Dois dias se passaram desde aquela noite no beco. O sol da manhã entrava pela janela, banhando o quarto com sua luz suave. Em uma cama improvisada, Candel começou a mexer-se, despertando lentamente. Sua cabeça doía, e as memórias estavam embaralhadas, como se tivessem sido jogadas ao vento e recolhidas de qualquer maneira.
Ao abrir os olhos, a primeira coisa que viu foi uma garota loira, dormindo numa cadeira ao lado da cama. Seus cabelos dourados caíam em cascata sobre os ombros, e seu rosto, apesar de exausto, exibia uma expressão tranquila. Candel franziu a testa, tentando lembrar-se de como havia chegado ali, mas tudo o que conseguia era um borrão de emoções e uma sensação de raiva incontrolável.
Ele tentou levantar-se, mas uma dor aguda em suas costelas o fez gemer. A garota acordou imediatamente, seus olhos azuis se arregalando de surpresa ao vê-lo acordado.
"Você está acordado!" ela exclamou, visivelmente aliviada. "Eu... eu estava preocupada."
Candel a observou em silêncio por um momento antes de finalmente falar. "Onde estou?"
"Na minha casa," ela respondeu, levantando-se da cadeira. "Eu te trouxe aqui depois... depois do que aconteceu no beco."
A palavra "beco" acionou uma memória vaga em sua mente—os homens, a garota, a explosão de luz. Ele se lembrou de ter ficado furioso, mas o que havia acontecido depois disso ainda era um mistério para ele.
"Por que você me ajudou?" perguntou ele, sua voz fria e sem emoção.
A garota pareceu surpresa pela pergunta. "Como assim? Você estava ferido, e aqueles homens... você os salvou. Era o mínimo que eu podia fazer."
"Eu não pedi sua ajuda."
Ela franziu a testa, cruzando os braços. "Você é sempre assim? Tão ingrato?"
Candel desviou o olhar, incapaz de responder. Não era ingratidão o que sentia, mas sim uma estranha sensação de desconexão com o mundo ao seu redor. Ele sabia que deveria sentir algo—gratidão, talvez, ou pelo menos alívio—mas tudo o que sentia era um vazio sem fim.
"Qual é o seu nome?" perguntou ela, tentando mudar de assunto.
"Candel," respondeu ele, simplesmente.
"Eu sou Beatriz Rezende," disse ela, com um leve sorriso. "Prazer em conhecê-lo, Candel."
Ele não respondeu, apenas observou-a em silêncio. Beatriz parecia um pouco desconcertada pela falta de resposta, mas não insistiu. Em vez disso, ela estendeu a mão para ele.
"Vem, você deve estar com fome. Vamos sair um pouco, tomar um ar fresco."
Candel hesitou, mas no fim aceitou a mão dela, levantando-se da cama com cuidado. Seu corpo ainda doía, mas ele se recusava a mostrar qualquer sinal de fraqueza.
Eles saíram para as ruas da capital, e Beatriz tentou quebrar o gelo, falando sobre os pontos turísticos e a história da cidade. Ela apontava para os edifícios, os mercados movimentados, e contava histórias sobre os heróis de Valtara e suas aventuras.
Mas Candel permaneceu em silêncio, com a expressão inalterada. Ele observava tudo com uma curiosidade distante, sem realmente se envolver.
Beatriz, percebendo a resistência dele, suspirou. "Você sempre foi assim tão... fechado?"
Candel olhou para ela, seus olhos escuros encontrando os dela. "Eu não sei ser diferente."
Ela sorriu, um pouco triste. "Eu também não sou exatamente a pessoa mais sociável, mas acho que podemos aprender juntos. O que você acha?"
Ele não respondeu, mas havia algo na maneira como ele desviou o olhar que sugeria que suas palavras haviam tocado em algum lugar profundo. Eles continuaram caminhando, com Beatriz tentando animar a tarde.
Quando o sol começou a se pôr, eles se encontravam em uma escadaria que levava a um parque elevado, de onde se podia ver toda a cidade. Beatriz estava prestes a tropeçar em um degrau quando Candel, instintivamente, a segurou pela cintura, impedindo a queda. Ela ofegou, surpresa pela proximidade. Beatriz tinha 15 anos na época, então não havia muita diferença entre suas idades.
"Obrigada," disse ela, seu rosto corando levemente enquanto eles permaneciam assim, por um momento, mais perto do que haviam estado o dia inteiro.
Foi então que, de repente, um cocô de pombo caiu do céu, atingindo Beatriz diretamente na cabeça. Candel, que ainda segurava sua cintura, observou a cena com uma surpresa momentânea antes de algo inusitado acontecer—ele deu um leve sorriso, quase imperceptível, mas genuíno.
Beatriz, indignada, limpou-se o melhor que pôde, mas ao ver o sorriso dele, não pôde deixar de rir. "Isso foi... inesperado."
Candel soltou-a, ainda com aquele sorriso sutil nos lábios. Pela primeira vez, ele sentiu algo quebrando o gelo ao redor de seu coração, algo que ele não sentia há muito tempo.
No dia seguinte, Beatriz se encontrou com Candel novamente, desta vez com um propósito diferente.
"Eu queria te dizer uma coisa," começou ela, enquanto eles caminhavam pelo mesmo parque onde haviam estado na noite anterior. "Eu sou estudante na Academia de Valtaran. Minha frequência é ultra-violeta, mas... bem, eu não sou muito boa em manipular fótons. Na verdade, sou horrível."
Candel ouviu-a em silêncio, esperando que ela chegasse ao ponto.
"Eu acho que você deveria se matricular lá," disse ela, de repente. "Você tem... algo especial. Algo que eu nunca vi antes. Se você aprender a controlar isso, pode se tornar alguém realmente poderoso."
Candel parou de andar e olhou para ela, seus olhos brilhando com uma leve curiosidade. "Por que você se importa?"
Beatriz deu de ombros. "Porque... porque eu acho que você merece uma chance. E porque eu sei o que é se sentir... perdido."
Ele ficou em silêncio por um longo momento, considerando as palavras dela. Finalmente, ele assentiu. "Eu vou."
Beatriz sorriu, sentindo uma onda de alívio. "Ótimo! Você não vai se arrepender."
Enquanto eles continuavam caminhando, Candel não pôde deixar de sentir que, talvez, pela primeira vez em muito tempo, ele estivesse dando um passo na direção certa—um passo em direção ao futuro, longe das sombras do seu passado.