O som suave da água escorrendo na fonte era quase um sussurro, acompanhando o canto dos pássaros e o farfalhar das folhas ao vento. Yuji estava ali, imóvel, há tanto tempo que nem percebia o avanço da manhã. Seus olhos dourados estavam fixos na escultura central da fonte — uma imagem de sua mãe, esculpida com tamanha delicadeza que parecia quase viva. Jin, seu pai, havia mandado construir aquela fonte como um tributo à esposa que perdera, mas, para Yuji, a figura de pedra era tudo o que ele tinha para conhecer dela. Criado por Wasuke, seu avô, ele mal tinha convivido com o pai, que dedicava seu tempo aos negócios e à manutenção da fortuna da família. A ausência era preenchida por silêncios e um vazio que nem a beleza do jardim podia aliviar.
Aquele jardim, vasto e ornado com flores cuidadosamente selecionadas, era como um refúgio para Yuji. Ali, ele podia sonhar sem interrupções, deixando que pensamentos de um mundo além da aldeia de Villeneuve ocupassem sua mente. Mas o dia não podia ser gasto apenas em devaneios. Ele suspirou, afastando o olhar da fonte, e finalmente voltou-se para a casa.
O interior da mansão da família era tão impressionante quanto o jardim: lustres de cristal refletiam a luz do sol, e as paredes eram adornadas com tapeçarias importadas e espelhos dourados. Era um contraste gritante com a simplicidade da aldeia ao redor, um lembrete constante de como eles estavam apartados dos aldeões comuns. Ao entrar, Yuji encontrou as irmãs mais novas já imersas em sua habitual obsessão.
—Este vestido já está fora de moda, Yuna! —, resmungou a mais nova, enquanto segurava um vestido rosa pastel decorado com rendas.
— Então não use! — retrucou Haruka, ajeitando uma tiara cravejada de pequenas pérolas. —Tenho certeza de que o pai nos comprará outros na próxima visita à cidade.—
Yuji balançou a cabeça, acostumado à vaidade das irmãs. Apesar de terem armários abarrotados de roupas finas e jóias, elas pareciam nunca se satisfazer. Os irmãos mais velhos, por outro lado, discutiam sobre cavalos e negócios, vozes cheias de autoridade que ecoavam pelos corredores. Tudo isso fazia parte da rotina — uma rotina que, para Yuji, já tinha perdido o encanto há muito tempo.
Ele ajustou os punhos de sua camisa azul clara com babados e endireitou os ombros. Era sempre esperado que ele mantivesse a compostura, que representasse a graça e a elegância da família. Mesmo assim, sentia-se deslocado naquele mundo de excessos. Fechou a porta atrás de si e saiu, permitindo que o frescor da manhã o envolvesse.
Enquanto caminhava pela rua principal da aldeia, ele notava os olhares dos aldeões, sempre uma mistura de curiosidade e cautela. A riqueza de sua família não os tornava queridos em Villeneuve — pelo contrário, apenas reforçava a distância entre eles e o povo simples da aldeia. Yuji, no entanto, fazia questão de cumprimentar todos que cruzavam seu caminho, tentando amenizar a tensão invisível que pairava no ar.
A aldeia, com suas construções de pedra e ruas de paralelepípedos, tinha uma beleza simples, mas Yuji sentia-se preso ali. Ele sempre sonhara com algo além das colinas douradas, algo que o fizesse sentir verdadeiramente vivo. Mas aquele dia parecia como qualquer outro, até que uma sensação inquietante começou a se instalar em seu peito. Algo estava prestes a mudar.
Para o povo da aldeia, forasteiros eram vistos com olhares desconfiados. A criminalidade crescente, impulsionada pelo bando de Vincent, era motivo constante de preocupação. O grupo causava problemas à vontade, saqueando viajantes, roubando mercadorias e, ocasionalmente, deixando um rastro de destruição em pequenos povoados. Essa insegurança fazia com que qualquer pessoa ou comportamento fora do padrão fosse imediatamente considerado suspeito — e Yuji, com seu jeito peculiar, não era exceção.
Havia também outra razão para os olhares enviesados. Na sociedade em que viviam, os ômegas eram vistos como pilares da vida doméstica, destinados ao papel de cuidadores da casa e da família. Esperava-se que fossem submissos, graciosos e contentes com suas funções limitadas. Mas Yuji desafiava todas essas expectativas. Ele não era o tipo que se satisfazia em atender aos moldes impostos. Seu prazer estava nos livros, nas ideias que vinham deles, e não nas conversas banais e tediosas que ecoavam pelas ruas da aldeia.
Os aldeões, especialmente as mulheres, adoravam fofocar. Era quase uma arte local, e apenas suas irmãs betas, Yuna e Haruka, conseguiam rivalizar em habilidade. Yuji, porém, nunca se interessou por essas trivialidades. Enquanto caminhava pela rua principal, observava as interações com certa melancolia. As pessoas pareciam tão satisfeitas com a monotonia de suas vidas que ele se perguntava se algum dia haviam sonhado com algo mais. Não havia ambição, não havia desejos maiores — apenas o eterno repetir das mesmas histórias.
Suspirando, ele afastou os pensamentos sombrios e se dirigiu à tenda do padeiro. O aroma de pão recém-assado flutuava pelo ar, despertando um pequeno sorriso em seu rosto.
— Bonjour — cumprimentou ele educadamente.
O padeiro, um alfa robusto e sempre ocupado, ergueu os olhos apenas o suficiente para assentir em resposta, incentivando Yuji a fazer seu pedido.
— Uma baguete, por favor.
Enquanto esperava, seus olhos vagaram até os potes de geleias vermelhas cuidadosamente dispostos sobre uma prateleira. Ele escolheu um e o colocou na cesta que carregava.
— E também este, s'il vous plaît.
Após pagar, Yuji agradeceu e seguiu seu caminho. O sol agora estava mais alto, aquecendo suavemente a aldeia e iluminando os paralelepípedos das ruas estreitas. Quando dobrou uma esquina, notou Jean, o velho oleiro beta, parado ao lado de sua mula teimosa. A carroça atrelada ao animal estava cheia de cerâmicas recém-saídas do forno, mas Jean parecia perdido em pensamentos.
— Bom dia, monsieur Jean, tudo bem? — cumprimentou Yuji ao se aproximar.
O velho ergueu os olhos com um sorriso cansado, sua voz rouca pela idade.
— Bom dia, meu rapaz. Acho que sim... ou talvez não. — Ele coçou a cabeça, confuso. — O problema é que não consigo lembrar o que perdi.
Yuji reprimiu um sorriso. Não era incomum ver Jean assim, distraído e um pouco esquecido. Mas antes que pudesse dizer algo, a mula, com o focinho curioso, esticou o pescoço em direção à cesta de Yuji. O animal bufou alto, obviamente interessado no conteúdo.
— Calma aí, menina — disse Yuji, rindo baixo. Ele tirou uma maçã vermelha da cesta, a mesma que havia trazido caso encontrasse Jean pelo caminho.
O velho oleiro observou com gratidão enquanto Yuji oferecia a fruta à mula, que logo ficou mais dócil.
— Sempre um salvador, hein? — comentou Jean, ajeitando a carroça enquanto a mula mastigava tranquilamente.
— Apenas tentando manter a paz por aqui — respondeu Yuji com um sorriso gentil. — Mas cuidado, monsieur Jean. Sua memória parece estar pregando peças ultimamente.
Jean riu, uma risada cheia de afeto e resignação.
Yuji deu meia-volta para seguir seu caminho quando a voz rouca de Jean o chamou novamente.
— Aonde você está indo? — perguntou o velho oleiro, ajeitando a posição da mula, que agora parecia mais satisfeita após devorar a maçã.
Yuji parou, mas não se virou completamente. Apenas ergueu o livro que carregava em mãos, um volume de capa gasta com páginas amareladas pelo tempo.
— Vou devolver este livro ao père Roberto — respondeu ele com um leve sorriso. — É sobre dois amantes na charmosa Verona...
Jean arqueou uma sobrancelha e cruzou os braços.
— Algum deles é oleiro? — interrompeu, o tom carregado de desinteresse.
Yuji piscou, ligeiramente surpreso.
— Não.
— Então parece chato — decretou Jean com um aceno de mão, como se descartasse toda a história sem qualquer remorso.
Yuji soltou um suspiro baixo, já acostumado com a reação do velho. Era sempre assim. Qualquer coisa que não tivesse a ver com a aldeia, os costumes locais ou as atividades práticas do dia a dia era recebida com desdém ou indiferença. Ele já sabia o que esperar e, mesmo assim, uma pequena pontada de frustração sempre surgia.
Enquanto retomava o caminho pela rua de paralelepípedos, seus pensamentos começaram a vagar.
Apenas uma vez, pensou Yuji, os olhos dourados fitando o horizonte distante, eu gostaria de encontrar alguém que quisesse ouvir a história de Romeu e Julieta. Alguém que entendesse o que há de tão belo e trágico nesses dois amantes, que enxergasse algo além das rotinas enfadonhas deste lugar.
Ele apertou o livro contra o peito, sentindo o peso de seu próprio desejo de escapar. Villeneuve era sua casa, mas, ao mesmo tempo, era como uma gaiola. Ele sabia que havia algo além — algo maior, algo que ele ainda não conseguia nomear, mas que o chamava constantemente, como o eco de um sonho distante.
Ao longe, o som dos sinos da pequena igreja anunciava a próxima hora. Yuji apressou o passo, o cascalho estalando sob seus sapatos. Père Roberto sempre apreciava as visitas de Yuji, ainda que a maioria dos aldeões o considerasse um erudito excêntrico e recluso. Era o único lugar na aldeia onde ele podia falar sobre livros sem ser interrompido por comentários desdenhosos ou olhares vazios.
Ainda assim, no fundo de sua mente, a pergunta persistia: Haveria alguém, algum dia, que partilhasse desses anseios?