Já era dia, e eu não havia pregado meus olhos a noite toda. Uma sensação persistente me incomodava, como se algo desagradável estivesse prestes a acontecer.
Estava de volta à cidade pela primeira vez em seis meses. Era um lugar onde eu não me sentia muito à vontade, especialmente porque socializar não era meu forte. No entanto, Dona Karina, uma senhora de mil e setecentos anos, ainda na flor da idade para uma lupina, me acolhia em sua pensão gratuitamente sempre que vinha à cidade vender pele e comprar suprimentos.
Ela era da alcateia Lua Nova, enquanto minha cabana ficava nos limites da floresta, na parte escura. Dona Karina gostava de mim, e isso era um alívio.
— Ainda não entendo esse seu cheiro, menina — disse ela, enquanto eu a ajudava a carregar sacos de batatas e arroz. — Sei que é uma sem lobo, mas é mais forte que todos os outros que já conheci.
Eu não gostava de falar sobre minha adolescência. Diziam que minha voz era como a de uma sereia, capaz de enfeitiçar os homens junto com minha aparência, e por isso eles perdiam a razão. A verdade é que a alcateia Lua Crescente era considerada a mais abominável de todas "pior que o inferno". Essas coisas eram apenas desculpas para justificar suas ações, mas nunca justificaram nada
— Sabe, eu gosto de você — disse Dona Karina. — Apesar dos outros serem desconfiados, eu vejo você como uma criança. Sei que já sentiu muita dor.
Parei de andar, sentindo seu olhar em mim. Quando nos encaramos nos olhos, percebi que Dona Karina viu mais do que deveria ter visto em mim.
— Deve ter sido difícil — disse ela. — Não poderia dizer sua idade, pois parece tão nova quanto uma jovem senhorita, mas em seus olhos posso ver uma dor cultivada ao longo de milhares de anos. Gostaria de ouvir sua voz, menina, e vê-la sorrir como a jovem que é.
Sua voz estava cheia de um pesar que eu não entendia.
— Tenho 518... — minha voz estava rouca, fazia tanto tempo.
Dona Karina sorriu, e eu jurei que, se ela tivesse dentadura, a mesma teria voado na minha cara.
— Vamos, hoje vou fazer seu prato favorito: batatas gratinadas com frango — disse ela, saltitando à frente como uma criança.
Eu nunca entendi seu fascínio por mim e por tudo que me envolvia, mas sempre gostei da sua leveza em levar a vida. Não sabíamos muito uma sobre a outra, mas ela sabia meu nome, agora minha idade, e que eu era uma renegada, consequentemente sem família. Eu sabia que ela havia perdido o companheiro na guerra da supremacia e que tinha um filho com um cargo importante, e por isso, após voltar para sua casa na cidade, ela o visitava algumas vezes ao ano.
Dona Karina desapareceu na cozinha, deixando-me sozinha no salão. Eu me sentei no sofá, observando as fotos na parede. Havia uma delas que sempre me chamou a atenção: Dona Karina jovem, ao lado de um homem alto e forte, com olhos que pareciam ver além da câmera.
— Quem é ele? — perguntei, quando Dona Karina voltou com um bule de chá.
— Meu marido, Deus o tenha — respondeu ela, com um sorriso melancólico.
— Sinto muito — disse eu, sentindo uma pontada de dor. Aquela guerra havia tirado muito mais do que se via estando de fora.
— Não precisa se desculpar, menina — disse Dona Karina, colocando a mão sobre a minha. — A vida é assim. Temos que seguir em frente.
Ela se sentou ao meu lado, e nós duas ficamos em silêncio por um momento, observando as fotos. Dona Karina olhou para mim com compaixão.
— Você tem um lar aqui, menina — disse ela. — Você tem um lar comigo. Nunca se esqueça disso.
Eu senti um nó na garganta e tive que engolir para não chorar. Ela me fazia lembrar de minha mãe, e as memórias embaçadas que eu tinha de sua bela aparência aos poucos surgiam sempre que ela estava por perto.
— Obrigada, Dona Karina — disse eu, indiferente, eu sabia que não podia me permitir sentir novamente.
Dona Karina olhou para mim com um sorriso triste.
— Você não precisa agradecer, menina — disse ela. — Você é parte da minha família agora.
Eu senti uma pontada de dor no peito, mas não queria mostrar.
— Sim, claro — disse eu, me levantando.
— Agora, vamos comer — disse ela. — Estou com fome!
Nós duas nos sentamos à mesa, e Dona Karina serviu o jantar. Eu senti um cheiro delicioso, e meu estômago roncou alto.
Dona Karina riu.
— Eu sabia que você gostaria — disse ela.
Nós duas comemos em silêncio, desfrutando do jantar. Eu senti uma sensação de paz que não sentia há muito tempo. Dona Karina era uma pessoa especial, alguém que me fazia sentir em casa.
— Dona Karina? — disse eu, quebrando o silêncio.
— Sim, menina? — respondeu ela, olhando para mim com curiosidade.
— Por que você é tão boa comigo? — perguntei, com uma voz dura.
Dona Karina sorriu.
— Você é uma criança perdida, menina — disse ela. — E eu sei o que é ser perdida.
Eu olhei para ela com desconfiança.
— Não preciso da sua piedade — disse eu, sentindo uma raiva crescente.
Dona Karina não se ofendeu.
— Não é piedade, menina — disse ela. — É amor.
Eu ri, amargamente.
— Amor? — repeti. — Não sei o que é isso.
Dona Karina olhou para mim com tristeza.
— Você precisa aprender a confiar, menina — disse ela.
Eu me levantei da mesa, sentindo uma necessidade de fugir.
— Não preciso de nada — disse eu, antes de sair da sala.
Dona Karina não me seguiu, mas eu sabia que ela estava magoada.
Eu não sabia por que, mas isso me fez sentir ainda pior.
Eu estava sozinha, e era assim que eu queria.
Ou assim eu pensava.