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Chapter 101 - C. BÚSSOLA

Não notei que estava sendo seguido ao voltar para a Academia.

Talvez estivesse com a cabeça tão tomada por Alys que restava pouco espaço para qualquer outra coisa. Talvez fizesse tanto tempo que levava uma vida civilizada que os reflexos duramente aprendidos em Notrean estavam começando a se embotar.

É provável que o conhaque de amora também tivesse tido alguma coisa a ver com isso. Droch e eu passamos muito tempo conversando e, juntos, havíamos tomado meia garrafa da coisa. Eu levara comigo o restante, por saber que Leif gostava dessa bebida.

Mas não vem muito ao caso por que não os notei, suponho. O resultado foi o mesmo. Eu ia andando por uma parte mal iluminada da alameda Nilhall quando uma coisa pesada me atingiu por trás na cabeça e fui arrastado feito uma trouxa para um beco próximo, semi-desacordado.

Só fiquei zonzo por um momento, mas, quando recobrei os sentidos, havia uma mão pesada tapando minha boca.

— Tudo bem, malandro — disse em meu ouvido o grandalhão atrás de mim. — Estou com uma faca encostada em você. Se tentar se debater, eu o espeto. E é só.

Senti uma cutucada leve nas costelas, embaixo do braço esquerdo.

— Cheque o visor — disse ele ao parceiro.

Uma silhueta alta foi tudo que pude ver na penumbra do beco. O homem baixou a cabeça, olhando para a mão.

— Não dá para ver.

— Então acenda um fósforo. Temos que ter certeza.

Meu nervosismo começou a desabrochar num pânico completo. Aquilo não era um simples assalto numa viela. Eles nem tinham examinado meus bolsos à procura de dinheiro. Aquilo era outra coisa.

— Sabemos que é ele — disse o homem alto, impaciente. — Vamos fazer o que tem de ser feito e acabar logo com isso. Estou com frio.

— Vamos uma ova. Confira agora, enquanto ele está perto. Já o perdemos duas vezes. Não quero outra confusão como a de Ailen.

— Detesto esse troço — disse o altão, enquanto vasculhava os bolsos, supostamente procurando um fósforo.

— Você é um idiota — retrucou o que estava atrás de mim. — Assim é mais limpo. Mais simples. Nada de descrições confusas. Nada de nomes. Sem preocupação com disfarces. É só seguir a agulha, encontrar o sujeito e acabar com a história.

O tom displicente dos dois me aterrorizou. Esses homens eram profissionais. Percebi, com súbita certeza, que Drazno finalmente tomara providências para garantir que eu nunca mais voltasse a incomodá-lo.

Minha cabeça disparou por um momento e fiz a única coisa em que pude pensar: larguei a garrafa meio cheia de conhaque. Ela se espatifou nas pedras do calçamento e o ar noturno foi subitamente invadido pelo cheiro de amoras.

— Que ótimo — sibilou o altão. — Que tal você deixá-lo tocar um sino enquanto está com a mão na massa?

O grandalhão às minhas costas apertou mais o meu pescoço e me sacudiu com força uma vez só. Como se faria com um filhotinho travesso de cachorro.

— Chega disso — falou, irritado.

Deixei o corpo ficar bambo, na esperança de acalmá-lo, depois me concentrei e murmurei uma simpatia contra sua mão pesada.

— Tadinho — reagiu o homem. — Se você pisou no vidro, azar o se... aaaaaaah! — gritou, assustado, quando a poça de conhaque a nossos pés pegou fogo.

Aproveitei sua distração momentânea e me soltei dele. Mas não fui rápido o bastante. A faca desenhou uma linha de dor viva em minhas costelas quando me desprendi e comecei a correr pelo beco.

Só que minha fuga durou pouco. O beco não tinha saída e acabou numa parede lisa de tijolos. Não havia portas nem janelas, nada que eu pudesse usar para me esconder ou para escalar a parede. Fiquei aprisionado.

Virei-me e vi os dois bloqueando a saída do beco. O grandalhão batia furiosamente na perna, tentando apagar o fogo.

Minha perna também estava em chamas, mas não perdi tempo pensando nisso. Uma queimadura à toa seria o menor dos meus problemas se eu não fizesse alguma coisa depressa.

Olhei em volta mais uma vez, porém o beco era aflitivamente limpo. Não havia nem mesmo um lixo decente que eu pudesse improvisar como arma. Vasculhei freneticamente o conteúdo dos bolsos da capa, numa tentativa desesperada de criar algum tipo de plano. Uns pedaços de arame de cobre inúteis. Sal: será que eu poderia jogá-lo nos olhos deles? Não. Maçã desidratada, pena e tinta, uma bola de gude, barbante, cera...

O grandalhão finalmente apagou as chamas e os dois começaram a avançar lentamente pelo beco. A luz do círculo de conhaque em fogo tremeluziu nas lâminas das facas.

Continuando a examinar meus incontáveis bolsos, encontrei um bolo que não reconheci. Então me lembrei: era o saco de limalha de bissal que eu havia comprado para usar na lamparina de simpatia.

O bissal é um metal leve, prateado, usado em algumas ligas que eu empregaria na construção de minha lâmpada. Monet, sempre um professor cauteloso, tomava o cuidado de descrever os perigos de todos os materiais que usávamos. Se suficientemente aquecido, o bissal se inflamava numa intensa chama incandescente.

Desamarrei depressa o embrulho. O problema era que eu não sabia se conseguiria fazer aquilo funcionar. Pavios de vela ou álcool eram coisas fáceis de acender. Bastava um clarão concentrado de calor para fazê-los pegar fogo. O bissal era diferente. Precisava de uma grande quantidade de calor para entrar em ignição, razão por que não me preocupava carregá-lo no bolso.

Os homens deram mais alguns passos à frente e atirei o punhado de limalha de bissal num arco amplo. Tentei fazê-lo chegar perto do rosto dos dois, mas sem muita esperança. A limalha não tinha peso de verdade, era como jogar um punhado de neve solta.

Baixando uma das mãos até a chama que lambia minha perna, concentrei minha Vileza. A poça larga de conhaque em chamas se apagou atrás dos homens, deixando o beco em completa escuridão.

Mas ainda não havia calor suficiente. Precipitado pelo desespero, toquei no lado ensanguentado do meu corpo, concentrei-me e senti um frio terrível dilacerar-me enquanto eu extraia mais calor do meu sangue.

Houve uma explosão de luz branca, ofuscante no negrume do beco. Eu tinha fechado os olhos, mas, mesmo por trás das pálpebras, o bissal incandescente era de uma luminosidade cortante.

Um dos homens soltou um berro, apavorado. Quando abri os olhos, não enxerguei nada além de fantasmas azuis bailando em minha vista.

O grito se reduziu a um gemido baixo e ouvi um baque surdo, como se um dos homens tivesse tropeçado e caído. O mais alto começou a balbuciar numa voz que era pouco mais que um soluço aterrorizado.

— Ai, meu Deus! Meus olhos, Torn! Estou cego.

Enquanto ouvia isso, minha visão se desanuviou o bastante para eu enxergar os vagos contornos do beco.

Vi as silhuetas escuras dos dois homens. Um estava ajoelhado, com as mãos cobrindo o rosto; o outro, estatelado no chão, imóvel, um pouco mais adiante. Parecia ter dado com a cabeça num caibro baixo na entrada do beco e sido nocauteado, ficando inconsciente.

Espalhado pelas pedras do calçamento, o resto da limalha de bissal crepitava como estrelinhas branco-azuladas.

O homem de joelhos fora apenas cegado pelo clarão, mas aquilo duraria vários minutos: o bastante para eu correr para bem longe dali. Contornei-o devagar, tomando o cuidado de abafar o som de meus passos.

Fiquei com o coração na boca quando ele tornou a falar:

— Torn? — chamou, com a voz esganiçada e apavorada. — Estou cego, Torn, eu juro. O garoto invocou um raio contra mim — disse. Vi-o se pôr de quatro e começar a tatear à sua volta. — Você tinha razão, a gente não devia ter vindo. Mexer com esse tipo de gente nunca dá certo.

Raio. É claro. Ele não fazia a menor ideia do que era magia de verdade. Isso me deu uma ideia.

Respirei fundo para acalmar os nervos.

— Quem mandou vocês? — perguntei, com a minha melhor voz de o Grande Valoran. Não era tão boa quanto a de meu pai, mas servia.

O grandalhão soltou um gemido aflito e parou de tatear.

— Ah, senhor, não faça nada que...

— Não vou perguntar de novo — interrompi-o, furioso. — Diga quem os mandou. E, se você mentir, eu saberei.

— Eu não sei nome nenhum — o homem se apressou a dizer. — Só nos deram metade da moeda e um fio de cabelo. Não sabemos nenhum nome. Na verdade, a gente não se encontra. Eu juro...

Um fio de cabelo.

Provavelmente a coisa que eles haviam chamado de "visor" era algum tipo de bússola de rabdomante. Mesmo não sabendo fazer nada tão avançado, eu conhecia os princípios envolvidos. Com um fio do meu cabelo, o instrumento apontaria para mim, não importava para onde eu corresse.

— Se algum dia eu tornar a ver um de vocês, invocarei coisa pior do que o fogo e o relâmpago — declarei, em tom ameaçador, enquanto me esgueirava para a saída do beco.

Se conseguisse pegar o visor deles, não teria mais que me preocupar com a possibilidade de me encontrarem. Estava escuro e o capuz de minha capa estivera levantado. Talvez eles nem soubessem que aparência eu tinha.

— Obrigado, meu senhor — balbuciou o homem. — Eu lhe juro que o senhor nunca mais verá nem sombra de nós depois disto. Obrigado...

Olhei para o homem caído. Vi uma de suas mãos pálidas sobre as pedras do calçamento, mas estava vazia. Olhei em volta, perguntando a mim mesmo se ele teria deixado o instrumento cair.

Era mais provável que o tivesse guardado. Cheguei ainda mais perto, prendendo a respiração. Estendi a mão para sua capa, à procura de bolsos, mas ela estava presa sob seu corpo. Segurei-o pelo ombro, de leve, e o afastei devagar...

Nesse momento ele soltou um gemido baixo e acabou de se virar sozinho, ficando caído de costas. O braço desabou nas pedras, frouxo, e esbarrou na minha perna.

Eu gostaria de dizer que apenas dei um passo para o lado, certo de que o homem alto estaria grogue e ainda meio cego. Gostaria de dizer que mantive a calma e fiz o melhor possível para intimidá-los ainda mais, ou, no mínimo, que disse alguma coisa dramática ou brilhante antes de ir embora.

Mas não seria verdade.

A verdade é que saí correndo feito um cervo assustado. Percorri quase 400 metros antes que a escuridão e minha visão turva me traíssem e eu entrasse de cabeça numa corrente de amarrar cavalos, desabando no chão feito uma trouxa dolorida.

Machucado, sangrando e meio cego, fiquei caído ali. Só então me dei conta de que não havia ninguém me perseguindo.

Coloquei-me de pé com grande esforço, maldizendo minha idiotice. Se tivesse mantido a lucidez, poderia ter tirado a bússola deles e garantido minha segurança. Nas circunstâncias vigentes, teria que tomar outras precauções.

Voltei para a Grilo, mas, quando cheguei, todas as janelas da hospedaria estavam às escuras e a porta, trancada. Assim, meio bêbado e ferido, escalei o prédio até minha janela, soltei o trinco e puxei... mas ela não abriu.

Fazia pelo menos uma onzena desde a última vez que eu voltara tão tarde para a hospedaria que tivesse de usar a rota da janela. Será que as dobradiças tinham se enferrujado?

Apoiando-me na parede, peguei minha lâmpada manual e a acendi na graduação mais tênue. Só então vi uma coisa firmemente presa no caixilho. Teria o Grilo posto uma cunha em minha janela para fechá-la?

Ao tocar na coisa, entretanto, vi que não era madeira. Era um pedaço de papel muito dobrado. Soltei-o da janela e ela se abriu sem dificuldade. Entrei aos trambolhões.

Minha camisa estava destruída, mas, ao tirá-la, fiquei aliviado com o que vi. O corte não era particularmente profundo; doloroso e feio, porém menos grave do que quando eu fora açoitado.

A capa que eu ganhara de Faela também estava rasgada, o que era irritante. Mas, no cômputo geral, seria mais fácil de remendar do que um rim. Anotei mentalmente um lembrete para agradecer a Faela por ter escolhido um belo tecido grosso.

Mas a costura poderia esperar. Ao que eu soubesse, os dois homens já deveriam ter se recuperado do pequeno susto que eu lhes dera e estariam de novo no meu encalço, com sangue nos olhos.