Aric lembrava-se vagamente das vozes distantes, chamando por ele, antes de tudo se dissolver em escuridão. O sonho sempre terminava da mesma forma: com a imagem de uma rocha solitária no coração da floresta, onde ele fora encontrado.
A floresta onde Aric cresceu era um labirinto de árvores antigas e rochas cobertas de musgo, um lugar onde o tempo parecia não ter pressa. Aqui, ele aprendeu a ouvir o sussurro das folhas. Lembrava-se de quando Mira, a Coruja da Sabedoria, o ensinou a comunicar-se com os seres da floresta. Ele ainda era uma criança, cheia de perguntas sobre porque não entendia as palavras dos outros. Um dia, sentou-se ao lado de Mira, debaixo de uma árvore imponente, e perguntou:
"Mira, por que sou o único que não entende as palavras dos outros como vocês fazem?"
A coruja pousou perto dele, os olhos penetrantes e cheios de paciência. "A comunicação, jovem Aric, não está apenas nas palavras. Está no coração, nas intenções. Os humanos têm o dom da fala, mas há outras formas de nos fazermos entender."
Ela começou a ensiná-lo a ouvir mais do que apenas sons. Aric aprendeu a observar os gestos subtis, o movimento das folhas, o olhar dos animais. Sob a orientação de Mira, ele compreendeu que a floresta e os seus habitantes falavam uma língua própria, e que a verdadeira comunicação vinha da conexão que ele desenvolvia com cada criatura.
Mas Mira também o preparava para algo mais. "Você também precisará entender os humanos, Aric. Um dia, encontrarás outros como tu, e as palavras deles serão tão importantes quanto os sussurros da floresta."
Esses ensinamentos moldaram Aric, permitindo que ele se tornasse uma ponte entre dois mundos — o dos humanos e o dos animais. Mesmo sendo o único humano na aldeia, isso nunca o impediu de viver em paz ali, entendendo tanto os murmúrios da natureza quanto a linguagem dos homens.
No meio desses pensamentos, um pequeno lobo com pelo cinzento, brilhante como as estrelas, apareceu à sua frente. "Estava à tua procura, Aric. Já são horas de comer."
"Desculpa, Lúpus, é que encontrei um lugar com tantas pedras mágicas que não consegui parar de apanhá-las." "Eu juro que um dia ainda te deixo morrer à fome, Aric." "Não! Por favor, Lúpus, não faças isso", brincou ele com um sorriso.
Os dois avançaram até uma vila no meio da floresta, onde habitavam todos os tipos de animais que se possa imaginar. Aric cumprimentou todos e sentou-se à mesa de refeições como todos os outros. Ele era o único humano naquela vila, mas isso nunca o impediu de ter uma vida pacífica entre os seus amigos.
Naquela noite, ao retornar à aldeia, a atmosfera era de alegria. Todos se reuniram para o tradicional banquete sob o comando de Mira, que sempre dava início às festividades. Aric, como de costume, sentou-se entre os animais, compartilhando risos e histórias. A grande coruja, com os seus olhos penetrantes, observava a todos com um brilho de sabedoria e cautela, como se soubesse que aquela poderia ser a última vez que estariam reunidos em paz.
Quando o banquete terminou, Aric aproximou-se de Mira, animado para mostrar-lhe a pedra esverdeada que havia encontrado. "Mira, olha as pedras mágicas que apanhei!" disse ele, com o entusiasmo juvenil que nunca o abandonava. A coruja observou as gemas com um olhar de aprovação e orgulho. "São realmente bonitas, Aric," respondeu ela, com a voz suave e carregada de sabedoria. "Mas lembra-te, a magia que elas contêm não é só beleza. Há um poder bruto nelas, e, às vezes, esse poder precisa ser liberado no momento certo."
As palavras de Mira sempre carregavam significados mais profundos, e Aric sabia disso. No entanto, naquela noite, ele estava mais concentrado na beleza das pedras e no calor da companhia dos seus amigos do que nas advertências veladas da sua mentora.
A floresta onde Aric cresceu era conhecida pelos humanos como "Floresta das Tormentas", com monstros raivosos e plantas carnívoras, mas no centro dessa floresta estava aquela vila onde os animais que não queriam lutar iam, muitos deles foram resgatados por Mira às portas, então o respeito por ela era absoluto. Ela sempre recebia novos moradores de braços abertos, enquanto os protegia dos monstros com a sua magia.
O banquete acabou, e os animais começaram a dispersar-se, retornando às suas casas espalhadas pela floresta. Aric, ainda com o coração aquecido pelos momentos de paz com os seus amigos, seguiu em direção à sua própria morada. Subiu habilmente pela velha árvore que abrigava uma pequena cabana de madeira, a sua casa no alto, longe do chão. A madeira rangia suavemente enquanto ele subia, mas Aric já conhecia cada som daquele lugar.
Dentro da cabana, o ar estava sempre impregnado por uma leve luminosidade mágica. Em todas as prateleiras, espalhadas de maneira ordenada, estavam as suas preciosas pedras mágicas. Pequenas gemas que ele encontrava pela floresta, cada uma com um brilho e energia únicos. Aric não as usava para grandes feitiços ou encantamentos — na verdade, raramente as usava para qualquer coisa além de as observar e apreciar.
Ele sentou-se no chão de madeira, rodeado pela sua coleção, e pegou uma das pedras mais recentes que havia encontrado. Era uma pequena joia esverdeada que emitia um leve calor ao toque. Aric sorriu, admirando o brilho pulsante. Ele gostava de sentir a energia crua e natural delas, como se fosse uma extensão da própria floresta. Para ele, cada pedra contava uma história — de onde veio, como a terra a moldou e o tipo de magia que nela residia.
Às vezes, ele levava algumas para Mira. A coruja da sabedoria tinha uma habilidade especial para transformar as pedras em aparelhos mágicos. Ela conseguia canalizar o poder de cada gema para criar itens que ajudavam a aldeia ou protegiam os seus habitantes. Mas Aric gostava mais de colecioná-las pelo simples prazer de contemplar as suas formas e cores, sentindo-se mais próximo da terra que o acolhera.
Com o som suave das folhas a balançar lá fora, ele fechou os olhos por um momento, rodeado pela tranquilidade da sua cabana e pelas suas pedras mágicas. No fundo, ele sabia que aquele lugar, a sua casa entre as árvores e a sua coleção de gemas, era um refúgio. Um pedaço de paz num mundo que, talvez, ele ainda não compreendesse completamente.
Na manhã seguinte, uma inquietação tomava conta de Aric. A floresta, que sempre fora o seu lar e refúgio, parecia diferente. Decidiu explorar uma área afastada da aldeia, onde esperava encontrar algumas novas pedras mágicas. Lúpus, o seu fiel companheiro, seguia-o de perto, atento a tudo.
"Não vou demorar, Lúpus. Só quero apanhar algumas pedras e voltamos para o almoço", disse Aric, tentando ignorar a estranha sensação de que algo estava errado.
Enquanto caminhavam, Aric começou a ouvir sons incomuns — estalos, barulhos distantes que pareciam não pertencer à floresta.
Antes que Aric pudesse reagir, ouviu um grito. Não era o grito de um animal comum, mas de algo... ou alguém, em sofrimento. Sem pensar, Aric correu em direção à aldeia. O medo crescia a cada passo, e o seu coração martelava no peito.
Quando finalmente chegaram, Aric parou bruscamente. A clareira onde a aldeia estava situada estava destruída. As chamas engoliam as casas de madeira e folhas, lançando nuvens de fumo negro que se misturavam com o cheiro de madeira queimada e carne carbonizada. Corpos dos seus amigos animais estavam espalhados pelo chão, e a visão era terrível: a aldeia que o acolhera agora não passava de ruínas.
No centro da devastação, erguia-se uma bandeira vermelha. O seu tecido ondulava lentamente ao vento, sujo de cinzas e sangue. No centro, o símbolo do reino: uma espada dourada atravessando um escudo negro, adornado com folhas de carvalho à volta. A bandeira, orgulhosamente exibida, representava o poder brutal do exército real, uma força que não conhecia piedade.
O mastro da bandeira estava cravado no solo, ao lado dos corpos caídos. Era como se os soldados tivessem deixado um recado: "Nós estivemos aqui, e isto é o que acontece a quem desafia o reino."
"Não... isto não pode estar a acontecer", murmurou Aric, a voz mal saindo. Os seus olhos percorriam os corpos. Ajoelhou-se ao lado de um deles, com o coração apertado.
Lúpus, que sempre fora uma presença forte e protetora, estava caído ao lado dos seus outros amigos. O grande lobo de pelo cinzento, com quem partilhara tantas aventuras e momentos de paz, estava imóvel, uma mancha escura de sangue no seu flanco.
Aric sentiu um frio glacial percorrer a sua espinha. Os seus joelhos tremiam e a sua visão estava turva, o mundo à sua volta parecia girar enquanto tentava processar a cena horrenda. Ajoelhou-se ao lado de Lúpus, tocando o pelo macio, agora sem vida. Uma lágrima silenciosa desceu pelo seu rosto enquanto a realidade o atingia com força devastadora.
"Lúpus... por favor, não..."
A dor e a raiva consumiram-no de uma só vez. Um grito de desespero rasgou a sua garganta, ecoando pela floresta, enquanto a sua alma parecia despedaçar.
A floresta respondeu ao seu grito de dor. O chão sob os seus pés vibrou, e as pedras mágicas em suas mãos começaram a brilhar com uma intensidade nova, como se a própria terra estivesse se levantando junto com ele.
Enquanto Aric caminhava pela clareira devastada, os pensamentos inevitavelmente voltaram para Lúpus. O lobo sempre estivera ao seu lado desde que ele se lembrava, um companheiro fiel que o guiava e o protegia em cada momento de incerteza. Aric recordava o primeiro encontro dos dois, ainda tão vívido na sua memória como se tivesse acontecido ontem.
Ele era apenas uma criança, vagando sem rumo pela floresta após ser deixado para trás. A noite caía e o frio fazia-o tremer. Ele tinha medo, estava sozinho, e os sons da floresta pareciam mais ameaçadores do que nunca. Foi quando ouviu o rosnado baixo vindo das sombras. Aric virou-se, o coração batendo forte, e viu um par de olhos brilhantes na escuridão.
Era um lobo, o seu pelo cinzento brilhando à luz da lua. Aric sentiu o medo congelá-lo no lugar, mas algo no olhar da criatura fez com que ele não fugisse. O lobo não o atacou. Em vez disso, aproximou-se lentamente, como se estivesse a estudá-lo. Aric, apesar do medo, estendeu a mão trémula, e o lobo aproximou o focinho dela.
Naquele momento, algo mudou. De algum modo, Aric sabia que não estava mais sozinho. Lúpus acompanhou-o naquela noite, guiando-o até um lugar seguro na floresta, onde ele pôde descansar. Desde então, o lobo foi seu guardião e amigo, sempre presente, sempre leal.
De volta ao presente, Aric ajoelhou-se ao lado do corpo de Lúpus, o coração apertado. Ele passou a mão pelo pelo cinzento agora sujo de sangue, lembrando-se de todas as aventuras que viveram juntos. Era Lúpus quem sempre o incentivava a explorar a floresta, quem o alertava dos perigos, e quem partilhava da sua solidão em meio aos mistérios do seu passado.
"Eu te prometo, Lúpus... Eles vão pagar por isso", murmurou Aric, sentindo as lágrimas a escorrerem pelo seu rosto.