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Chapter 2 - O Coração Corrompido

A noite descia fria sobre os salões devastados dos Jiang, e o silêncio era interrompido apenas pelos sussurros estridentes de Seth em minha mente. Era como uma febre, uma voz sombria que pulsava com vida própria, insaciável. Seth, o espírito que agora me acompanhava desde aquela noite trágica, era uma companhia inquieta e indomável, sempre falando, sempre incitando.

— Se quer vingança, Jiang Wuxin, precisa aprender a controlar o poder que corre em suas veias agora. Não são apenas sombras comuns; são um eco da sua própria raiva e da dor que guarda aí dentro desse coração de pedra — Seth insistia, como se suas palavras pudessem me moldar, esculpindo minha alma no aço frio da vingança.

Eu me afastei do pátio da Árvore Sagrada, que estava sem seu poder mágico e apodrecendo lentamente. Isso me deixou devastado... Agora tudo está marcado pelas pegadas sangrentas dos Blackwood e pela devastação da Seita do Lótus Branco. As imagens da noite anterior ainda ardiam em minha mente, meu pai caído, os olhos vazios voltados para o céu, enquanto o corpo de minha irmã era levado por sombras que riam como demônios. Havia uma ferida em minha alma, uma fome de retaliação que se enroscava em meu ser como as trevas de Seth.

— Cale-se, Seth — murmurei, com meu punho cerrado enquanto caminhava em direção às ruínas do templo ancestral de minha família.

— Ah, jovem mestre — Seth debochava, sua voz ecoando como o sussurro da morte. — Fingir que pode ignorar o poder sombrio dentro de você é como tentar apagar a chama de uma vela com uma gota de água. Mas se deseja realmente dominar as trevas, há um caminho.

Parei de andar e o encarei em minha mente, como se pudesse materializar aquele espírito para confrontá-lo. Seth sabia demais, conhecia os segredos do mundo sombrio que agora permeava meu coração, e, apesar de cada célula em mim gritar para não confiar nele, eu sabia que precisava de respostas.

— O templo dos Jiang, seu tolo esquecido — ele continuou, quase sibilante — o lugar onde sua família guardou técnicas proibidas, segredos antigos de cultivo que poucos ousaram sequer tocar. Nessa relíquia esquecida há um caminho para os poderosos e os amaldiçoados. Cabe a você entendê-los ou não.

Olhei para o alto das duas montanhas mais altas da cidade, onde o templo de pedra se ergue entre as ruínas de Arthovya. Durante gerações, a estrutura havia servido como um refúgio sagrado para os Jiang, um lugar onde nossos ancestrais cultivavam a força e a sabedoria. Sabia que era ali que meu destino me aguardava, mas um calafrio percorreu minha espinha enquanto as palavras de Seth se infiltravam em minha mente, carregadas de promessa e veneno.

— Essas técnicas... elas são perigosas? — perguntei, com a voz falhando um pouco, embora eu tentasse mantê-la firme. A verdade é que eu sabia a resposta; o conhecimento que Seth oferecia era uma lâmina de dois gumes, cortando tanto a carne quanto a alma.

— Dizer que são perigosas é como dizer que o mar é molhado, ou que o fogo é quente — Seth zombou, gargalhando em minha mente. — O templo guarda técnicas para o bem e para o mal. Mas, lembre-se, Wuxin... o poder cobra um preço. Lá também há a flauta Imperious do imperador demônio Asmodeus Greymon, que foi derrotado por seu falecido bisavô há cem anos. Ela pode manter o controle total do cultivo sombrio.

Fechei os olhos, sentindo o peso das promessas silenciosas que pairavam no ar ao redor do templo. Sabia que aquele caminho era de trevas e corrupção, onde cada passo me afastaria do Jiang Wuxin que eu era e me aproximaria de algo mais sombrio, algo desconhecido. Mas o sangue em minhas veias clamava por vingança, e o peso de meus antepassados pressionava meu espírito. Eu não podia recuar, não enquanto o poder dos Blackwood e do Lótus Branco ameaçava consumir tudo o que eu amava.

— Seth — eu disse, com a voz baixa, mas decidida. — Se o preço for minha própria alma... então que seja. Mas eles pagarão pelo que fizeram.

E então, como se suas palavras fossem o estalar de um chicote, Seth riu, um som que reverberava em minha mente como um trovão.

— Bom, bom! Esse é o espírito. Mas lembre-se, Wuxin, a vingança é um caminho sem volta. E quando pisar nas sombras que repousam naquele templo, será marcado para sempre. Se conseguir superar o controle que a flauta pode impor a você, então será digno de possuir a famosa arma destruidora de mundos — Seth mencionou. Mas eu apenas estava mais preocupado com o que eu faria de agora em diante, sozinho no mundo.

E o que resta para os vivos quando as sombras dançam sobre os ossos do passado?

As ruínas do clã Jiang se estendiam à minha frente, imensas e solitárias, como uma sombra eternizada no sopé das montanhas. Eu havia retornado ao lugar que antes chamava de lar, mas, ao mesmo tempo, parecia mais distante do que nunca. Minhas botas pisaram em silêncio pelos corredores destroçados, e os passos ecoando no chão como se os próprios espíritos da casa aguardassem meu adeus.

Ao chegar ao meu quarto, um pedaço do passado ainda imune ao caos, senti uma presença. Era o espectro silencioso de tudo que fui. Recolhi alguns pertences de uma vida que jamais voltaria. Puxei uma capa preta de dentro de um velho baú. E, daquele momento em diante, eu seria uma sombra entre sombras, seguindo um caminho marcado por aqueles que se ergueram e caíram antes de mim.

Com o capuz sobre o rosto, deixei o que restava da minha antiga vida e segui para fora da cidade. Nas vielas e praças, ouvi sussurros entre o povo sobre o massacre do meu clã. Uns diziam que os Blackwood lançaram a culpa de seus crimes mais antigos na família Jiang, que haviam tramado cada detalhe, e que até mesmo algumas famílias daqui – cegas pela ganância ou pelo medo – se aliaram a eles naquela noite terrível.

— Assim como a neve guarda os ossos dos mortos no inverno — Seth murmurou, — os segredos dessas ruas guardam o que aconteceu naquela noite. E parece que os humanos são realmente seres estranhos. Na primeira oportunidade, causam o caos.

Meu coração, porém, não conhecia a quietude daquele inverno. O calor da raiva pulsava em mim como uma chama indomável, e, ao olhar para minhas mãos, vi uma névoa negra escapando por entre meus dedos. O poder de Seth, o legado sombrio que carrego, gritava em meus ossos, clamando por vingança. Senti as sombras dançando, à beira de um abismo onde o controle era nada mais do que uma memória. Fechei os olhos, respirei fundo, permitindo que o silêncio da noite acalmasse o fogo interior, ainda que temporariamente.

No continente de Austherya, sei que o cultivo demoníaco não é, por natureza, totalmente considerado uma maldição pela humanidade. É apenas o caminho escolhido por aqueles que ousam combater o mal com o mal, desafiar a escuridão com sua própria sombra. Entre os Jiang, alguns caminhavam por esse caminho perigoso, usando a escuridão sem jamais sucumbir a ela. Mas os Blackwood e o Lótus Branco... Eles tomaram um rumo diferente. Para eles, o poder não tinha propósito além da crueldade, e seu rastro não deixava nada além de sangue.

E desde a morte do Imperador Demônio nas mãos de Jiang Xianyi, a escuridão ficou sem um mestre, como um rio sem leito, escoando em todas as direções. E agora, onde uma vez havia honra, resta apenas o vazio.

Com esses pensamentos, segui meu caminho. Eu era uma fagulha, uma sombra guiada por um juramento. O clã Jiang havia caído, mas a chama da vingança ardia mais forte que nunca. Eu seria o espírito que vagaria por estas terras até que cada erro fosse corrigido, cada sombra, desfeita.

Depois de subir as grandes montanhas, consegui entrar no templo dos Jiang sem nenhuma dificuldade, após tocar em uma runa estranha com o formato de um dragão chinês na parede. Talvez fui aceito por ser um membro de sangue do clã. Ali dentro, o ar estava pesado com a presença de espíritos antigos e memórias que pareciam vigiar meus passos. O som de minhas botas ecoava pelos corredores de pedra fria, e conforme eu caminhava, algumas das tochas na parede se acendiam uma por uma. Seth me guiava com instruções que eu sequer conhecia, levando-me ao salão mais profundo. Provavelmente ele sentiu a energia da flauta Imperious.

No centro, uma estátua de um antigo Jiang erguia-se imponente, com um semblante sério e implacável. Em suas mãos, ele segurava um artefato: uma lâmina curta e antiga, seu metal manchado pelo tempo e pela energia sombria que parecia emanar dela. Era a lendária Katana Sombria, um objeto de poder proibido, que dizem conter o espírito de um ancestral vingativo, o rei dos youkais.

Seth parou de falar, e senti o silêncio preencher a sala, como se o próprio tempo hesitasse. Sabia o que devia fazer; Imperious era o último recurso da minha família, uma arma de poder incalculável que drenava o espírito de seu portador, mas oferecia força e domínio sobre as trevas. Ela estava dentro de uma caixa dourada, totalmente selada por um talismã de celo eterno. Esse, só pode ser desativado se uma gota de sangue for utilizada para apagar os escritos.

Aproximei-me do talismã e tirei uma gota de sangue, quebrando sua força. Eu não era muito paciente, então apenas abri a caixa, e segurei a flauta em minhas mãos, logo, acabei sentindo uma onda de energia fria correr por meu braço, como se gelo tivesse substituído meu sangue. Minha mente começou a girar, e as vozes de meus antepassados sussurravam em meus ouvidos, encorajando-me, advertindo-me a parar.

E então, Seth falou novamente, sua voz era como um murmúrio quase reverente. — Agora, Wuxin, seu caminho se abre, forjado pelo sangue e pelas trevas. Use esse poder, domine-o... e faça o mundo lembrar do nome Jiang. Controle isso antes que ele te domine — ele falou.

Enquanto segurava a flauta Imperious, olhei para a escuridão ao meu redor. Meu coração estava endurecido, minha alma consumida por uma determinação que ultrapassava o medo. Sentia-me um com a própria sombra, uma extensão das trevas que habitavam o templo e minha linhagem. Esse poder é meu, não deixarei que domine tudo o que me restou.

— Eu quero isso, eu desejo! — sussurrei para mim mesmo, forçando aquela energia negativa a se esvaziar da minha mente. Isso não vai me controlar. Será o contrário.

Nas profundezas do meu ser, algo começou a agitar-se. A flauta Imperious, vibrava levemente entre meus dedos. Sua energia escura tentava penetrar minha mente, como se houvesse uma presença dentro dela ansiosa para tomar o controle. A cada segundo se tornava mais pesado; a escuridão me cercava e sufocava, pressionando meus pensamentos.

Eu lutei contra aquela força, sentindo como se fosse a última batalha que travaria. Mas então, em meio ao abismo de minha mente, a imagem de Li Meiyu surgiu, mais vívida do que uma lembrança poderia ser. Ela estava ali, em pé à minha frente, tão bela quanto em seus melhores dias. Seus olhos me perfuravam, o sorriso tão doce quanto venenoso. Ela se aproximou, com seus dedos roçando minha face com um toque que trazia uma sensação perigosa de paz. Seus lábios murmuravam palavras enigmáticas, algo que parecia hipnótico e envolvia o meu ser.

— Você me pertence, Wuxin... e eu, a você. Deixe o mundo desaparecer. Fique aqui comigo, e nada mais importará.

Ela me beijou então, um gesto que dissolveu minha força em um instante, um beijo que quase fez a chama da minha resistência se apagar. Mas havia algo em mim que ainda resistia, um fragmento de sanidade agarrando-se à realidade. Eu sabia, de alguma forma, que aquilo não era real.

Com um esforço que parecia partir minha alma ao meio, ergui a flauta, segurando-a com toda a força. O objeto parecia vibrar, tentando afastar-se de minhas mãos, mas eu me recusei a soltá-la. Fechei os olhos e toquei uma melodia – não sabia o que estava tocando, apenas permiti que o som fluísse através de mim. Uma antiga técnica musical dos Jiang para fortalecer a mente. As notas soavam, quebrando o silêncio da noite como lâminas afiadas, e a imagem de Li Meiyu começou a vacilar, desfazendo-se aos poucos.

E, em um piscar de olhos, a ilusão se dissipou completamente. Aquele beijo ardente, o toque que era tão familiar e ao mesmo tempo tão estranho, tudo se foi como um sonho desfeito. Abri os olhos e estava ali, sozinho, com a flauta ainda em minha mão. Minha mente estava limpa, livre do peso sombrio, e eu podia sentir a energia sombria daquele lugar sendo drenada pela Imperious, como se a flauta se alimentasse dela.

Foi então que senti a presença de Seth, como uma voz sussurrando em minha mente. — Dentro da caixa, ainda há algumas técnicas do imperador demônio que podem te manter em segurança. Contudo, nem sempre depender do poder será suficiente, Wuxin. A batalha exige mais do que magia; há de se lembrar do corpo, das artes marciais. A força da espada, a precisão das mãos — ele disse seriamente, como se quisesse me forçar a ouvi-lo.

Seu conselho era claro. A flauta poderia ser um escudo e uma arma, mas não seria tudo. Precisaria ser mais, viver mais, lembrar dos ensinamentos que minha própria família Jiang me deixou.

E, quando saí do templo naquela noite, não era mais o mesmo Jiang Wuxin que havia entrado. Aquele era o primeiro passo de uma jornada de vingança, e eu sabia que, acontecesse o que acontecesse, não haveria retorno.

Contínua...