Cristal saiu do apartamento com um nó no estômago, decidida a comprar algo que Sari pudesse comer enquanto se arrumava. A luz do dia iluminava as ruas, mas a preocupação a acompanhava a cada passo. Ao voltar, seu olhar foi atraído para a mesa, onde uma pilha de anotações chamava sua atenção.
"O ritual precisa de um grupo grande de pessoas com almas quebradas. Após dizer o encaminhamento, ao segurar a ampulheta, Zhara, a dona da morte, aparecerá e considerará o seu pedido, por um preço." As palavras a gelaram. Cristal sabia que Sari estava obcecada por essa ideia, mas não podia deixar que ela reunisse pessoas para um ritual tão perigoso.
As memórias das últimas vidas que tirara inundaram sua mente. Cada ato violento, cada escolha, tudo para proteger Sari. A dor de ver a mulher que amava perdida em sua própria escuridão a machucava mais do que qualquer ferimento. O olhar distante de Sari parecia gritar por ajuda, e isso a consumia.
Cristal saiu do transe, percebendo que a água do chuveiro ainda caía, um som contínuo e angustiante. Ela correu até o banheiro, mas estava vazio. Desesperada, começou a procurar por Sari, o coração acelerando a cada segundo.
Depois de um longo momento de busca, avistou Sari à distância, sentada em um banco de parque, vestindo o terno preto que sempre usava para trabalhar. Ela parecia tão pequena, perdida em pensamentos, enquanto observava crianças brincando de polícia e ladrão. O contraste entre a inocência das crianças e a dor que consumia Sari era palpável.
Cristal se aproximou, sentando-se ao lado dela. Notou que Sari segurava uma ampulheta antiga, a areia amarela brilhando como ouro sob a luz do sol. A cena era tão surreal que lhe tirou o fôlego.
Cristal não pôde deixar de lembrar de momentos felizes que passaram juntas. Lembrou-se de um dia em que correram em um grande campo, escondendo-se dos adultos, rindo e se divertindo, sentindo-se livres. Outro momento lhe veio à mente: quando escaparam de tudo, e Sari, com um sorriso, comprou um sorvete para Cristal, que parecia uma criança feliz, com os olhos brilhando de alegria. Aquelas lembranças pareciam tão distantes agora, como um sonho esquecido.
— Sari, eu... — Cristal começou, tentando encontrar as palavras certas para confortá-la. Mas enquanto falava, uma sensação de inquietação começou a crescer dentro dela. Algo não estava certo.
Então, o som de um tiro ecoou pelo ar. Cristal congelou. O primeiro disparo passou raspando por Sari, fazendo-a se encolher instintivamente. O coração de Cristal disparou em desespero.
— Sari! — ela gritou, inclinando-se para protegê-la, enquanto o caos ao redor parecia desmoronar.
Cristal se lançou para frente, o instinto a guiando. O tiro ecoou mais uma vez, e ela sentiu um impacto agudo no lado, mas não parou. Seu corpo se interpôs entre Sari e o perigo, como um escudo. O mundo ao redor parecia desacelerar; o grito de Sari foi ofuscado pelo zumbido que encheu seus ouvidos.
— Cristal! — Sari gritou, seus olhos se alargando em horror.
Cristal caiu de joelhos, a força deixando seu corpo. A dor era intensa, mas havia algo maior em jogo. Ela olhou para Sari, o desespero refletido em seus olhos. O tempo parecia se estender enquanto tentava falar.
— Sari... eu... — A voz dela era apenas um sussurro, antes que a escuridão começasse a cercá-la.
Sari se lançou para o chão ao lado de Cristal, segurando seu rosto. As lágrimas escorriam pelo seu rosto, misturando-se com a chuva que começava a cair, como se o céu estivesse compartilhando sua dor.
— Não, não! Cristal, não! Você não pode me deixar! — Sari implorou, sua voz tremendo.
O olhar de Cristal começou a perder o brilho. Ela forçou um sorriso fraco, tentando transmitir toda a força que ainda tinha. Mas a vida estava escorregando de suas mãos, assim como a areia da ampulheta que Sari segurava.
— Eu sempre estarei com você... — Cristal murmurou antes de seus olhos se fecharem, e a respiração cessar.
A cena à sua volta desmoronou em um silêncio profundo. O som do mundo parecia desaparecer, e Sari ficou sozinha, consumida pela dor insuportável. O desespero a envolveu como uma nuvem densa e sufocante.
— Zhara! — ela gritou, levantando a ampulheta, sua voz ecoando pela escuridão. — Escute-me! Cala a dor que me tortura e arranca minha paz!
Mesmo sem acreditar que a deusa da morte apareceria, Sari sentiu um impulso que a fazia arriscar tudo. Sabia apenas que Zhara tinha a capacidade de ressuscitar, e isso era o suficiente.
— Aposto tudo o que tenho e um pouco mais. Aqui estou, no barulho e no silêncio. Olhe para mim, ou pelo menos para o que restou de mim. Não é muito mais do que tudo o que tenho, e darei a você.
A chuva aumentava, e a ampulheta reluziu sob a luz que se esvaía, cada gota como um lembrete do que havia perdido.
— Venha, venha até o meu desejo. Minha alma não tem mais como se partir. Venha ao meu tempo, ao meu desespero. Bem aqui, não aguento mais!
As palavras saíam dela como um lamento, ecoando no vazio. Ela se sentia perdida entre a vida e a morte, a linha que as separava se tornava cada vez mais tênue. O desespero e a esperança se entrelaçavam, enquanto aguardava a resposta da deusa.
O silêncio era ensurdecedor, e Sari, quebrada, ficou ali, com a ampulheta em mãos, esperando que Zhara a escutasse. A única certeza era que ela estava disposta a fazer qualquer coisa, mesmo que o preço fosse mais alto do que poderia imaginar.