Quando não esbarravam nas paredes, sem reboco, se arranhando no cimento áspero, eram os tiros que ricocheteavam, levantando minúsculas nuvens de poeira, passando zunindo por eles. Avistaram uma pequena construção em ruínas, num terreno baldio, uma mureta que serviria de proteção. Provavelmente, ambos pensaram nisso instintivamente, já que não disseram nada, mas corriam para ela, até um deles sucumbir, alvejado.
Os tiros não cessavam. O rapaz, já seguro atrás do muro, agiu por impulso e puxou o companheiro ferido para junto de si, abrigando-o atrás da barricada improvisada
— Tomei um tiro, porra! — disse, rindo.
A risada soava estranha, deslocada naquele caos. O som dos disparos foram abafados pelo absurdo.
— E isso é motivo de graça? — estranhou a risada, que não parecia irônica.
— Em que circunstância você ouviria uma frase dessas? Num livro?
Esse instante entre a pergunta e a resposta foi maior que o ruído ao redor, deixando o questionamento de molho, suspenso no ar.
— Talvez seja por isso que você é o escritor aqui e eu, o leitor. No meu caso, não pensaria com tanto orgulho em dizer isso. Melhor ouvir ou, de preferência, ler... mas caso escrevesse a frase, seria só "tomei um tiro" ou o "porra" também estaria escrito?
— Não sei. Quando disse, disse só o que passou na cabeça... pensando bem, acho que o "porra" deixa a frase mais interessante.
Assim que ouviu a resposta, sentiu um forte cheiro de ferrugem, por puxá-lo, estava manchado de sangue. Observou parado, suas mãos vermelhas.
— Caralho, parceiro! Você tá me sujando todo de sangue. Isso aí tá sangrando demais. Não quero pegar doença nenhuma, não.
— Vai me dizer que você é hipocondríaco?
— Hipo-o-quê? — perguntou realmente interessado enquanto baixava a cabeça, por reflexo, como se fosse desviar das balas
— Hipocondríaco, cara, quem tem medo de doenças...
O estardalhaço parecia se afastar enquanto ele explicava. Como se o tempo parasse.
— Ué! Todo mundo tem medo de doença.
— Não, rapaz. É um medo mais voltado paro o pânico, menos racional. Tipo agora, ao invés de você pensar que estou morrendo, tô aqui te explicando semântica, porque tá com medo que eu tenha alguma doença e vá te infectar.
Por alguns segundos, se olharam como se reparassem no diálogo surreal daquele momento.
— Ah! sim... era só dizer isso. Não precisava bancar o escritor dizendo palavras difíceis. Sei lá que peste é semântica!
Após ouvir a réplica do rapaz, fechou os olhos, respirando fundo, como se sentisse um pouco de prazer naquela dor.
— Cara, tô perdendo muito sangue. Há quanto tempo o tiroteio começou?
O outro olhou para o chão, como se procurasse uma resposta, ou tentando recordar algo que pudesse ajudar a contar o tempo.
— Rapaz, eu nem sei, viu... é que nem um borrão. Quando eu vi... o bicho já tinha pegado...
Ele desistiu de continuar sua análise da situação ao ver o escritor rindo.
— Do que você tá rindo agora?
— Estou morrendo, ó... — disse, mostrando a ferida aberta, rubra e brilhante. — Vê esta poça? É meu fim que escorre, lento e inevitável. Hei de me esvair assim, caudaloso e sereno, como um rio, um bardo que já não canta, condenado à morte.
O riso, mais fraco desta vez, soou como um sussurro, deixando-o ainda mais nervoso e irritado.
— Essa porra ainda não tem graça! Você ainda não percebeu isso?!
— Não sei... sei lá. Isso pouco importa. Se estou condenado, ao menos me permita rir do absurdo, melhor que lamentar o acaso — murmurou, enquanto fazia uma careta de dor e se acomodava numa posição mais confortável. Fez uma pausa, os olhos semicerrados, antes de concluir — Ô, falta de sorte... caralho, eu só queria um Carlton.
— Ei, ei... Você tá fechando os olhos. Conversa comigo. Já vi isso em filmes: se a gente distrair a pessoa, ela esquece que tá morrendo e dá tempo de chegar ao hospital. — disse, sacudindo-o para evitar que ele perdesse a consciência.
Por um momento, o silêncio pareceu mais ensurdecedor que os estampidos...
— Doeu? Dói muito?
— Claro, né, filho da puta! Olha só esse buraco!
— Tô tentando puxar assunto, pra você não apagar...
O moribundo tentou rir, mas tossiu. Sangue escorreu pela lateral da boca.
— Certo... tudo bem. Ai... Dói, mas, para ser honesto, nem tanto quanto supõe. Isso aqui é só o estrago de uma bala. Quando minha ex terminou comigo por mensagem e sumiu sem explicações, aquilo, sim, doeu. A rejeição foi lancinante e, curiosamente, mais apavorante também. — Sua risada escapou, como a de uma criança que acabou de contar uma piada interna entre seus colegas.
— Velho, abre os olhos. Morre não...
A voz saiu trêmula. Quase em súplica. Ele o segurava quase contra o peito, sacudindo levemente, tentando mantê-lo consciente e, no fundo, sabendo que nada mais adiantaria.
— Cara, qualquer coisa, diz que eu disse uma frase inteligente ou uma palavra impactante... manda colocarem algo legal na minha lápide. Eu tinha até umas frases boas para isso. Mas duvido que você vá lembrar de alguma. — disse, olhando o rosto turvo do espectador de sua morte.
— Tipo hipocondríaco?
O escritor abriu os olhos, tentando enxergá-lo com mais nitidez, e, com um olhar de quem caçoava da situação, deu um breve sorriso.
— Não, por favor. Essa parte você pula.
Terminou morrendo.
Houve uma serenidade fúnebre apesar de tudo, mesmo diante dos gritos. A morte parecia soar mais alto que qualquer um dos projéteis. Ele olhou para o corpo, ensopado, e engoliu a realidade.
— Então você quer nos convencer que não se conheciam? — perguntou o policial, mais tarde, enquanto o interrogava.
O ambiente da delegacia lembrava aqueles de filmes vagabundos ou das novelas do SBT: sujo, frio, sufocante e sem cor. O ventilador girava meio fora do eixo, fazendo pequenos barulhos, deixando uma leve impressão de que a qualquer momento fosse cair. Olhava para tudo: das paredes brancas já amareladas às manchas de umidade no teto, tentando focar em qualquer coisa para não pensar no morto. Até que foi puxado de volta à realidade e coube a ele responder a primeira coisa que passou por sua cabeça, já sem paciência e mentalmente exausto.
— Claro que não conhecia, doutor. Conheço esse lance do tira bom e do tira mau. Não tem abordagem que vá mudar a minha história.
Antes que ele pudesse reagir ou perceber, o policial já o havia acertado com um tapa.
— Que porra é essa?! Tá achando que isso aqui é série? Se continuar com essas gracinhas, respondendo o que não tem a ver com a pergunta, eu subo seus créditos agora! — ameaçou, fazendo um gesto como se fosse sacar a arma, mas ficou só no gesto.
Assustado, ainda sentindo o rosto quente, deu novamente seu depoimento.
— Tá bem! calma, calma... Não conhecia, não. A gente se encontrou subindo o morro por acaso. Ele tava atrás de cigarro, desses, do mais caro. Sabe como é, tinha dos outros, mas ele só queria o de 15 conto.
Ele fez uma pausa, coçou a cabeça como se tentasse lembrar o nome da marca, mas acabou desistindo.
— Levei ele até um bar pra ver se achava, mas também não tinha. Aí ficamos por lá, bebendo umas cervejas e conversando.
Parou por um instante, como se fizesse esforço para lembrar de mais alguma coisa.
— Ele falou que era escritor, que tinha vendido uns 30 livros... nenhum amigo ou parente comprou.
O outro policial, que até então permanecia em silêncio, quase, no fundo da sala, arqueou uma sobrancelha.
— E isso é bom?
Ele hesitou, tentando lembrar exatamente do tom.
— Da forma que ele falou, pareceu que sim. Tava se achando enquanto dizia... ele era bom. Até morrendo, dizia palavras bonitas. Tipo, "hipocrisíaco" ou alguma coisa assim...
— Não teria sido afrodisíaco? — perguntou o policial, o mesmo que havia lhe batido, ainda impaciente, e confuso com o uso daquela palavra pouco antes de morrer.
— Não sei. Tava nervoso, ainda tô. Agora não lembro.
O outro policial interrompeu:
— Então ele era escritor de verdade, de livros mesmo... ou só um poeta?
O tira agitado franziu o cenho, ainda mais confuso com o comentário do seu colega.
— O que isso tem a ver com os fatos? — perguntou o esquentado.
— Sei lá. Poeta não é o escritor que inventa palavras, e tem liberdade para escrever errado? Talvez ele fosse um poeta; e se era, foram trinta livros e nenhum comprado por amigos... e isso, sim, é um feito do caralho.
O policial bravo balançou a cabeça, perdendo claramente a paciência.
— Tá! Mas se a gente entrar nessa discussão, vamos parecer com os personagens que iniciaram o texto. E se teve graça no começo, agora perde o impacto. Vamos nos manter na progressão. Continue. — Apontou para o depoente.
Ele respirou fundo, tentando organizar os pensamentos.
— Então... Bebemos um pouco, cerveja. Ele mostrou uns textos no Instagram, até que recebi a ligação da Sandra.
— Quem diabos é Sandra?!
— Sandra, da banca de revista. Linda, usa óculos, parece entender tudo sobre livros. Acabo comprando só pra puxar um papo. Mas geralmente não passo do primeiro capítulo... mas os do Harry Potter eu li...
Quis se mostrar inteligente; se havia lido todos os livros, aos olhos dele, isso o fazia leitor. Mas o agente bufou, claramente impaciente, cortando-o antes que começasse. Sorte do policial, pois, se tivesse continuado, se perderia em sua adoração pelo bruxinho, único tópico literário qual se sentia apto a opinar
— E onde ela entra nessa história?! Se ela nem está aqui.
— Assim, ela pediu pra comprar maconha pra ela, — se explicou aflito lembrando estar em uma delegacia — mas só um fino, daqueles bem pequenos... quase nada mesmo... pediu pra fazer esse favor. Foi isso, e agora estou aqui... — Sem sombra de dúvidas ele faria qualquer coisa por ela.
O outro cana encostado na parede o interrompeu:
— Sandra, né... — repetiu num tom de quem fazia uma nota mental.
— Mas calma, não coloca ela nesse rolo, não. Por favor. E ele veio comigo porque queria cigarro. Não achou, quis comprar um baseado pra fumar enquanto escrevia. Foi só isso.
O policial bravo balançou a cabeça em sinal de incredulidade. E, olhou na direção do mais calmo:
— Tá vendo, Guaracy?! O que um homem não faz por um belo par de óculos no rosto de uma "bibliotecária"...
— Ler, que não é, né... mas comprar baseado e achar que está na Disneylândia tá valendo. Como você não pensou que isso poderia dar merda?!
Ele baixou o olhar, a vergonha e a tristeza se misturando na garganta.
— Quando subimos o morro, percebi que estava um clima estranho, mas olhando pra ele, ele parecia tão tranquilo... pensei comigo: é só comprar e sair. E que finalmente teria uma desculpa pra ir na casa dela à noite.
Ele parou, com olhar perdido, e continuou subitamente.
— Então os tiros começaram e a partir daí ficou tudo confuso, não sei nem dizer como começou...
O policial soltou um suspiro.
— Que merda, né? Se não fosse tão absurda essa história, nem faria sentido.
O interrogatório seguiu, e o depoimento dele parecia sempre bater, mesmo no desenrolar mais incongruente possível.
Enquanto tomava um gole de café, já liberado, ainda com as mãos trêmulas, desabafou em voz alta.
— O foda é que, no fim, morreu um bom escritor, e o fim de sua vida nem renderia uma nota de rodapé.— Ele julgava o escritor bom porque não entendia muito as coisas que ele dizia ou escrevia, assim como os escritores preferidos de Sandra.
Os policiais se entreolharam, percebendo a ironia no que foi dito ali. Mas nenhum deles queria prolongar a história e nem incentivar mais ninguém a escrever.