Quando estamos com raiva ou medo, é normal que nossa mente nos pregue peças, e é importante que saibamos discernir entre a realidade e a imaginação. Eu já tive várias ilusões, que não passavam de... ilusões. Mas também já passei por coisas que foram bem reais, e disso, tenho certeza.
Sou especialista em distinguir o real do imaginário, ou já teria enlouquecido faz tempo, e a história que estou prestes a contar foi um evento bem real, mesmo que não pareça.
Me chamo Allister Collins e na época, eu não sabia ainda que aquilo havia sido de fato real. Ou apenas não queria acreditar que fosse.
Na minha cidade natal, na qual morei com meus pais até os vinte anos, havia um açougue no final da rua nomeado O Boi.
Era o único açougue da cidade, e se não fosse, seria o único a ter clientela.
A carne de lá era a melhor carne que alguém poderia desejar, a melhor carne que já comi em minha vida. Macia, saborosa, com um aroma de dar água na boca e uma aparência saudável, melhor que qualquer prato gourmet.
A carne, até onde eu sabia aos meus dezessete anos, vinha de outra cidade, pois não havia criação de gado em lugar nenhum por perto.
O açougueiro Jonas, um rapaz simpático e meio excêntrico, não o julgo, me consideram também, sempre conversava animadamente com qualquer cliente que fosse atender e fazia questão de cortar as peças de carne na nossa frente, para mostrar eficiência e preparo na hora.
Ele era bem conhecido na cidade, até porque, era uma cidade pequena. Porém, o açougue tinha uma única regra: Não atendia mais ninguém após as dez da noite.
Nunca precisei comprar nada lá depois das dez, mas me questionava seguidamente sobre os motivos da regra, que mais tarde, infelizmente, vim a descobrir.
Em um dia normal, meus pais foram convidados para uma festa de aniversário de um amigo da família. Eles iriam comparecer e levariam minha irmã junto, me deixando em casa.
Minha mãe, antes de sair, deu ordens para eu comprar uma peça da maravilhosa carne do Boi. Eu, obviamente, procrastinei a tarde toda até notar que já eram nove e cinquenta da noite.
Com um sobressalto, levantei do sofá, peguei o dinheiro e fui correndo para o Boi. Apesar de já ser dez horas, obviamente Jonas abriria uma exceção para um amigo, afinal, não éramos estranhos.
Ao chegar no açougue, vi que as luzes ainda estavam acesas, mesmo com a placa "Fechado" brilhando em neon.
Suspirei e cogitei voltar para casa, mas o local estava tão iluminado, que supus que Jonas ainda estava trabalhando.
Bati no vidro do estabelecimento, mas ninguém atendeu. Cheguei a gritar, mas ainda assim, nada do Jonas.
Decidi então abrir a porta, torcendo para não estar trancada. Por sorte, ela abriu, e eu pude entrar, procurando por Jonas.
Chamei-o algumas vezes, mas não houve resposta, então olhei para o balcão e para os vidros das carnes à mostra. Estavam vazios, nem uma peça sequer havia sobrado. Provavelmente ele havia vendido tudo naquela tarde.
Frustrado e já ouvindo o sermão que levaria de minha mãe por não ter comprado a carne mais cedo, dei a volta e já estava saindo, quando ouvi um barulho, como se algo tivesse caído no chão e em seguida, um grito.
Parei no lugar e vi a porta marrom no canto atrás do balcão com a placa "Somente Funcionários" pendendo para um lado.
Olhei ao redor e, como não havia ninguém, segui o barulho, afinal, Jonas poderia estar em perigo.
Abri a porta e entrei. O lugar era escuro, exceto pelas luzes do frigorífico, que brilhava em azul mostrando várias peças congeladas nos ganchos de metal.
Lá dentro era frio, e toda aquela carne dava uma sensação assustadora. Chamei Jonas, mas ele novamente não apareceu.
Fui seguindo o corredor das carnes, observando ao redor, pensando se Jonas poderia me vender uma peça congelada mesmo.
Eu estava distraído demais para perceber o que havia no final do corredor, e quando eu percebi, parei imediatamente, congelando no lugar, competindo com as carnes penduradas.
À minha frente, estava o que parecia ser uma fantasia muito bem elaborada de um touro, com chifres pontudos e compridos, pelos escuros e arrepiados, focinho melado de sangue e língua de fora.
À primeira vista, pensei ser um touro real, pois parecia estar pendurado também, como as outras carnes. Porém, ao ver que ele possuía mãos humanas e pés ao invés de patas, mudei minha visão. De suas mãos, brotavam unhas compridas e também ensanguentadas como o focinho. Em seus pés, manchas de lama eram visíveis, como se alguém tivesse recentemente usado o traje.
Aquilo era extremamente realista, principalmente seus olhos, que estavam abertos, com as órbitas vazias injetadas de vermelho olhando para o nada.
Ergui minha mão, a fim de sentir a textura dos pelos, quando fui interrompido por alguém atrás de mim.
- Quem lhe deu permissão para entrar aqui? - Jonas pediu, com uma expressão severa em seu rosto.
Eu o observei assustado, encarando-o.
- Me perdoe. Eu ouvi um barulho e não te achei... vim comprar uma peça - falei sem jeito.
- Sabe que horas são? Já passam das dez. Volte amanhã! - ele falou com uma pontada de raiva.
Na época, mal eu sabia que não compraria carne alguma se fosse lá pela manhã.
Eu entrei em pânico e comecei a explicar meu lado da história para ele que, ao dar uma olhada rápida para o touro em nossa frente, decidiu enfim me ajudar.
Jonas me levou para o balcão com certa pressa e, em silêncio, empacotou uma peça de carne para mim. Vi que as mangas de sua blusa estavam ensanguentadas, mas ignorei, pensando que ele havia se sujado com a reposição do estoque.
Fiquei pensando no motivo daquela coisa no frigorífico, então decidi perguntar.
No momento em que fiz a pergunta, Jonas mudou da água para o vinho e, com uma expressão apavorada, me mandou sair dali.
Tentei o acalmar e fazê-lo parar de gritar, mas ele não ligou, continuou gritando e me mandando embora.
Eu já estava fora do açougue e ainda conseguia ouvir seus gritos:
- Fora daqui! Ande logo, CORRA!
Cheguei em casa suando frio e pensando no que havia acabado de acontecer. Deixei a carne na geladeira e decidi não pensar mais nisso.
Mas, como quem tem boa imaginação, tive lindos sonhos sobre aquele açougue e sobre Jonas. Documentários de assassinos em série matando suas vítimas e vendendo sua carne como de porcos, ou neste caso, de bois, percorreram minha mente a noite toda, e várias teorias sobre o sabor especial da carne e o horário da compra impregnavam minha mente.
Não foi nenhuma surpresa para mim quando, no meio da madrugada, se ouviu o barulho de viaturas da polícia percorrendo a cidade. Eu já sabia comigo, que aquilo tinha algo a ver com Jonas.
No dia seguinte, toda minha família acordou cedo. Não havíamos dormido bem naquela noite, e meu pai já estava tomando a terceira xícara de café puro, quando ouvi minha mãe e a vizinha no quintal.
Odete, nossa vizinha de lado, sempre ficava sabendo de tudo antes de todos. Não sei como, mas ela sabia.
Minha mãe estava escorada na cerca do quintal, com um olhar preocupado no rosto.
Imediatamente, me aproximei e pude ouvir a fofoca. Imaginei que teriam descoberto algo terrível sobre a origem daquela carne, que Jonas mentiu sobre sua importação, e caçava suas próprias peças na cidade, vestido como um maluco em uma fantasia de touro.
Antes fosse...
Odete estava tão apavorada quanto minha mãe quando contou que a polícia encontrou Jonas morto no açougue.
Naquele momento, compartilhei da expressão facial delas.
De acordo com o que disseram por aí, Jonas foi encontrado morto e exposto na vitrine de carnes, esquartejado e pendurado nos ganchos de ferro, como gado.
Minha mãe me abraçou, lembrando que eu estive lá noite passada, e que poderia estar lá agora, exposto na vitrine junto com Jonas.
Após minha mãe se acalmar, perguntei a Odete se falaram mais alguma coisa, sobre uma fantasia ou algo assim.
Não foi encontrado nenhum tipo de fantasia no açougue ou no frigorífico, somente as carnes penduradas.
Lembrei das últimas palavras de Jonas antes de me expulsar do açougue e percebi agora que elas podiam ser interpretadas, não como ameaças, mas como medidas de precaução.
Naquela noite, Jonas não estava bravo comigo. Ele temia por mim, e enfim, descobri por que O Boi não atendia clientes depois das dez.
Porque aquele era o horário em que Ele acordava.
Um tempo depois, quando toda a cidade esqueceu e a normalidade mundana novamente recaiu sobre todos, o açougue foi vendido, e o lugar agora é usado por um sapateiro.
Dizem as pessoas, que se você for até lá às dez da noite, pode ouvir mugidos altos de um touro feroz, mesmo todos sabendo que não há criação de gado nesta cidade.
Hoje, apesar de anos após o ocorrido, às vezes ainda sinto vontade de uma bela peça de carne do Boi, da qual eu nunca descobri o motivo de seu estupendo sabor.
***
Este conto faz parte da Coletânea de Contos Perturbadores Allister Collins, disponível na Amazon. Se por ventura tiver gostado de O Açougue, não deixe de ler os outros contos. Seria você um amante do sobrenatural, lúgubre e perturbador?
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Coletânea de Contos Perturbadores Allister Collins
Prólogo
Você tem um segredo? Um segredo que nunca pensou em contar para ninguém? Nem para os seus pais ou irmãos, nem para o seu melhor amigo, familiar, vizinho ou... psiquiatra?
Eu tenho um desses segredos, dos quais pensamos nunca contar a ninguém, imaginando que o levaremos para o túmulo. Na verdade, não é bem um segredo, mas vários. Uma coletânea de segredos que tive a liberdade de chamar de contos. Mas agora, eu finalmente irei tirar um peso da consciência. Eu vou contar esses segredos para você.
Me chamo Allister Collins, e o motivo de eu nunca ter compartilhado com ninguém o que você está prestes a descobrir é simples: ninguém acreditaria, e me chamariam de louco. Talvez eu realmente seja um pouco insano, visto que me encontro no Sanatório Higgins, e a previsão de eu receber alta em alguns dias não muda o fato de que estive aqui. Visto que agora não há nada a perder, contarei cada segredo com deleite, e me divertirei sabendo que você irá apreciar cada um dos acontecimentos narrados, não em ordem cronológica, não em ordem alfabética, mas sim fora de qualquer seguimento tedioso ou sequência banal.
Eu lhe contarei sobre o meu dom sobrenatural de estar sempre no lugar errado na hora certa, da frequente companhia indesejada de coisas não humanas e da incrível capacidade de sair ileso de tudo no final. Até porque, é preciso ter alguém para contar a história.
Acredito que seja um ato fútil eu lhe avisar que cada relato é real - foi o que eu disse para as pessoas que me puseram aqui. Mas acho sábio de sua parte que não veja este livro apenas como um divertimento para as mentes lúgubres alheias, mas sim como um aviso para que quem quer que o leia passe a observar o mundo de uma forma diferente. Da mesma forma que eu observo.
A.C.
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