O cheiro de tinta fresca e papel velho ainda me persegue. Sempre imaginei que, se a vida tivesse um som, seria o da prensa girando, cuspindo manchetes. Mas, ultimamente, esse som parece mais um lamento do que uma melodia.
O jornalismo crítico está morrendo, eu penso. E talvez, junto com ele, eu também esteja.
São Paulo não é uma cidade. É uma máquina. Uma engrenagem monstruosa que consome ferro, vapor e vidas humanas sem hesitar. Passei dez anos escrevendo sobre as vísceras dessa máquina. Dez anos acreditando que minhas palavras poderiam perfurar o metal mais espesso. Mas quanto mais eu escrevia, mais ela parecia crescer, invencível.
Minha primeira grande matéria — "Tragédia na Fábrica 12" — foi uma denúncia de um incêndio que matou dezenas de operários, quase todos crianças. Escrevi cada linha com raiva e dor, acreditando que expor a verdade mudaria algo. Por um dia, fui aplaudido como herói. Por uma semana, meu nome circulou em todos os jornais. Depois, o dono da fábrica financiou uma igreja, e todos esqueceram.
O que restou disso? Nada. Nem justiça, nem mudança. Só o gosto amargo de saber que a verdade, no Brasil, é um luxo que poucos podem se dar.
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Hoje, trabalho para um jornal pequeno, quase clandestino, perdido em meio às fumaças das fábricas. Escrevo para um público que mal consegue ler, e mesmo aqueles que leem pouco podem fazer. Me perguntaram, outro dia, por que ainda insisto. Minha resposta foi simples: não sei fazer outra coisa.
Mas, se sou honesto, essa insistência é mais hábito do que paixão. Porque a verdade é que eu estou cansado.
Os idealistas me irritam com sua fé cega. Eles aparecem nos cafés de São Paulo, cheios de ideias e teorias, achando que panfletos e discursos bastam para mudar o mundo. Nunca pisaram em uma fábrica, nunca seguraram a mão de um trabalhador morrendo por falta de ar. São crianças brincando com fósforos em um barril de pólvora.
Os realistas não são melhores. Esses dizem que o sistema é como deve ser, que o progresso exige sacrifícios. São covardes vestidos de pragmáticos.
E eu? Estou no meio. Sarcástico demais para ser um idealista. Humano demais para ser um realista. Preso entre a raiva de quem quer lutar e a impotência de quem não sabe como.
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Foi numa dessas noites, enquanto o som das prensas morria e eu bebia sozinho na redação vazia, que a carta chegou.
O envelope era grosso, feito de um papel refinado que não pertencia àquele lugar. O selo dourado, em forma de engrenagem, brilhava como uma provocação. Eu abri sem pressa, esperando uma cobrança ou, quem sabe, mais uma ameaça.
Mas o que encontrei me fez parar:
"Sr. Luz,
Li seus artigos. Sua escrita é afiada, mas o mundo que descreve é cego demais para percebê-la. Tenho uma proposta. Venha ao Rio de Janeiro. Apresente-se na Estação Central ao meio-dia. Mostre este selo. Sua visão será necessária para algo maior do que pode imaginar.
Assinado, A.M."
A.M.? Quem seria?
A princípio, pensei que fosse uma piada. Ou uma armadilha. Mas algo nas palavras, no tom deliberado e na elegância da carta, despertou algo que eu não sentia há anos: curiosidade.
Eu não tinha nada a perder. O jornal estava falido, meu nome era um suspiro esquecido entre os que comandavam a cidade, e São Paulo, como sempre, seguia engolindo vidas.
Então, pela primeira vez em anos, guardei minha pena, arrumei minha mala e comprei uma passagem.
Eu não sabia o que me esperava no Rio de Janeiro, mas sabia de uma coisa: se esse tal A.M. fosse um charlatão, eu teria muito o que escrever sobre ele. E, se fosse legítimo, talvez eu estivesse prestes a encontrar a história da minha vida.
O trem para o Rio partiria ao amanhecer. E, junto com ele, eu partiria para algo que eu mal começava a entender.