Tap...Tap...
Sons de passos distantes despertaram Kael. No escuro do abrigo improvisado, as únicas luzes visíveis eram as brasas meio apagadas e a fraca luz escarlate que vinha do pote de vidro ao lado da cama.
O ambiente ainda cheirava a carne assada. A pele que havia sido retirada estava estendida próxima à extinta fogueira, montada sobre uma pequena estrutura improvisada de galhos resistentes, onde curtia sob o calor remanescente. Ele sabia que o calor da fogueira não era tão eficaz quanto a secagem ao sol, mas não tinha tempo para deixar o couro secar naturalmente. Logo teria que retornar à sua base original.
Com um salto, ele pôs-se de pé. Não havia tempo a perder; viajar durante o dia talvez não fosse totalmente seguro, mas à noite definitivamente não era uma escolha sábia.
Animais modificados, ladrões e aquelas monstruosidades faziam seu turno sob a luz do luar, e encontros assim só lhe trariam dor de cabeça, além do risco de ferimentos ou morte.
Organizando suas coisas na mochila, ele cuidadosamente envolveu o pote de vidro com a pele ainda meio úmida da lebre. Mesmo no meio da correria, um leve sorriso ainda surgia em seu rosto sempre que via a pequena pedra. A carne assada da lebre ainda o sustentaria por mais um dia - o suficiente para que chegasse em segurança à sua base.
Com suas coisas guardadas na velha mochila, ele foi até o balde que ainda tinha um pouco de água limpa. Limpou-se, removendo o sangue e a gordura das mãos, resultado de trabalhar a pele da lebre cinzenta. O restante da água foi usado para apagar as últimas brasas da fogueira, mergulhando o abrigo na escuridão. Apenas alguns raios de sol da manhã passavam pela saída de ventilação meio destruída e pelas rachaduras no teto do porão.
Kael se aproximou da escada que levava para cima, pegou o arco e o amarrou nas costas. Precisaria de agilidade, e carregar o arco nas mãos só atrapalharia.
Creak – tud!
Com um rangido, a velha porta enferrujada se abriu. O sol ainda nascia, o céu estava azul e poucas nuvens pairavam sobre as ruínas da antiga cidade de Helium. Cauteloso, ele olhou ao redor, verificando a área. Logo, sentiu-se seguro. O prédio onde estava era mais afastado da cidade, e a natureza já havia retomado o que um dia fora o domínio da civilização humana.
'Terei que cruzar a cidade para poder chegar até o campo dos sentinelas. Lá poderei vender a pele e conseguir alguns mantimentos para minha base.'
Com esse pensamento em mente, ele iniciou sua jornada. À frente, uma velha estrada asfaltada levava para o centro da cidade, onde ele avistava ao longe prédios destruídos e casas tomadas pela vegetação. Movendo-se pelas calçadas e se escondendo entre as árvores que dominavam a cidade, ele seguia com agilidade.
'Não quero ter o desprazer de cruzar caminho com nada que seja ousado o suficiente para caçar no meio da cidade durante o dia.'
Mas seus desejos não foram atendidos. Poucos minutos após adentrar o subúrbio norte de Helium, Kael começou a ter um mau pressentimento. Seus instintos o mandavam parar e se esconder. Como um sobrevivente experiente, ele rapidamente entrou em uma casa tomada pela vegetação, escondendo-se atrás de uma parede.
Logo, ele sentiu os pelos do braço arrepiarem; sua nuca estava fria, e sua atenção foi levada ao nível máximo.
Boom! Boom!
Sons de passos pesados foram captados por seus ouvidos. Ele nem precisava ver o que produzia aqueles passos; apenas o fato de o som ser tão alto quanto pequenas explosões já o enchia de medo.
Roaah!
O rugido rouco de uma criatura reverberou pelos prédios e casas destruídas. A cabeça de Kael doía, e seus ouvidos estavam quase sangrando. Os pássaros que faziam morada em algumas árvores não tiveram a mesma resistência que ele e caíam um a um, desmaiados no chão.
"Cerquem-no! Não deixem que ele escape!" uma voz feminina comandava.
Logo, os sons de luta se tornaram mais altos, e até disparos de armas de fogo eram captados por seus ouvidos ainda zonzos. Recobrando os sentidos, ele se viu em meio a uma batalha da qual não queria participar. Sua sorte parecia ter acabado ontem, quando encontrou a pedra.
Ainda escondido na casa meio destruída, ele começou a se preparar para o caso de ser descoberto pela criatura ou pelas pessoas que caçavam a monstruosidade. Puxando de sua cintura uma adaga que sempre levava consigo, ele sentiu o peso reconfortante da lâmina em sua mão. Não era uma arma excepcional, mas era resistente e já o tinha tirado de alguns pequenos problemas.
"Avancem! Cortem a cabeça desta coisa!" gritou uma voz ao longe.
Kael sentiu algo estranho ao ouvir os combatentes.
'Eu não reconheço nenhuma dessas vozes...'
Boooom!
O chão começou a tremer, como se um pequeno terremoto sacudisse as paredes deterioradas. Ele sentiu o temor crescer em seu peito; sair dali parecia a decisão mais sensata, mas entrar no meio da rua, sem nenhum esconderijo, também não era uma opção segura. Ele poderia acabar no centro da batalha e ser morto pela criatura de passos pesados ou pelos combatentes que tentavam derrotá-la.
Olhando pela janela quebrada, ele notou, do outro lado da rua, um prédio parcialmente destruído, mas robusto o suficiente para resistir aos tremores causados pela luta.
Sem perder tempo, ele saltou pela janela, tomando cuidado para não se cortar nos cacos de vidro que restavam ali. Com passos rápidos, cruzou a avenida repleta de buracos e plantas que brotavam por entre o asfalto rachado, e adentrou o prédio à frente.
A estrutura tinha três andares, mas o primeiro era apenas uma base de colunas que sustentavam a construção, com uma escada que levava aos andares superiores. Ele subiu rapidamente até o terceiro andar e, ao chegar ao telhado, os sons da batalha estavam ainda mais próximos. A avenida transversal agora se tornara o palco de uma luta épica.
Aproximando-se das grades de segurança que cercavam o telhado, Kael percebeu que plantas e cipós se enroscavam por entre as frestas, formando uma barreira natural que bloqueava a visão de quem estava no chão.
Forçando uma pequena abertura entre as folhagens, ele estreitou os olhos ao vislumbrar o que estava acontecendo. Sua boca secou, seus ouvidos zumbiram, e seu cérebro parecia incapaz de processar a cena que seus olhos captavam.
Um enorme monstro humanoide, com mais de três metros de altura e um corpo massivo, composto por músculos expostos, avançava. No final de seus braços longos, os dedos se estendiam em garras afiadas, capazes de cortar aço. Mas o que mais aterrorizava era sua cabeça desproporcional, com uma boca cheia de dentes pontiagudos ainda manchados de sangue e restos de carne.
Roaah!
A criatura rugiu novamente, flexionando as pernas e mostrando seus dentes afiados, como se estivesse cansada de ser perseguida pela equipe de combate. Em uma postura de ataque, parecia pronta para contra-atacar e retomar o controle da luta.