Todo período letivo da Academia começava do mesmo jeito: o sorteio da admissão, seguido por uma onzena inteira de entrevistas. Elas eram uma espécie de mal necessário.
Não duvido que o processo tenha começado com sensatez. No tempo em que a Academia era menor, eu podia imaginar as entrevistas como uma coisa real. Uma oportunidade para que o aluno conversasse com os professores sobre o que tinha aprendido. Um diálogo. Um debate.
Mas, já agora, a Academia recebia mais de mil alunos. Não havia tempo para debates. Em vez disso, cada estudante era submetido a uma saraivada de perguntas em poucos minutos. Do jeito que as entrevistas eram curtas, uma única resposta incorreta ou uma hesitação mais prolongada podiam surtir um efeito dramático no custo da taxa escolar.
Antes das entrevistas, os alunos estudavam obsessivamente. Depois delas, bebiam para comemorar ou para se consolar. Por causa disso, durante os 11 dias de admissão, quase todos os estudantes pareciam ansiosos e esgotados, na melhor das hipóteses. Na pior, vagavam pela Academia feito secudos, de olhos fundos e rosto macilento pela falta de sono, excesso de bebida ou ambas as coisas.
Pessoalmente, eu achava estranha a seriedade com que as outras pessoas encaravam todo o processo. A vasta maioria dos alunos compunha-se de nobres ou de membros de ricas famílias de mercadores. Para eles, a taxa escolar alta era um inconveniente que os deixava com menos dinheiro miúdo para gastar com cavalos e prostitutas.
Para mim, o risco era maior. Depois que os professores estipulavam a taxa, ela não podia ser alterada. Portanto, se a minha fosse alta demais, eu seria barrado na Academia até poder pagar.
O primeiro dia de admissão tinha sempre um ar festivo. O sorteio das datas de entrevista ocupava a primeira metade do dia, o que significava que os estudantes azarados que tiravam os primeiros horários eram obrigados a enfrentar suas entrevistas poucas horas depois.
Quando cheguei, havia longas filas serpeando pelo pátio, enquanto os alunos que já haviam tirado suas fichas circulavam de um lado para outro, reclamando e tentando comprar, vender ou trocar horários.
Não vi Alastor nem Leif em parte alguma, por isso entrei na fila mais próxima e procurei não pensar em quão pouco tinha na bolsa: um crimo e três iyanes. Em certo ponto da minha vida, isso teria parecido todo o dinheiro do mundo. Mas, para a taxa escolar, não chegava nem perto de ser o bastante.
Havia carroças espalhadas, vendendo linguiça e castanhas, sidra quente e cerveja. Senti o cheiro de pão quente e gordura de uma carroça próxima. Havia pilhas e mais pilhas de tortas de carne de porco, para o tipo de pessoa que podia pagar por essas coisas.
O sorteio era sempre feito no maior pátio da Academia. A maioria das pessoas o chamava de praça do mastro, embora algumas, de memória mais longa, se referissem a ele como o Salão das Perguntas. Eu o conhecia por um nome ainda mais antigo, a Casa do Vento.
Observei algumas folhas rolarem pelas pedras e, ao erguer a cabeça, vi Faela me olhando de onde estava, 30 ou 40 pessoas mais perto do começo da fila. Ela me deu um sorriso caloroso e um aceno. Retribuí o aceno e ela saiu do seu lugar, caminhando para onde eu estava.
Faela era linda. O tipo de mulher que se esperaria ver num quadro. Não era aquela beleza trabalhada e artificial que se costuma ver na nobreza; Faela era natural e descontraída, de olhos grandes e lábios carnudos, que sorriam constantemente. Ali na Academia, onde o número de homens era 10 vezes maior que o de mulheres, ela se destacava como um cavalo num rebanho de ovelhas.
— Importa-se se eu esperar com você? — perguntou, parando a meu lado. — Detesto não ter com quem conversar. — Deu um sorriso cativante à dupla de homens enfileirados atrás de mim. — Não estou furando a fila — explicou. — Só estou vindo mais para trás.
Eles não fizeram objeção, embora seus olhos corressem de um lado para outro entre Faela e eu. Quase pude ouvi-los se perguntando por que uma das mulheres mais encantadoras da Academia desistiria do seu lugar na fila para ficar junto de mim.
Era uma pergunta justa. Eu mesmo estava curioso.
Desloquei-me para o lado, abrindo espaço para ela. Paramos ombro a ombro por um instante, sem que nenhum dos dois falasse.
— O que você vai estudar neste período? — perguntei.
Faela tirou o cabelo do ombro e o jogou para trás.
— Vou continuar com meu trabalho no Arquivo, eu acho. Um pouco de química. E o Brandon me convidou para Matemática dos Múltiplos.
Tive um leve arrepio.
— Números além da conta. Não sei nadar nessas águas.
Faela deu de ombros e os cachos longos e escuros que ela havia empurrado para trás aproveitaram a oportunidade para cair de novo para a frente, emoldurando seu rosto.
— Não é tão difícil depois que você pega o jeito. Mais parece um jogo que qualquer outra coisa — disse. Inclinou a cabeça para mim. — E você?
— Observação na Iátrica — respondi. — Estudo e trabalho na Ficiaria. E simpatia, se o Lal me aceitar. Eu também deveria dar uma aprimorada no meu kiaru.
— Você fala kiaru? — perguntou ela, parecendo surpresa.
— Eu me viro. Mas o Alas disse que a minha gramática é vergonhosamente ruim.
Faela meneou a cabeça, depois me olhou de soslaio, mordendo o lábio.
— O Elohkar também me chamou para entrar na turma dele — disse, com a voz carregada de apreensão.
— O Elohkar tem uma cadeira? — perguntei. — Eu achava que não o deixavam lecionar.
— Ele está começando neste período — respondeu Faela, lançando-me um olhar curioso. — Achei que você estaria nela. Não foi ele o seu padrinho, quando você foi promovido a A'scor?
— Foi.
— Ah — murmurou ela, parecendo sem jeito, e logo acrescentou: — Provavelmente, ele só não o chamou ainda. Ou então, está planejando monitorar você em separado.
Descartei o comentário dela, embora ficasse mordido com a ideia de ter sido deixado de fora.
— Com o Elohkar, quem sabe? — falei. — Se ele não é louco, é o melhor ator que já conheci.
Faela começou a dizer alguma coisa, olhou em volta, nervosa, e chegou mais perto. Seu ombro roçou no meu e seu cabelo cacheado fez cócegas na minha orelha, enquanto ela perguntava, baixinho:
— Ele jogou mesmo você do telhado do Aluadouro?
Dei um risinho constrangido.
— É uma história complicada - respondi e mudei de assunto, de modo muito canhestro. — Como é o nome da cadeira dele?
Faela esfregou a testa e deu uma risada frustrada.
— Não faço a menor ideia. Ele disse que o nome da cadeira é o nome da cadeira. — Faela olhou para mim. — O que quer dizer isso? Quando eu for à seção de Registros e Listas, isso estará lá, sob o nome de "O Nome da Cadeira"?
Admiti que eu não sabia e, desse ponto em diante, foi um pequeno passo para compartilharmos histórias do Elohkar.
Faela disse que um escriba o apanhara nu no Arquivo. Eu tinha ouvido falar que uma vez ele havia passado uma onzena inteira andando pela Academia com os olhos vendados. Faela ouvira dizer que ele tinha inventado uma língua partindo do zero. Eu soubera que ele havia começado uma briga numa das mais sórdidas tabernas locais porque alguém insistira em dizer a palavra "utilizar", em vez de "usar".
— Também ouvi falar disso - comentou Faela, rindo. — Só que o lugar foi a Pônei Dourado e a pessoa era um baronete que não parava de usar a palavra "ademais".
Num piscar de olhos, estávamos no começo da fila.
— Vanitas, filho de Meridan — identifiquei-me.
A mulher de ar enfadado assinalou meu nome e tirei uma ficha de marfim liso do saco de veludo preto. Dizia: DIA-DA-SEGA, MEIO-DIA. O oitavo dia do exame de admissão, muito tempo para eu me preparar.
Faela tirou sua ficha e nos afastamos da mesa.
— O que você tirou? — indaguei.
Ela me mostrou seu quadradinho de marfim. Dia-da-pera, ao soar o quarto sino.
Tinha sido uma sorte incrível, um dos horários mais distantes que havia.
— Puxa! Parabéns!
Faela deu de ombros e guardou a ficha no bolso.
— Para mim, dá na mesma. Não faço muita questão de estudar. Quanto mais eu me preparo, pior me saio. Só serve para deixar nervosa.
— Nesse caso, você devia trocar a ficha — sugeri, apontando para a multidão de alunos que circulava. — Alguém pagaria um crimo inteiro para conseguir esse horário. Talvez mais.
— Também não sou muito de barganhar. Apenas presumo que a ficha que eu tirar vai dar sorte e fico com ela.
Longe da fila, não tínhamos nenhuma desculpa para permanecer juntos. Mas eu estava gostando da companhia dela e Faela não parecia terrivelmente aflita para sair correndo, por isso perambulamos sem rumo pelo pátio, com a multidão circulando à nossa volta.
— Estou morrendo de fome — disse ela, de repente. — Quer almoçar mais cedo em algum lugar?
Eu tinha uma dolorosa consciência da leveza da minha bolsa. Se estivesse mais pobre, teria que por uma pedra dentro dela para impedir que esvoaçasse na brisa. Minhas refeições na taberna do Grilo eram gratuitas, porque eu tocava lá. Assim, gastar dinheiro com comida em outro lugar, especialmente tão perto da admissão, seria uma tolice completa.
— Eu adoraria — respondi, sinceramente. E aí, menti: — Mas preciso dar uma rodada por aqui e ver se alguém se dispõe a trocar de horário comigo. Sou pechincheiro de longa data.
Faela remexeu no bolso.
— Se você está querendo mais tempo, pode ficar com o meu.
Olhei para a ficha entre seu polegar e indicador, dolorosamente tentado. Mais dois dias de preparação seriam uma bênção. Ou eu poderia ganhar um crimo, trocando-a com outra pessoa. Talvez dois.
— Eu não gostaria de tirar a sua sorte — disse-lhe, sorrindo. — E, com certeza, você não quer nada com a minha. Além disso, já foi muito generosa comigo — acrescentei, ajeitando a capa nos ombros num gesto deliberado.
Faela sorriu ao ouvir isso e estendeu a mão, deslizando os nós dos dedos pela frente da capa.
— Que bom que você gosta dela. Mas, no que me diz respeito, ainda estou lhe devendo — disse. Mordeu os lábios, nervosa, depois deixou cair a mão. — Prometa que você me avisa se mudar de ideia.
— Prometo.
Ela tornou a sorrir, deu um meio aceno e saiu andando pelo pátio. Vê-la caminhar por entre a multidão era como observar o vento mover-se na superfície de um lago. Só que, em vez de se formarem círculos na água, eram as cabeças dos rapazes que se viravam para vê-la passar.
Eu ainda estava olhando, quando Alastor parou do meu lado.
— E aí, acabou de flertar? — perguntou ele.
— Eu não estava flertando — respondi.
— Pois devia estar. De que adianta eu esperar educadamente, sem interromper, se você desperdiça uma oportunidade dessas?
— Não é isso. Ela só estava sendo amável.
— É óbvio — disse ele, e seu áspero sotaque cealdamo tornou duas vezes mais denso o sarcasmo em sua voz. — O que você tirou?
Mostrei-lhe minha ficha.
— Você está um dia depois de mim — disse Alastor, me estendendo sua ficha. — Eu troco com a sua por um iyane.
Hesitei.
— Ora, ande logo! — insistiu ele. — Não é como se você pudesse estudar no Arquivo, como o resto de nós.
Lancei-lhe um olhar furioso.
— A sua empatia é impressionante.
— Guardo a minha empatia para quem é esperto o bastante para não deixar o Arquivista-Mor espumando de raiva. Para gente como você, só tenho um iyane na troca. Quer ou não quer ficar com ele?
— Eu gostaria de dois iyanes — respondi, vasculhando a multidão à procura de estudantes com um ar desesperado nos olhos. — Se for possível.
Alastor estreitou os olhos escuros.
— Um iyane e três ocros — disse.
Retribuí o olhar, fitando-o atentamente.
— Um iyane e três. E você fica com o Leif como seu parceiro na próxima vez que jogarmos quatro-cantos.
Ele deu uma bufada de riso e fez que sim. Trocamos as fichas e guardei o dinheiro na bolsa: um crimo e quatro. Um passinho a mais. Depois de pensar por um momento, guardei minha ficha no bolso.
— Não vai continuar trocando? — perguntou Alas.
Balancei a cabeça.
— Acho que vou ficar com esse horário.
Ele franziu a testa.
— Por quê? O que você pode fazer com cinco dias, a não ser se afligir e ficar rodando os polegares?
— O mesmo que qualquer um: me preparar para minha entrevista de admissão.
— Como? — perguntou ele. — Você ainda está banido do Arquivo, não está?
— Há outros tipos de preparação — respondi, com ar de mistério.
Alastor deu um grunhido:
— Isso não soa nada suspeito. E você ainda se pergunta por que as pessoas falam a seu respeito.
— Não me pergunto por que elas falam. Eu me pergunto o que dizem.