Mesmo sendo minha empregada, eu achava que Aisha podia ser minha amiga. Ela estava sempre ali, me dando comida, arrumando o meu quarto, e de vez em quando dizendo para eu comer mais. Ela nunca sorria, porém estava sempre muito bonita, mas eu achava que, se eu tentasse o suficiente, talvez pudesse fazer ela sorrir. Então, um dia, cheguei perto dela com um desenho que fiz — Aisha de mãos dadas comigo e um coração em cima.
"Aisha, Aisha, olha! Mandy desenhou você. você é a mais bonita do mundo!" Eu disse, esperando que ela ficasse surpresa, ou pelo menos um pouquinho feliz. Eu até imaginei que ela diria "obrigada" ou que fosse me dar um sorriso, desses que as pessoas dão quando gostam do que veem.
Mas Aisha nem olhou direito. Pegou a caixa que estava carregando e disse, com a voz tão fria quanto o chão de azulejo, "Não posso ver agora, Mandy. Coloque ali."
Fiquei parada, segurando meu desenho, sem saber o que fazer. A resposta de Aisha me fez sentir tão... sozinha.
Um pensamento me assustou. Minha cabeça estava cheia de pensamentos que não paravam de chegar, como se fossem pequenos insetos voando. Era rápido demais, Foi então que eu percebi, que havia entendido por que Aisha me ignora. Eu tentei não pensar muito, mas de alguma forma eu... eu sabia que estava certa. Uma criança da minha idade deveria ser capaz de raciocinar algo tão complicado assim? Eu tenho apenas 7 anos, e para piorar, como eu sei que pessoas da minha idade não deveriam pensar assim? eu nunca interagi com outras crianças antes.
Guardei meu desenho e me sentei no chão, tentando ignorar esses pensamentos estranhos. Mas, quanto mais eu tentava, mais eles vinham, e eu não conseguia impedir. Não entendia o que estava acontecendo comigo, mas sabia que tinha medo. Medo do que eu podia pensar e entender, sem querer.
A cada dia, eu tentava de novo. Um "bom dia, Aisha!", um "você quer brincar comigo?", ou até um "gostou do meu desenho?" Mas, para tudo o que eu dizia, a resposta era sempre a mesma. Um aceno vago, um olhar vazio ou, o pior de todos, o silêncio. Parecia que ela nem me ouvia.
Por um tempo, achei que estava fazendo algo errado. Talvez meu jeito de falar não fosse certo. Talvez eu estivesse sendo chata. Mas, depois de tantos dias e tantas tentativas, algo dentro de mim começou a pensar diferente. Eu me sentei no canto do quarto e fiquei olhando Aisha, pensando em tudo o que ela fazia e em como ela agia comigo.
Minha cabeça começou a juntar pedaços, como se fosse um quebra-cabeça invisível. Era estranho, como se eu pudesse ver além do que ela fazia — e até do que ela dizia. De repente, uma ideia surgiu: Alguém mandou Aisha me ignorar enquanto cuida de mim para eu aprender a me virar sozinha. Eu conseguia ver isso, mesmo que ela nunca tivesse dito uma palavra sobre o assunto.
Essa ideia me deixou tonta. Como eu sabia de tudo isso? Era como se algo na minha cabeça fosse... assustador. Eu conseguia entender as coisas de um jeito rápido, como se as respostas já estivessem lá, esperando que eu as enxergasse. E quanto mais eu entendia, mais sentia algo apertando meu peito. Eu não queria saber essas coisas. Era como olhar para um monstro que vive dentro da gente — eu sabia que estava certo, mas odiava ver a verdade que estava encontrando.
Afinal, se eu podia descobrir tudo isso, o que mais eu podia saber sem querer? Quantas coisas eu podia entender sobre as pessoas, mesmo que elas não me dissessem nada? E por que eu parecia saber tanto, enquanto os outros só viam o que estava na frente deles? Era um pensamento solitário e escuro, como um lugar onde a luz não chega.
Agora eu via Aisha de um jeito diferente, mas isso só me deixava mais longe dela. Quanto mais eu entendia, mais parecia que um buraco se abria entre nós. E, no fundo, eu sabia que não podia contar a ninguém sobre esses pensamentos. Quem iria acreditar? Eu era só uma criança. E ainda assim, minha cabeça não parava de girar, não parava de enxergar coisas que eu não queria ver.
Fechei os olhos e tentei me acalmar, como se eu pudesse desligar esses pensamentos. Mas eles estavam lá, à espreita, como sombras que eu não podia evitar. E, no fundo do meu coração, eu sabia que era esse "entender demais" que estava me afastando de todo mundo.
O problema realmente começou quando acordei e percebi que Aisha não estava mais lá, tudo que restava de lembrança era um pote com biscoitos.
A primeira semana sem Aisha foi estranha. No começo, achei que ela voltaria em algum momento, então eu esperei. Mas os dias foram passando, e a porta continuava fechada, e o quarto cada vez mais silencioso. À noite, eu ouvia ruídos distantes, como arranhões e passos pesados do lado de fora, mas tentei ignorar. Sempre achei que esses sons vinham de Aisha andando pelos corredores.
Na segunda semana, comecei a sentir uma dor fina no estômago, algo que eu não conhecia muito bem. Era fome, eu acho. Antes, Aisha sempre trazia comida, e eu nunca precisei pedir. Mas agora, com o quarto vazio, comecei a sentir que precisava fazer alguma coisa.
Foi aí que um pensamento surgiu: eu sabia que podia pensar muito rápido, ver coisas que antes não percebia. Esse pensamento, porém, sempre me deixava apavorada. Eu não gostava da Mandy que pensava assim, a Mandy que conseguia ver todos os detalhes e juntar tudo de forma tão rápida. Mas a fome e o medo da solidão me fizeram tentar algo que nunca imaginei. Me concentrei e, com um esforço que parecia atravessar minha cabeça, ativei... aquele "Modo Super Mandy." Foi como acender uma lâmpada que eu sabia ser perigosa, mas que me mostrava tudo de um jeito claro.
Num segundo, eu entendi por que Aisha estava sempre tão distante. Percebi que ela não devia voltar, e entendi o que eu precisava fazer para me cuidar. Parecia tão fácil, mas era estranho e aterrorizante, como se eu tivesse poderes de um adulto em um corpo de criança. Eu logo desliguei esse modo, me sentindo vazia e com medo de pensar demais de novo. "Modo Super Mandy" era como um poder assustador — útil, mas que eu preferia não usar.
Com minha mente de volta ao "normal," fiquei mais calma, quase aliviada, como se um peso tivesse saído dos meus ombros. Agora, eu sabia que precisava sair do quarto e buscar comida. A ideia me deu um pouco de medo, mas também uma empolgação esquisita. Eu nunca tinha saído dali. A mansão era minha casa, mas parecia um mundo desconhecido.
Puxei a porta e caminhei para o corredor. A escuridão ali era estranha, com sombras que se moviam. Tentei manter o passo leve, mas, logo depois de virar uma esquina, vi algo que me fez congelar. Era um roedor, mas maior do que qualquer um que eu pudesse imaginar. Seus olhos brilhavam, e suas garras pareciam afiadas como facas. Ele me viu e começou a correr na minha direção.
Gritei e corri, minha mente já pensando se deveria ativar o "Modo Super Mandy" para encontrar uma saída rápida. Mas o medo de me transformar naquela versão estranha de mim mesma era quase tão grande quanto o medo do monstro.
O corredor parecia nunca acabar. A cada passo que eu dava, a luz ia desaparecendo, e as sombras ficavam maiores. Os sons ao redor ficavam mais fortes — garras arranhando o chão, respirações ofegantes. O ar parecia pesado, e, mesmo com o estômago roncando de fome, eu sentia mais medo do que vontade de seguir adiante. Mas o desespero de encontrar comida me fazia continuar, mesmo com a mansão parecendo mais estranha e ameaçadora a cada curva.
Então, ele apareceu de novo. O roedor gigante, com olhos que brilhavam feito fogo e dentes afiados como lâminas. Ele me olhou de uma maneira que parecia entender quem eu era — uma presa, uma invasora em seu território. Ele avançou, e eu sabia que não tinha para onde correr. Estava encurralada, com as paredes frias e altas de ambos os lados.
O pânico me fez pensar na única coisa que eu tinha, mesmo sendo assustadora. Eu fechei os olhos, respirei fundo e ativei o "Modo Super Mandy" com tudo o que tinha. Foi como abrir uma porta dentro da minha cabeça e deixar algo frio e calculista sair. De repente, a sala não parecia mais perigosa; eu só sentia uma calma gelada, como se tudo estivesse controlado.
Com minha visão afiada e meu raciocínio acelerado, notei um vulto — uma figura escura e rápida, que surgiu atrás do roedor. Ela se moveu como um borrão, cortando o ar com precisão mortal. Num instante, ouvi o som seco de algo sendo cortado, e, antes que eu pudesse pensar, a cabeça do roedor caiu no chão. Eu olhei em choque, mas minha mente já havia feito as contas.
Claro. Era Aisha. Era como se todas as peças se encaixassem. Eu estava aqui por um motivo. Essa mansão era um treinamento, e Aisha nunca tinha me deixado sozinha. Ela estava me observando, me protegendo, talvez até me testando. Era claro como cristal: eu não era uma criança comum. Eu estava aqui para me tornar algo mais. Uma... caçadora? Um tipo especial de lutadora? Era a única resposta lógica.
Mas então, o vulto desapareceu, e o corredor ficou em silêncio de novo. Desliguei o Modo Super Mandy, e tudo o que senti foi um vazio horrível. Aquela clareza gelada sumiu, e, em seu lugar, veio uma dor que não tinha nome. Meu peito doía, e minha cabeça girava. Senti as lágrimas caindo, mas, por mais que eu quisesse parar de chorar, não conseguia. Era como se a dor da solidão tivesse quebrado algo dentro de mim.
"Aisha!" gritei, minha voz cheia de soluços. "Aisha... você é uma mamãe má e ruim!" Eu não sabia por que estava dizendo isso, mas as palavras saíam antes que eu pudesse entender. Eu queria tanto que ela voltasse, que dissesse que estava tudo bem, que eu era só uma criança. Mas a única resposta era o silêncio, e, de repente, eu estava de volta no escuro, sozinha.
Com o rosto ainda molhado de lágrimas, voltei ao corredor escuro e olhei para o rato morto. Ele era enorme, e o cheiro não era dos melhores, mas minha barriga roncava alto, e eu sabia que precisava de comida. Fiz uma careta ao pensar nisso, mas então tive uma ideia: levar o rato para o meu quarto e tentar preparar alguma coisa. "É só um bicho grande," pensei. "Se os adultos comem bicho, eu também posso."
Puxando o rato pelas patas, eu o arrastei até meu quarto com muito esforço, parando algumas vezes para descansar e encolhendo o nariz pelo cheiro. Mas, com algum tempo e muita determinação, finalmente consegui. No quarto, olhei ao redor, tentando lembrar o que sabia sobre "cozinhar."
"Ok, primeiro... Fogo!" Lembrei de ter visto Aisha acendendo fósforos uma vez, então vasculhei meu quarto e encontrei um pequeno maço de fósforos no fundo da gaveta. Acendi um fósforo (quase queimando meu dedo no processo) e comecei a fazer uma fogueirinha improvisada com papel e alguns pedacinhos de madeira de um brinquedo que encontrei quebrado. A chama logo pegou, e eu fiquei animada.
Agora, o rato. Fiquei olhando para ele, tentando imaginar como fazer isso. Peguei a pata dele com uma expressão meio enojada, me perguntando se eu precisava tirar a pele ou algo assim.
"Acho que vou só... mordiscar?" perguntei a mim mesma, tentando fazer o rato parecer mais apetitoso.
Dei uma mordida pequena no ar, hesitante, e então outra mais próxima, como se estivesse me preparando. Finalmente, fechei os olhos e mordi um pedaço... mas meu dente nem chegou a encostar, porque o cheiro forte me fez soltar o rato e tossir. Eu fiz uma careta, colocando a mão no nariz.
"Argh! Isso não é gostoso, nem um pouquinho!" exclamei, frustrada. Então, me sentei no chão com um suspiro, olhando para o rato com cara de desapontada. "Aisha, você não podia ter deixado uma comida melhor?" murmurei, sem esperar uma resposta.
Foi aí que eu tive uma ideia: "E se eu pegar a carne e cortar em pedacinhos? Fazer igual aqueles sanduíches que a Aisha fazia..." Um sorriso surgiu no meu rosto, e eu já estava imaginando uma verdadeira "receita de Mandy."
E foi ali, no meio do meu quarto bagunçado e com uma fogueira improvável, que entendi que essa aventura seria muito mais difícil do que parecia. Mas, se eu conseguia fazer uma fogueira, quem sabe o que mais eu conseguiria?