tal Dani dela saindo da escola.
Mantive o bom senso de manter distância deles. Não estou me escondendo, nem com medo, só mantendo os problemas longe o suficiente para não me verem.
Acordar, me arrumar para a escola, passar o dia naquele hospício de crianças, voltar para casa, fazer meu almoço e limpar a casa, vê o pôr do sol no final da tarde, fazer alguma lição de casa, jantar, dormir, e fazer tudo igual no dia seguinte. Ou quase igual. Meus dias eram iguais.
Nada de especial, excepcional ou extravagante. As vezes pareço um android, não me vejo nada parecida com as outras "crianças". Nem vejo a Marina como as outras mães. Somos duas estranhas morando juntas.