A pilha de papéis sobre a escrivaninha de Jonas estava na altura do peito do homem, sendo possível ver somente sua cabeça e pescoço saindo por detrás da parede de papel. O aposento apertado acomodava seu dono e mais dois Corvos que ele havia chamado.
Naomi e Gabriel esperavam seu líder, falar o motivo daquela convocação tão repentina. Gabriel mais cedo encontrou Naomi no pátio de treino, usando aquela cota de malha estranha, enquanto praticava movimentos usando um bastão para simular sua katana. Quando contou o estranho acontecimento, ela quase o arrastou para a sala de Jonas, foi preciso convencê-la a esperar, e por fim lá estavam. O silêncio chegava a pesar no pequeno aposento.
A dupla estava ansiosa, porque antes de chegarem, teorizaram que a conversa seria sobre a S.L e quem era a pessoa por trás disto. Os segundos pareciam minutos, e Gabriel abriu a boca para falar, mas fora cortado prontamente por Jonas.
— Chamei os dois aqui porque recebi um pedido do Bunker. — Jonas deu uma entonação específica quando falou "pedido", era claramente uma ordem. — Vamos começar pelo início.
— O Bunker, senhor? — indagou Naomi surpresa.
O Bunker foi junto a Civilização Além Mar, que sobreviveram à Terceira Guerra dos Antigos, o local onde todos os recrutas de Corvos vão para seu treinamento. Se a maior cidade pediu ajuda para a Cova Trinta e Quatro, uma comunidade de médio para pequeno porte, era motivo de estranheza. Isso explicava a situação precária de Jonas e sua cara de extremo cansaço.
— Entendo sua estranheza, Naomi — respondeu Jonas enquanto arrumava uma das pilhas de papel. — A mensagem é urgente, e seu conteúdo preocupante.
— Senhor — interrompeu Gabriel. — O Bunker tem o maior Ninho de Corvos das quarenta e oito Covas, o que eles iriam querer conosco!
— Me deixe falar primeiro, sei que é algo atípico. — Então deu um sorriso cansado a dupla. — E tenho plena ciência que tanto você Gabriel, quanto nossa Víbora Negra.
— Quem? — indagou o rapaz perdido.
— Não te contaram? — disse Jonas sorrindo. — Temos nosso primeiro Corvo com alcunha. — articulou em direção a Naomi para demonstrar de quem estava falando.
Gabriel se virou para sua parceira estarrecido, a boca parcialmente aberta e os olhos esbugalhados. Olhou novamente para Jonas, porque aquilo poderia ser somente uma brincadeira, mas o rosto dele estava sério.
— Naomi! O que eu perdi?
— Somente uma brincadeira boba que começou na sala de treinamento — respondeu Naomi dando pouca importância.
— É por causa da sua cota de malha esquisita?
— Sim é por causa dela, e não, não é esquisita.
— Cota de malha? — indagou Jonas.
— Sim, senhor — respondeu Gabriel sem dar tempo para sua parceira. — Parece pele de cobra.
— Interessante.
— Sobre o pedido do Bunker, senhor — cortou rispidamente Naomi, já incomodada com o assunto.
Um pouco sem jeito Jonas se arruma em sua cadeira, fazendo todas as pilhas de papel balançarem, algumas quase caindo.
— Que pena ser apenas uma brincadeira — Gabriel murmurou, e ninguém mais teria escutado se o quarto não fosse tão pequeno.
— Naomi está certa — continuou Jonas. — O Bunker entrou em contato comigo há alguns dias. Tem alguma coisa errada com a Cova Dois.
A dupla trocou um olhar confuso, ambos sabiam que tal Cova era a segunda maior das quarenta e oito, perdendo somente em tamanho e população para o Bunker. E por conta desse fato cinco Ninhos foram colocados nela para a proteção. Lógico que o motivo não era somente pela proteção dos moradores da Cova, este era o motivo oficial, a verdade era que a Cova Dois fora uma cidade costeira na época dos Antigos, uma metrópole. Fora pouquíssimo afetada pela guerra que disseminou radiação no planeta. Por ser uma cidade portuária ela conseguiu criar laços com a Civilização Além Mar, que era a fornecedora de petróleo do Bunker e por consequência das cidades a ele ligadas.
— Não quero falar algo óbvio — expressou Gabriel. — Senhor, a quantidade de Corvos naquele lugar é simplesmente ridícula comparado a qualquer outro lugar!
— Preciso concordar com Gabriel desta vez, senhor. — Se manifestou Naomi, mesmo não gostando de ir contra o líder, ela igual ao parceiro não entendiam o que o Ninho deles teriam a ver com isto.
— Entendo — disse Jonas massageando os olhos de forma cansada. — Passei a última semana conversando com eles, e parece que a situação é caótica por um simples motivo. Antes preciso contar o porquê, pessoas estão desaparecendo nela, até aí é algo comum, acontece em todos os lugares.
Tanto Gabriel quanto Naomi concordaram. Não importa se existissem Corvos ou não, o ser humano nunca iria passar um dia sem fazer o mal.
— Isto está acontecendo já faz alguns meses — prosseguiu Jonas. — Com uma frequência anormal, e para piorar começaram a aparecer pessoas mutiladas nas esquinas e becos de forma animalesca. Claro, perguntei na mesma hora o porquê de nenhum dos cinco Ninhos não fazerem nada. — Esperou por alguma interrupção dos ouvintes, mas como não veio continuou. — Segundo o Bunker, todos os relatórios recebidos da Cova falavam que os Corvos estavam investigando, mas parece que não foram muito convincentes.
— Senhor — interrompeu Naomi, ficando pálida entendendo o que estava acontecendo, ou pelo menos insinuando.
— Isso só pode ser brincadeira — se expressou Gabriel incrédulo.
— Já entenderam a preocupação do Bunker então. Exatamente, algum dos Ninhos pode ser o responsável por isso, ou algum integrante.
Uma sensação de mal-estar começou a pesar no recinto. Enfrentar um Corvo seria algo completamente diferente de um bandido ou algum animal selvagem, se fossem muitos a chance de sobrevivência era praticamente zero. Jonas se contorceu um pouco desconfortável antes de voltar a falar.
— Uma dupla foi mandada antes, mas pararam com as notícias faz quase um mês, então é claro que estão mortos. Vou ser sincero com vocês, não esperava que o Bunker entrasse em contato com um Ninho pequeno igual o nosso, mas o incidente S.L deixou os dois com alguma moral na organização e por isso ambos serão enviados para descobrir mais.
— Loucura — comentou Gabriel rindo de nervoso. — A situação toda é loucura.
–Por este motivo não irão trabalhar somente os dois. — Continuou Jonas, que entendia completamente o nervosismo do rapaz. — Agentes do Bunker escolheram a dedo outros quatro Corvos que são de confiança do lugar, duas duplas de Ninhos diferentes. São eles: Cecilia e Mateus e a outra dupla é Gygy e Martha. Guardem estes nomes.
— O Bunker então notou que mandar dois Corvos para uma cidade que eles não conhecem ninguém sozinhos seria idiota — ironizou Gabriel.
— Infelizmente o que acabou de dizer é verdade — retrucou Jonas. — Estes serão seus aliados nesta missão, e não se esqueçam, ambos iram como pessoas normais, não podem por momento algum demonstrar serem Corvos.
A dupla concordou, era uma missão de extremo risco e para manter as aparências era importante passarem por meros viajantes. Gabriel notou também que seria útil esse anonimato, pois teriam como perceber de forma imparcial se realmente era um Corvo o culpado.
— Tem um suspeito — falou Jonas. — Ser um Corvo é o pior cenário, mas tem um culto que está crescendo na cidade.
— Só melhora — resmungou Gabriel voltando a rir de nervoso.
— Que tipo de culto, senhor? — quis saber Naomi.
— Um desagradável, isso eu posso te garantir. Se chama Herdeiros, e repudiam pessoas que sofrem mutações pela radiação, como se elas fossem um estigma dos Antigos, incitando a perseguição a estes. Tanto os pais que tiveram algum bebê deformado, quanto a própria criança correm risco de serem apedrejados em nome da Curandeira, a líder desse grupo, não posso dizer mais nada, porque simplesmente não tenho nenhuma outra informação.
— Vamos ter que descobrir por nossa própria conta — resmungou Naomi perdida em pensamentos, voltando assim a focar no rosto de seu líder dizendo. — Quando partimos senhor?
— Hoje à noite — para sua surpresa não houve nenhuma reclamação de Gabriel, o rapaz estava com olhos nebulosos de preocupação com o que poderia acontecer e onde aquela situação poderia levar. — Pedi para um dos novatos levarem seus equipamentos e bolsa de remédio e venenos para Will e Susan. Partiram junto a uma caravana que está parada no aro de entrada da Cova, já deixei tudo pronto durante esta semana, será a mesma que os levou para o Oasis.
Aquele era o motivo para a cara de cansaço dele, ponderou Naomi que percebeu os olhos totalmente pretos por baixo decorrente das olheiras.
— Roupas comuns estão esperando os dois em seu quarto, as bolsas são grandes então esconder os equipamentos de combate será fácil, não creio que vá ser preciso usá-lo, mas antes prevenir do que remediar.
— Senhor! — cortou Naomi. — Como iremos encontrar com os outros Corvos?
— Estava me esquecendo disso — resmungou Jonas enquanto esfregava seus olhos. — Antes da Cova Dois há um grande pomar de mangueiras, fica rente a estrada principal, o líder da caravana está ciente de onde iram descer. Dentro deste pomar vocês encontraram um comércio que é focado nesta fruta, os quatro Corvos estarão lá, achá-los é fácil.
Se levantou ficando em pé diante da dupla que rapidamente seguiu o exemplo de seu líder, analisou ambos profundamente, poderia ser a última vez que os veriam, falando.
— Dispensados, e não se esqueçam se descobrirem qualquer coisa, enviem uma mensagem ou para mim, ou diretamente ao Bunker.
— Sim senhor — respondeu Naomi saindo do pequeno aposento correndinho em direção a seu quarto.
— Até mais! — disse Gabriel tentando manter a face calma.
Assim a porta se fecha novamente deixando Jonas sozinho com seus papéis, o Corvo olha para as letras em cada página prestando atenção ao branco do papel. Resmungando sozinho.
— Naomi, espero que você faça por merecer essa alcunha, que ganhou hoje.