Carl Sagan disse uma vez que, se quisermos fazer uma simples torta de maçã, precisamos inventar o universo. Sim, uma simples torta requer esse processo todo. Quando ele fala sobre inventar o universo, refere-se ao início de tudo. Todas as coisas que conhecemos na vida partem de um início. Mas, para que existam começos, é preciso que fins sejam declarados. O que fazemos, então, quando nos encontramos presos em um ciclo vicioso? Como quebramos esse ciclo de uma vez por todas?
Essa pergunta ecoa em minha mente sempre que estou diante de uma situação que exige uma resposta. Sinto que minha vida está presa nesse ciclo repetitivo: reclamar sobre o quanto sou controlada pelos meus pais e, no fim, ceder às suas imposições. Parece simples, mas há algo mais sombrio quando o que enfrentamos é uma relação de poder. Quando estamos à mercê de regras que não fomos nós que criamos, e cada tentativa de fuga é rapidamente sufocada.
Eu costumava me refugiar no hipismo, a única coisa que me traz paz. Caraxes, meu cavalo, é o meu melhor amigo; o único que parece entender o que se passa dentro de mim. No entanto, até isso me foi arrancado hoje, quando recebi a mensagem da minha mãe, ordenando que eu voltasse para casa. O tom da mensagem não deixava espaço para questionamentos: "Imediatamente."
O caminho de volta ao casarão foi silencioso. A cada quilômetro, eu sentia o peso das expectativas se acumulando em meus ombros. Senti um aperto no peito, um desejo de me rebelar, de virar as rédeas de volta ao clube e ignorar as demandas familiares, mas sabia que isso só traria consequências piores. No final, a obediência sempre vence.
Chegando em casa, me vi diante das portas imponentes do salão onde minha mãe realizava mais uma de suas reuniões sociais. A cada passo, a pressão crescia. Ajustei minha postura e me preparei para mais uma performance. As botas de montar ainda estavam sujas de terra, e o cheiro de cavalo me envolvia como um escudo. Talvez isso fosse o suficiente para manter alguns daqueles olhares julgadores afastados.
Respiro fundo, retiro o capacete e deixo-o sobre a cabeceira no corredor, desfaço o rabo de cavalo e finalmente empurro as portas.
O som de risadas e conversas animadas cessa assim que entro. Pares de olhos se voltam para mim, avaliando, julgando. Houve um tempo em que isso me intimidava, mas aprendi a desenvolver uma espécie de armadura. Nada pode me atingir se eu não permitir. Ergo o queixo e caminho com confiança até sentar-me ao lado de Ofélia, minha irmã gêmea.
Ela e eu temos o mesmo rosto, mas as semelhanças acabam aí. Nascemos morenas, com olhos verdes penetrantes, marcas de nossa ascendência. Essas características nos tornavam quase idênticas, ao menos aos olhos dos outros. Mas isso mudou. Tingir meu cabelo de loiro platinado e usar lentes castanhas foi meu primeiro ato de rebeldia, minha tentativa de escapar da sombra de Ofélia e das expectativas sufocantes da nossa mãe. Agora, enquanto Ofélia exibe com orgulho os cabelos escuros e os olhos verdes perfeitos, eu sou a gêmea "diferente".
— Olívia querida, fico feliz que tenha decidido juntar-se a nós.
A voz de Rebeca, uma das amigas da minha mãe, ecoa pela sala. Há algo de superficial no jeito que essas mulheres falam, como se cada palavra fosse cuidadosamente escolhida para manter as aparências.
— Eu nunca perderia essa oportunidade. É sempre uma honra estar na companhia de todas vocês
Respondi com um sorriso ensaiado. Minhas palavras são calculadas, automáticas. Não estou realmente aqui. Estou presente de corpo, mas minha mente vagueia. Eu observo a sala, as interações, e me pergunto como essas mulheres conseguem se prender tanto a essa vida.
— Olívia, estás a cheirar a fezes de cavalo.
Ofélia sussurra para mim, com aquele tom que só ela sabe usar, entre a provocação e a superioridade.
— Isso te incomoda?
Pergunto, sem olhar para ela.
— Muito.
— Fico feliz em saber disso. Agora, não preciso me esforçar tanto para te irritar nas próximas horas.
Ofélia me belisca discretamente, e sinto meu sangue ferver. O toque, a provocação, tudo isso me deixa à beira de perder o controle. Em um impulso, esfrego minha bota suja na barra do seu vestido antes que ela possa reagir. O movimento é rápido, mas satisfatório. Antes que nossa troca silenciosa possa se transformar em algo maior, a voz da minha mãe ecoa pela sala, chamando a atenção de todos.
— Como sabem, amanhã é o nosso leilão beneficente — Ela começa, com o tom solene que usa sempre que quer parecer a matriarca perfeita. — A família Montenegro mantém essa tradição há gerações, e cabe a nós continuar com esse legado.
A reunião segue com diálogos previsíveis sobre o evento. Eu mal presto atenção, até que minha mãe joga a bomba.
— Ofélia e Olívia serão a atração principal.
Ela anuncia, e vejo o rosto de Ofélia se iluminar. Ela adora ser o centro das atenções. Eu, por outro lado, sinto um nó se formar no meu estômago.
— Posso recusar o convite?
Pergunto, já sabendo a resposta.
— Oh, você não pode escapar dessa, querida sobrinha
A voz da minha tia Alice corta o ar como uma lâmina. Seu tom é sempre impregnado de um certo desprezo, especialmente quando se refere a mim.
Reviro os olhos. Não é só a perspectiva de ser exposta que me incomoda, é essa dinâmica familiar sufocante, onde ninguém parece ouvir ou ver quem eu realmente sou. Quando a reunião finalmente termina, estou pronta para sair o mais rápido possível, mas a voz da minha mãe me paralisa no meio do caminho.
— Você não pode negar quem é, Olívia. Volte ao seu cabelo natural. Chega de rebeldia.
— Você quer que eu seja como Ofélia, não é?
Respondo, a voz carregada de frustração.
— Só quero o melhor para você. A sua vida seria mais fácil se…
— Se eu fosse a versão da sua filha perfeita
Interrompo, deixando claro o quão pouco suas palavras significam para mim.
Saio da sala com passos pesados, sentindo o peso de cada expectativa que minha mãe tenta impor. Cada passo é uma luta para não me afundar completamente nesse papel que ela criou para mim.