O relógio marcava cinco da manhã. O som estridente do alarme se misturava aos sussurros ao meu redor, como sempre, sufocando o silêncio da madrugada. Eu não queria abrir os olhos, mas não adiantava adiar. Eles estavam lá, me esperando, como sempre faziam. O frio percorreu minha espinha antes mesmo de sentir o chão gelado sob os pés.
_"É ela..."_
_"Ela quem irá morrer..."_
Essas palavras voltaram a ecoar pela minha mente, mais fortes do que nos dias anteriores. Fazia semanas que essas vozes não me deixavam em paz, mas hoje estavam diferentes, mais próximas. Não consegui decidir o que me assustava mais, a proximidade delas ou a certeza de que não estavam erradas.
Levantei-me lentamente, o corpo pesado, como se o próprio ar ao meu redor fosse feito de chumbo. A sensação era constante — aquela pressão invisível, os murmúrios, o gelo que parecia atravessar minha pele e chegar aos ossos. Caminhei em direção ao guarda-roupa, sem pressa, tentando ignorar as sombras que rastejavam pelas paredes, sussurrando minhas verdades mais obscuras.
Abri o armário e olhei para as roupas como quem busca algo que possa me proteger, ainda que fosse só uma ilusão. Escolhi o terno preto, o de sempre. Era sóbrio, discreto e pesado, como eu. Combinei-o com uma saia que ia até os joelhos. O toque frio do tecido contra minha pele parecia adequado para o dia. Deslizei os pés em um par de saltos pretos, nada chamativo, nada que atraísse mais olhares do que o necessário. Precisava ser invisível, mesmo que fosse impossível, especialmente com essas malditas vozes que nunca se calavam.
Fui até o espelho. Meu reflexo estava pálido e cansado, o de sempre. Os cabelos vermelhos, que tanto se destacavam, caíam em cachos desordenados sobre os ombros. Um suspiro longo escapou dos meus lábios antes de prendê-los em um coque apertado, domando o caos pelo menos por fora. E então, me vi sorrir. Lembrei de Raven e do apelido que ele sempre me dava: *Viúva Negra*. Ele adorava brincar dizendo que eu matava os homens com o olhar, como uma predadora paciente. O engraçado era que, se as pessoas soubessem a verdade, provavelmente acreditariam nele.
Mas nós dois sempre ríamos disso. Apesar da nossa proximidade de anos, não havia nada romântico entre nós. Nosso laço era diferente, quase como irmãos. Ele me protegia, e eu fazia o mesmo por ele. Era bom ter alguém assim, alguém que não exigia explicações para o que não podia ser explicado.
Peguei minha bolsa e desci as escadas, os passos lentos e calculados, como se cada degrau fosse uma luta contra algo invisível. Ao chegar na cozinha, senti o cheiro familiar do café. Minha mãe estava lá, como todas as manhãs, com um sorriso cansado no rosto.
— Bom dia, mãe — murmurei, aproximando-me para lhe dar um beijo rápido na testa.
— Bom dia, meu amor — respondeu ela, a voz doce como sempre. Ela me olhou por um momento, com aquela expressão de quem quer perguntar se está tudo bem, mas já sabe a resposta.
Eu não estava bem. Mas essa era a nossa rotina: ignorar o que estava à margem do normal e seguir em frente. Aceitar que nem tudo pode ser consertado.
Sentei à mesa em silêncio, o café quente em minhas mãos aquecendo temporariamente meu corpo frio. Meu estômago estava embrulhado, como se os murmúrios dos espíritos agora se alojassem ali também. Não consegui comer muito, apenas algumas mordidas no pão, enquanto minha mãe falava de coisas cotidianas. Tentei ouvir, tentei sorrir, mas a verdade é que minha mente já estava presa lá fora, entre os sussurros e o frio.
Quando terminei, me levantei da mesa e peguei minhas coisas. Era hora de encarar o mundo, com todas as suas monstruosidades invisíveis e tangíveis.
— Tenha um bom dia, querida — minha mãe disse, me observando com aqueles olhos suaves que sempre pareciam entender mais do que eu dizia.
— Vou tentar, mãe. Vou tentar — respondi, com um sorriso fraco. Saí de casa sentindo o frio da manhã se agarrar à minha pele assim que a porta se fechou atrás de mim.
A rua estava deserta, envolta naquela penumbra melancólica que precede o amanhecer. O ar estava gelado e úmido, uma brisa fria acariciando meu rosto enquanto eu seguia em direção ao ponto de ônibus. O céu ainda estava escuro, com uma leve tonalidade azulada se formando no horizonte, mas o mundo ao meu redor já estava desperto, ainda que silencioso.
Caminhei pelas calçadas vazias, os sussurros ainda presentes, embora mais distantes. Às vezes, eu via uma forma no canto do olho, um vulto que desaparecia antes que eu pudesse focar. Os mortos nunca me deixavam em paz. E hoje, o frio era mais intenso.
Cheguei ao ponto de ônibus e me sentei no banco enferrujado, tentando não pensar nas vozes, nas sombras. Mas era difícil quando elas se agarravam a tudo, quando seus murmúrios se misturavam com os sons da cidade despertando. Alguns minutos depois, o ônibus chegou, seu barulho cortando o silêncio com uma brutalidade que quase me confortava. Subi os degraus e procurei um lugar ao fundo, como sempre fazia.
O ônibus estava mais cheio do que de costume. Os rostos eram todos estranhos, exceto pelas auras. Eu podia ver a energia ao redor de cada um deles, suas cores os denunciando. A mulher sentada à minha frente tinha um brilho alaranjado ao redor de si, algo quente, mas ansioso. O homem a dois assentos de distância estava envolto em uma névoa cinzenta, pesado, talvez com tristeza. E então havia aqueles que eram vazios. Como se suas almas já tivessem sido drenadas, nada mais restando além de corpos caminhantes.
Os homens nojentos também estavam lá, os olhos percorrendo meu corpo como se fosse algo deles. Podia sentir seus olhares como dedos frios. Eu já estava acostumada, mas nunca deixava de me enojar. Fingi não perceber e continuei encarando a janela, observando a cidade passar, as construções cinzentas, as pessoas correndo para o trabalho, o céu que lentamente clareava. Eu me perguntava como seria viver uma vida normal, sem a presença constante da morte, sem sentir que algo estava sempre me observando.
Mas para mim, essa nunca foi uma opção.