Ren era o filho de um casal comum, com empregos comuns, que viviam em uma casa comum, em um bairro comum. Apesar de serem pessoas simples e, às vezes, passarem por dificuldades, eram felizes. O amor que Ren recebia dos pais era incondicional, tornando cada dia leve e cheio de calor. Para ele, o mundo parecia seguro, um lugar onde nada de ruim poderia acontecer.
Porém, logo isso se provou ser apenas uma ilusão.
O garoto tinha seis anos quando a invasão aconteceu. Sua mãe estava o arrumando para ir à escola quando o céu, de repente, escureceu, e uma mancha avermelhada o cortou ao meio. Logo em seguida, criaturas humanoides montadas em monstros alados emergiram da fenda e começaram a atacar as pessoas sem piedade.
Os pais de Ren eram espertos e conseguiram, por meses, fugir da ameaça dos aethyris, abrigando-se no subsolo onde antes funcionava o metrô da cidade. Mas, como qualquer família, tinham suas necessidades. Precisavam sair em busca de suprimentos, e foi em uma dessas saídas que uma dupla de aethyris os encurralou.
O desespero tomou conta. Sabiam que não havia escapatória daquela vez. Em um último ato de amor e desespero, os pais de Ren o empurraram para fora da loja de conveniência onde se escondiam. Com os poucos produtos inflamáveis que encontraram, eles se sacrificaram, detonando o local e levando consigo os dois aethyris que os haviam encurralado. O sacrifício foi o preço pago para salvar o filho que amaram mais que tudo.
Ren sobreviveu, mas o calor e os estilhaços da explosão o atingiram em cheio. Seu rosto, braços e torso foram consumidos por queimaduras profundas. Um dos olhos foi perfurado por cacos de vidro que voaram com a força do impacto. As feridas eram fatais, e a dor que atravessava seu corpo era insuportável. Contudo, nada disso se comparava à verdadeira dor que ele sentia: a perda de sua família.
Deitado no chão, imobilizado, Ren fixava o olhar na loja em chamas, sentindo um vazio profundo, maior do que sua mente de criança podia compreender.
A explosão atraiu a atenção de um pequeno grupo de sobreviventes que passava por perto. Por sorte, entre eles havia um sorcerer com habilidades de cura. Embora ele tenha conseguido estabilizar Ren, seus poderes eram limitados e o tratamento deixou sequelas profundas. O garoto perdeu o olho esquerdo de forma irreversível, agora uma órbita vazia que nunca seria preenchida novamente. A sensibilidade em grande parte do seu rosto se foi, deixando a pele rígida e sem vida, como se estivesse coberta por uma máscara insensível ao toque. Os tendões de suas mãos, gravemente danificados, comprometiam seus movimentos, tornando tarefas simples um esforço doloroso.
O mais chocante, no entanto, eram as cicatrizes. As queimaduras haviam deformado sua pele, cobrindo seu rosto, braços e pernas com cicatrizes grossas, enrugadas e irregulares. Seu rosto, outrora comum, agora parecia o de uma criatura estranha. A carne derretida pela explosão se esticava de forma grotesca, desfigurando suas feições a ponto de ser quase impossível reconhecer o garoto que ele havia sido.
Devido à sua aparência, Ren enfrentou enormes dificuldades para sobreviver. Os adultos se recusavam a ajudar uma criança com um visual tão marcante, e isso o deixava à mercê da fome e do frio. Ele passava dias sem comer, era constantemente perseguido e quase morto por aethyris, além de ter que lidar com a solidão esmagadora. Mesmo depois de crescer, aos seus vinte e dois anos, as dificuldades persistiam. Agora, além dos aethyris, ele também era caçado por sorcerers e humanos, que o viam como uma ameaça em potencial.
Para essas pessoas, Ren não era um ser humano, mas sim uma aberração. Infelizmente, aqueles que poderiam oferecer comida e abrigo eram os que mais o rejeitavam. Sem alternativas, Ren era obrigado a roubar para sobreviver. Em várias ocasiões, ele foi capturado, espancado e, em casos extremos, até torturado.
Aquela noite estava fria. O vento cortante fazia as chamas no acampamento balançarem, projetando sombras inquietas pelas tendas. Ren se movia como uma sombra entre elas, com passos leves para não chamar a atenção. Suas mãos trêmulas, tanto pelas sequelas quanto pelo nervosismo, seguravam um pedaço de pão que ele havia conseguido roubar de uma das barracas de suprimentos. Era pouco, mas seria o suficiente para mais uma noite.
De repente, um grito rompeu o silêncio da noite, ecoando como um alarme. Passos apressados se aproximavam.
— Lá está ele! — gritou uma voz furiosa.
O coração de Ren acelerou. Sem pensar duas vezes, ele correu. Os gritos aumentaram à medida que mais pessoas se juntavam à perseguição.
— Peguem ele! Não o deixem escapar! — As vozes eram cheias de ódio, e Ren sabia o que o aguardava se fosse capturado.
Seus pulmões queimavam com o esforço, mas ele não parava. As ruas destruídas dificultavam a fuga, mas, conhecendo cada canto como a palma da mão, ele se esgueirou por um beco estreito, passando entre escombros e entulhos.
Seu objetivo era claro: o buraco. Sua única casa, o esconderijo que ele havia encontrado nos subterrâneos da cidade. Mais gritos, mais passos. Mas ele sabia que estava perto. Seus pés escorregavam no chão sujo, mas Ren não podia parar.
Com um último impulso, ele chegou à entrada — um vão estreito entre os escombros que descia para uma pequena caverna úmida e escura. Ele se jogou lá dentro, deslizando pela terra fria até finalmente cair no abrigo improvisado que chamava de lar. Os gritos lá fora foram se distanciando, abafados pelo solo e pelas pedras.
Ren ficou imóvel por alguns segundos, respirando com dificuldade, seu único olho fechado enquanto o alívio o dominava. Ele estava seguro, pelo menos por enquanto.
Dentro do buraco, havia pouco espaço. Algumas cobertas rasgadas e sujas estavam empilhadas em um canto, e uma lata de cerveja vazia servia como uma precária vela, cuja chama já não existia mais. Ren se arrastou até um dos cantos e ajeitou o pequeno pedaço de pão que segurava com tanto cuidado. Suas mãos tremiam como sempre. Ele limpou o chão sujo ao redor, como se tentasse criar um espaço digno, por menor que fosse, para comer.
Com uma mordida hesitante, o gosto do pão velho e seco preencheu sua boca, mas não importava. Ren engoliu com dificuldade, o nó em sua garganta maior do que o pedaço que ele tentava mastigar. Enquanto comia, as lágrimas começaram a brotar do seu olho, silenciosas e pesadas, escorrendo por seu rosto marcado. Ele limpou-as com pressa, mas outras vieram.
Ele comia em meio às lágrimas, e o pequeno buraco parecia engolir sua solidão. Ren não chorava apenas pelo pão, mas pela vida que foi forçado a viver.
Ren se acomodou em seu esconderijo, enrolando-se em suas cobertas rasgadas para se proteger do frio. A sensação de calor que ele buscava estava distante, e a friagem cortante do chão fazia seus músculos se contraírem involuntariamente. Ele se encolheu ainda mais, tentando conservar o pouco de calor que tinha.
O rapaz fechou o olho, o sono vindo lentamente, mas as preocupações e o medo nunca estavam completamente longe. Ele se forçou a relaxar, tentando se perder na escuridão envolvente, mas o pensamento de que sua paz poderia ser interrompida a qualquer momento era constante.
Na superfície, as pessoas do acampamento não haviam desistido. A busca por Ren continuou e, ao longo da noite, um grupo determinado de sobreviventes fez uma última ronda pela área. Eles vasculharam os escombros e encontraram o buraco escondido. Um dos homens apontou para a entrada, um olhar de determinação misturado com cansaço em seu rosto.
Os humanos se aproximaram, um deles jogando uma pedra para dentro do buraco. Ο som abafado ecoou. Ren, acordado pelo barulho, levantou-se lentamente, o olho arregalado pela súbita invasão de luz e sons em seu esconderijo. Ele ouviu os murmúrios e os passos pesados acima, e seu coração começou a bater mais rápido. Sentiu um frio crescente que não tinha relação com o clima.
Ren tentou se encolher ainda mais, mas foi em vão. Mãos rudes agarraram seus tornozelos.
— Achamos o desgraçado! — gritou um dos humanos, com um tom triunfante. Ren foi puxado completamente para fora, seus olhos arregalados e aterrorizados, lutando contra o aperto das mãos que o seguravam. Ele tentou resistir, mas estava em desvantagem, e a sensação de estar novamente à mercê dos outros era sufocante.
— Nossa, que coisa é essa? — um dos espectadores se perguntou, visivelmente enojado. — O cabelo dele é nojento. — O humano tampou o nariz, como se os cabelos longos e pretos de Ren estivessem apodrecendo.
— Só o cabelo? — outro comentou com desdém.
Ren, fraco e exausto, começou a sentir a presença de várias figuras ao seu redor, observando-o com olhares de curiosidade e repulsa.
— O que vamos fazer com esse bicho? — um dos humanos perguntou.
— Vamos meter uma bala na cabeça dele por precaução. Vai que essa coisa é perigosa — A voz era fria e decisiva.
Quando ouviu isso, Ren tentou fugir, mas um som de disparo rasgou o ar e o garoto sentiu uma pressão na perna. O estalo da arma foi tão ensurdecedor que fez os pássaros ao redor levantarem voo em um pânico. Uma dor excruciante percorreu sua perna, e ele gritou, um grito agonizante que chocou até mesmo o autor do disparo. As lágrimas começaram a escorrer por seu olho, misturando-se com o sangue que começava a escorrer de um buraco enorme em sua perna. Ele olhou para o ferimento, o choque e a dor deixando-o paralisado, enquanto seu corpo tremia.
— Credo, fiquei até arrepiado. Vamos deixar essa coisa aí. Bora — sugeriu o humano que machucou Ren claramente abalado com a cena que ele próprio causou.
Os outros humanos, também visivelmente desconfortáveis, concordaram. Enquanto eles se afastavam, Ren permaneceu imóvel no chão, sem saber o que fazer para tratar aquela ferida assustadora. Sem muitas opções, ele decidiu desonrar o sacrifício que seus pais haviam feito por ele e desistr de sua vida. Em um gesto de desespero, ele fechou o olho e, em uma pequena oração, pediu desculpas aos seus pais, deixando que a dor e o cansaço finalmente levassem sua consciência.
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Tempo de espera até que o usuário desperte: 16 horas e 12 minutos.
Esta foi a primeira vez em dezesseis anos que Ren conseguiu dormir de verdade. Sem sentir a dor nos tendões danificados, sem o vazio no estômago causado pela fome constante, sem o frio que cortava sua pele sensível, e sem o medo angustiante de ser pego pelos humanos e aethyris.