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Eu e a Evlyn

Atanasio_Derek
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Synopsis
Em uma zona marginalizada, um garoto após ser libertado dos maus-tratos que sofreu, culminando no trágico assassinato de sua mãe. Agora, ele se vê em uma situação desesperadora: precisa encontrar maneiras de levar sua irmã para a cidade central, em busca de uma vida melhor e mais segura.
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Chapter 1 - Parte sul da zona 0X

Yo!! Mais uma vez eu estava no jardim da casa, aproveitando o luar. Na verdade, eu fui obrigado a aproveitar, porque, na minha vida, momentos de paz são raros como um eclipse solar. Eu vivo com minha irmãzinha Evlyn de 6 anos e minha mãe, que parece ter um ódio especial por mim, como se eu fosse a causa de todos os problemas do mundo.

Tenho 11 anos, e é super normal eu levar uma surra da minha mãe, ficar sem refeições ou enfrentar outras "surpresas" do dia a dia. Nunca conheci meu pai; só tive um padrasto, que é o pai da Evlyn. O cara até era legal e tinha grana, mas depois de algumas brigas, eles se separaram. Desde então, toda a frustração e estresse da minha mãe parecem recair sobre mim, como se eu fosse o saco de pancadas oficial da casa.

Paz e tranquilidade? Isso é tão raro para mim que eu poderia vender ingressos para quem quisesse ver! A única que parece ter a vida perfeita é a Evlyn, pelo menos ela vive bem e não leva as consequências das brigas. E eu, por outro lado, fico feliz por ela, mesmo que isso me faça parecer um personagem de filme de comédia trágica.

Mas pelo menos, durante essas férias de verão, quando não vou à escola, já não sou a vítima das surpresas dolorosas por chegar tarde em casa. É um pequeno consolo, mas quem diria que eu ficaria feliz por não receber uma surra por alguns dias.

 Uma vez, cheguei atrasado da escola porque fiquei brincando com os colegas. Era raro ter um momento de leveza, e, por um instante, esqueci das responsabilidades e da pressão em casa. O sol já estava se escondendo quando finalmente entrei na rua onde morávamos, e foi aí que a vi: minha mãe, parada na porta, com uma vara de bambu na mão.

Meu coração afundou. Já sabia o que ia rolar, mas tentei manter a calma enquanto me aproximava. O primeiro golpe veio rápido, queimando a pele e me lembrando que as consequências eram inevitáveis. Doía, mas o que mais me machucava era perceber que ela não se importava com quem estava assistindo.

As crianças que brincavam na rua pararam para olhar. Alguns adultos, voltando do trabalho, hesitaram e ficaram ali, assistindo. Não tinha como escapar daquela situação, e o silêncio ao redor só tornava tudo mais pesado. Cada tentativa de me afastar era frustrada pela força dela, que me segurava firme pelo braço.

Acabei ajoelhado no chão de terra, as pedras cravando-se nos meus joelhos enquanto os golpes continuavam, cada um mais forte que o anterior. As lágrimas vieram, não só pela dor, mas pela humilhação que ardia como uma ferida aberta. O chão parecia um refúgio, mas também testemunhava minha vergonha.

Algumas crianças riam, tentando se segurar para não chamar atenção. Outras desviavam o olhar, fingindo que não viam. Os adultos continuaram parados, como se fossem parte de um cenário que não queriam perturbar. Ninguém apareceu para ajudar.

Quando tudo finalmente acabou, entrei em casa e me tranquei no quarto. O corpo latejava, mas era a vergonha que doía mais. 

E esse nem foi o pior de todos ainda me lembro de um dia em que, por curiosidade, toquei uma roupa que estava no cesto de lavanderia. Era só uma peça qualquer, mas para minha mãe, parecia que eu tinha cometido um crime. Antes que eu percebesse, ela surgiu na porta como uma tempestade.

Ela agarrou meu cabelo com força, e a dor me fez gritar, mas isso não a deteve. Me arrastou pelo chão até o quintal, ignorando os soluços da minha irmã, que chorava em algum canto da casa. Quando chegamos lá, mandou que eu ficasse de joelhos no chão cheio de pedregulhos. Tentei hesitar, mas o olhar dela e a vara na mão não me deixaram escolha. Me ajoelhei, sentindo as pedras afiadas.

Os golpes começaram logo em seguida. A dor nas costas era insuportável, mas eu sabia que gritar só ia piorar tudo. Mordi os lábios com força, tentando segurar as lágrimas, mas cada impacto parecia arrancar um pedaço de mim. As palavras dela, cheias de desprezo, ecoavam na minha mente como um julgamento eterno.

Quando tudo terminou, fiquei ali por um tempo, parado, com os joelhos latejando e as costas ardendo como se tivessem sido queimadas. Ela ficou de pé por um momento, observando, ainda com a vara na mão, como se aquilo fosse um lembrete de quem mandava. Só depois de um tempo, ela se afastou, deixando um silêncio pesado.

Naquela noite, não consegui deitar na cama. A dor era tão intensa que cada movimento parecia um castigo a mais. Me sentei no chão frio do quarto, abraçando os joelhos e tentando encontrar algum conforto. No meio da madrugada, minha irmã apareceu, silenciosa. Ela colocou a cabeça no meu ombro e ficou ali, sem dizer nada. Foi o único gesto de carinho que me fez suportar aquela noite, levou bom tempo pra as feridas se curarem. 

Mais antes delas curarem nao podia existir mais caos, e desta vez foi tudo por causa de um copo. Só um copo. Eu estava lavando a louça, tentando fazer tudo certo, mas minhas mãos estavam molhadas e o vidro escorregou. O som do copo quebrando no chão ecoou pela cozinha, e naquele momento, tudo pareceu parar. Eu já sabia o que ia acontecer.

Ela entrou na cozinha como uma sombra cheia de raiva, com os olhos fixos em mim, me condenando antes mesmo de falar. Em poucos segundos, fui puxado para fora dali. A punição veio rápido: três dias sem jantar. Não teve espaço para desculpas ou explicações. Era só a decisão dela.

O primeiro dia foi o mais difícil. Enquanto o cheiro da comida invadia a casa, eu estava no quarto, encolhido no canto, tentando ignorar a fome. O som de talheres, pratos, conversas e risadas... Cada barulhinho era uma lembrança dolorosa de que eu estava de fora. O vazio no estômago parecia crescer a cada hora, quase insuportável.

No segundo dia, a fome me levou ao limite. Esperei até que todos estivessem distraídos e fui até o lixo. Vasculhei com cuidado, desesperado, e encontrei um pedaço de pão. Mesmo velho e sujo, parecia um prêmio, algo que poderia aliviar meu tormento. Mas o alívio durou pouco. Antes que eu pudesse morder, senti a presença dela atrás de mim. Ela tirou o pão da minha mão, jogou no chão e esmagou com o pé. Qualquer chance de saciar a fome foi destruída ali.

Mesmo assim, com lágrimas escorrendo, me ajoelhei e peguei os restos. Limpei o máximo que consegui antes de colocar na boca. O sabor da humilhação era mais forte que o do pão, mas não tinha escolha.

Naquela noite, já no terceiro dia, minha irmã apareceu no quarto. Ela trouxe um pedaço de pão que tinha escondido da janta. Silenciosa, colocou nas minhas mãos. Vi nos olhos dela o peso do medo e da tristeza. Não precisava dizer nada; seu gesto dizia tudo. Peguei o pão com cuidado, como se fosse um tesouro. Não era só comida. Era a prova de que, mesmo no meio da dor, ainda havia um pouco de humanidade.

E o meu natal do ano passado foi maravilhoso,ja era inverno, e o frio fazia a casa parecer uma caverna gelada. Eu esqueci de fechar uma janela na sala, um erro pequeno, mas que minha mãe transformou em algo imperdoável. Quando ela percebeu, a fúria dela foi imediata.

Ela me empurrou até a porta da casa, ignorando meus pedidos para parar. Disse que, já que eu parecia gostar tanto de frio, aprenderia o que era sentir na pele. A porta se fechou com um estrondo atrás de mim, e o som do trinco sendo girado foi como um veredito.

Eu estava do lado de fora, vestido só com uma camiseta fina e calças leves, enfrentando o vento gelado que parecia cortar como lâminas. Tentei bater na porta, pedir para entrar, mas ela não respondeu. O frio começou a dominar meu corpo. Me encolhi junto à parede, abraçando os joelhos para tentar conservar o pouco calor que me restava. O chão de concreto roubava minha força, e o ar gelado machucava meus pulmões.

O tempo parecia parado. Cada minuto era uma tortura, uma eternidade de tremores e dor. Olhava para as janelas, esperando que ela reconsiderasse, que sentisse pena. Mas as luzes da casa estavam apagadas, como se ela tivesse decidido esquecer minha existência por algumas horas.

Minhas mãos ficaram dormentes, e os ossos doíam de forma insuportável. O frio não era só físico; ele trazia uma sensação de rejeição, uma solidão esmagadora.

Finalmente, já de madrugada, ouvi o som da fechadura girando. A porta se abriu, e minha mãe estava ali, sem qualquer traço de arrependimento. Perguntou se eu havia aprendido a lição. Balancei a cabeça, sem forças para responder. Meus dentes batiam tanto que eu não conseguia formar palavras.

Ela me deixou entrar, mas o calor da casa parecia quase cruel, como se zombasse da minha vulnerabilidade. Fui direto para o meu quarto, me joguei na cama e me encolhi debaixo do cobertor, tentando afastar o frio que ainda me envolvia.

Embora as lembranças fossem dolorosas, pelo menos tenho memórias. Recentemente, minha mãe começou a sair mais para beber. As noites se tornaram uma sequência de festas que sempre terminavam com ela trazendo algum cara para casa. Não sei se isso é uma boa ideia. Ela parece achar que esses homens preenchem algo que está faltando, mas para mim, eles só trazem desconforto. Evlyn, com sua ingenuidade de criança, fica toda animada com os presentinhos que eles trazem — uma boneca aqui, um doce ali. Ela não entende o que realmente está acontecendo. E eu? Bem, estou aqui, passando mais uma noite ao relento, sem jantar e sem lugar para dormir. Parece que o jardim será minha cama de novo. Pelo menos hoje não está nevando como em outras noites.

Enquanto as risadas e a música lá dentro diminuíam, a casa começava a mergulhar no silêncio da madrugada. As luzes iam se apagando uma a uma, e eu me ajeitei no chão frio, procurando o canto menos desconfortável possível. O cheiro úmido da terra misturado ao ar gelado da noite fazia meus ossos doerem antes mesmo de eu fechar os olhos. Tentei me convencer de que a noite seria curta, mas a fome no estômago e o peso das minhas preocupações tornavam cada minuto uma eternidade para passar a noite e suportar os maus-tratos da minha mãe no dia seguinte.

De repente, um grito desesperado cortou o silêncio. Era a voz da minha mãe. Nunca a tinha ouvido gritar assim. Levantei num pulo, tentando entender o que estava acontecendo. Os gritos eram entrecortados por sons de coisas quebrando — vidro, madeira, não dava para ter certeza. Mas o pânico na voz dela era claro.

— Socorro! Socorro! Alguém me ajude!

As palavras dela carregavam um medo que eu nunca tinha escutado antes. Meu instinto foi correr até a porta. Tentei girar a maçaneta, mas, como sempre, estava trancada. Forcei o corpo contra a madeira, mas minhas forças eram inúteis. Eu era só um garoto magricela, e a porta parecia zombar da minha fraqueza.

Foi então que ouvi um som abafado, algo pequeno, quase imperceptível no meio de tanto caos: um chorinho suave. Era Evlyn. Minhas pernas tremiam enquanto me afastava da porta e corria até a janela. Tentei espiar lá dentro, mas o vidro estava sujo e embaçado. Além disso, estava tudo escuro.

— Por favor, por favor — ouvi minha mãe implorar lá dentro. Sua voz soava fraca, desesperada. O som de algo pesado caindo no chão ecoou logo em seguida, e meu coração se apertou.

— Mamãe! — gritei, socando a janela com todas as minhas forças. Lágrimas escorriam pelo meu rosto, mas não conseguiam aliviar a dor e o medo que queimavam dentro de mim.

Os gritos ficaram mais baixos, quase como se fossem engolidos pelo silêncio. Ouvi sua voz uma última vez:

— Socorro! Socor...

E então, nada. Nenhum som de briga, nenhuma palavra dela. O silêncio era ainda mais aterrorizante do que os gritos. Tudo que sobrou foi o choro baixo de Evlyn.

Fiquei parado ali, com a mão ainda pressionada contra o vidro frio da janela, o coração martelando no peito. Algo estava muito errado, mas eu não sabia o que fazer. O que poderia fazer? Eu era só um garoto preso do lado de fora, incapaz de proteger minha irmã ou entender o que tinha acabado de acontecer.

Voltei para a porta com um vaso de argila pesado nas mãos, minha mente dividida entre medo e determinação. Não tinha outro plano; a única ideia que me restava era quebrar a porta para entrar. O vaso tremia nas minhas mãos, mas antes que eu pudesse começar o ato de vandalismo, a porta se abriu com um estrondo, quase me fazendo cair para trás.

Na soleira, surgiu o homem que minha mãe tinha trazido. Ele estava sem camisa, apenas de calça, e segurava uma faca com o gume manchado de sangue fresco, gotejando em trilhas irregulares pelo chão. Por um momento, tudo ao meu redor pareceu parar. O olhar dele, frio e vazio, encontrou o meu. Ele não disse nada, mas seus olhos me perfuravam, ameaçadores, como se a qualquer momento pudesse me transformar na próxima vítima.

Eu congelei de medo, com o vaso na mão. O cara me encarava como se fosse me atacar. Ele começou a caminhar em minha direção, e eu fui me afastando, tentando dar distância. Então, ele largou a faca e saiu correndo na direção oposta. Literalmente fugindo. Eu não sabia o que ele tinha feito, mas a faca e o sangue falavam por si só. Eu não podia deixá-lo fugir assim, mesmo sem conhecê-lo.

— E-ei, v-você! Espere! — minha voz tremia de medo, e isso era inegável. O cara nem parou, nem me deu tempo de reagir. Ele simplesmente fugiu, pulou a cerca e desapareceu.

Fiquei um pouco aliviado por ele não ter me feito nada. Mas não era isso que me incomodava. A minha irmã ainda estava chorando, e eu queria acreditar que estava tudo bem.

Tudo foi tão rápido que nem deu pra entender direito. Era medo? A resposta eu não sabia, porque, perto de ser psicólogo, eu estava longe disso. 

Entrei na casa, hesitando a cada passo, com o cheiro metálico de sangue invadindo minhas narinas. Era impossível não notar a cena diante de mim. Minha mãe estava caída no chão da sala, imóvel, cercada por uma poça de sangue que parecia se expandir lentamente, engolindo o espaço ao redor. Ao lado dela, Evlyn estava sentada, abraçando os próprios joelhos, soluçando sem parar.

Eu não sabia se era pra chorar junto com a Evlyn ou ficar feliz, afinal, fui liberto dos maus tratos . Mas parecia que não era só isso; havia algo que me colocava pra baixo naquela situação. Minha mãe morta? Nunca pensei que isso aconteceria. Então, acho que posso ficar triste por isso. Ou pela minha irmã, que perdeu a pessoa que mais lhe dava amor desde a infância.

Me ajoelhei ao lado dela, tentando encontrar qualquer sinal de vida. Coloquei dois dedos em seu pescoço, mas não senti nada. Nenhuma respiração, nenhum pulsar. Estava acabado.

— M-mano, por que a mamãe não levanta? Ela está bem, não está? — Evlyn perguntou, com os olhos cheios de lágrimas fixos em mim, buscando uma resposta que eu não tinha.

As perguntas dela, embora leves, me deixaram sem palavras. Coloquei a mão na cabeça dela, tentando acalmá-la.

— A mamãe, ela... hhaa — meu suspiro saiu mais pesado do que eu podia imaginar. Eu não sabia o que falar, mas precisava dizer algo. Talvez mentir dizendo algo como "a mamãe viajou" ou "foi comprar pão", mas isso não funcionaria com um corpo na frente dela, coberto de sangue.

— Evlyn, a mamãe... — comecei, mas minha voz falhou. Engoli em seco e respirei fundo, tentando manter a calma. — Ela... morreu, Evlyn.

— N-não! Não, não, não! — Evlyn gritou, sacudindo a cabeça, recusando-se a acreditar. — Isso não pode ser verdade! Ela vai acordar! Ela vai!

— Eu também queria isso, Evlyn... — falei, sentindo minhas próprias lágrimas caírem. — Mas ela não vai voltar.

Ela se jogou nos meus braços, chorando com força, soluçando tanto que mal conseguia respirar. Segurei-a com firmeza, como se o simples ato de abraçá-la pudesse protegê-la do horror daquela noite.

O silêncio voltou a reinar na casa, interrompido apenas pelos soluços de Evlyn e pelo som do meu próprio coração acelerado. A dor era insuportável, mas precisava ser engolida. Minha irmã precisava de mim agora, e eu não tinha ideia de como começar a cuidar dela.

A realidade estava diante de mim, crua e inescapável. Minha mãe estava morta, e o mundo que eu conhecia havia acabado de desmoronar. O que faríamos agora?