Leif e Alastor já tinham quase terminado de almoçar quando eu cheguei a nosso ponto de encontro habitual no pátio.
— Desculpem-me — disse, enquanto punha o alaúde nas pedras do calçamento, perto do banco. — Fiquei preso numa discussão.
Eu tinha ido à outra margem do rio comprar um drakma de mercúrio e um pacotinho de sal marinho. Os dois me haviam custado caro, mas, para quebrar a monotonia, eu não estava preocupado com o dinheiro. Se a sorte me sorrisse, eu logo subiria na estrutura hierárquica da Ficiaria, o que significava que meus problemas econômicos não tardariam a acabar.
Ao fazer compras em Torrente, por mera coincidência também havia passado pela hospedaria de Alys, mas ela não estava lá, nem na Foles, nem tampouco no jardim em que havíamos parado na noite anterior. Mesmo assim, eu estava de ótimo humor.
Deitei de lado o estojo do alaúde e o abri, para que o sol pudesse aquecer as cordas novas, ajudando-as a se esticar. Depois acomodei-me no banco de pedra sob o mastro da bandeira, ao lado de meus dois amigos.
— E então, onde você foi ontem à noite? — perguntou Leif, com demasiada displicência.
Só então me lembrei que nós três havíamos marcado um encontro com o Marzus na véspera, para jogar quatro-cantos. Ver Alys tirara inteiramente esse plano da minha cabeça.
— Ah, meu Deus, desculpe, Leif. Quanto tempo vocês me esperaram?
Ele me olhou.
— Sinto muito — repeti, torcendo para parecer tão culpado quanto me sentia. — Eu me esqueci.
Leif sorriu, dando de ombros.
— Não é grande coisa. Quando percebemos que você não ia aparecer, fomos para a biblioteca encher a cara e admirar as garotas.
— O Marzus ficou zangado?
— Furioso — respondeu Alas calmamente, enfim entrando na conversa. — Disse que ia lhe acertar um tabefe nos ouvidos da próxima vez que o visse.
O sorriso de Leif se alargou:
— Chamou você de A'lun cabeça-de-vento, que não respeita os superiores.
— Fez umas afirmações sobre os seus ascendentes e a sua tendência sexual em relação aos animais — acrescentou Alastor, de cara séria.
— "...no hábito do ardoniano!" — cantarolou Leif, de boca cheia. Depois deu uma risada e começou a se engasgar. Bati em suas costas.
— Aonde você foi? — perguntou Alastor, enquanto Leif procurava recobrar o fôlego. — O Grilo disse que você saiu cedo.
Por alguma razão, descobri-me relutando em falar em Alys.
— Encontrei uma pessoa.
— Uma pessoa mais importante que nós? — indagou Alastor numa voz entediada que tanto podia ser tomada por uma forma seca de humor quanto por uma crítica.
— Uma garota — admti.
Ele ergueu uma sobrancelha:
— A que você andou caçando por aí?
— Não andei caçando ninguém — protestei. — Ela me encontrou lá na Grilo.
— Bom sinal — fez Alastor.
Leif balançou sobriamente a cabeça, depois a levantou, com um brilho gozador no olhar.
— E aí, aproveitaram a música? — perguntou, cutucando-me, enquanto suspendia e abaixava as sobrancelhas. — Fizeram um duetinho?
Sua expressão era ridícula demais para eu me ofender.
— Nada de música. Ela só queria alguém para levá-la em casa.
— Levá-la em casa? — repetiu ele em tom sugestivo, tornando a mexer as sobrancelhas.
Dessa vez achei o gesto menos engraçado.
— Estava escuro — respondi com ar sério. — Apenas a acompanhei de volta a Torrente.
— Ah! — fez Leif, desapontado.
— Você saiu cedo da Grilo — disse Wil pausadamente. — E nós esperamos uma hora. Você leva duas horas para ir até Torrente e voltar?
— Foi uma caminhada longa — admiti.
— Longa quanto? — perguntou Leif.
— Algumas horas — respondi, e olhei para outro lado. — Seis.
— Seis horas? — admirou-se Leif. — Ora, vamos, acho que tenho o direito de saber alguns detalhes, depois de passar as duas últimas onzenas ouvindo-o divagar sobre ela.
Comecei a me eriçar.
— Eu não divago. Só ficamos andando. Conversamos.
Leif fez um ar de dúvida.
— Ora, sem essa! Durante seis horas?
Alastor deu-lhe um tapinha no ombro.
— Ele está dizendo a verdade.
Leif o olhou de relance.
— Por que diz isso?
— Porque está parecendo mais sincero do que quando mente.
— Se vocês ficarem quietos por um ou dois minutos, eu conto tudo. Está bem?
Os dois assentiram. Olhei para minhas mãos, tentando ordenar as ideias, mas elas não se enquadravam em nenhum padrão ordeiro.
— Pegamos o caminho mais longo para Torrente e paramos um pouco na Ponte de Pedra. Fomos a um parque fora da cidade. Sentamos à beira do rio. Conversamos sobre... nada de especial, na verdade. Lugares em que estivemos. Músicas... — interrompi-me.
Percebi que estava fazendo digressões e calei a boca. Escolhi com cuida do as palavras seguintes:
— Pensei em fazer mais do que andar e conversar, mas... — Parei. Não fazia ideia do que dizer.
Os dois se calaram por um momento.
— Raios me... — deslumbrou-se Alastor. — O poderoso Vanitas derrubado por uma mulher.
— Se eu não o conhecesse, diria que você está com medo — comentou Leif, sem muita seriedade.
— Pode apostar que estou com medo — respondi em voz baixa, esfregando as mãos nas calças, nervoso. — Vocês também estariam se a tivessem conhecido. Mal consigo ficar aqui, em vez de ir correndo pra Torrente, na esperança de vê-la por uma vitrine de loja ou passar por ela ao atravessar a rua — completei, com um sorriso trêmulo.
— Pois então vá — Leif disse sorrindo e dando-me um empurrãozinho. — Boa sorte. Se eu conhecesse uma mulher assim, não ficaria aqui almoçando com tipos como vocês — aconselhou. Afastou o cabelo dos olhos e me deu outro empurrão com a mão livre. — Vá logo.
Permaneci onde estava.
— Não é tão fácil assim.
— Nada nunca é fácil com você — resmungou Alastor.
— E claro que é fácil! — Leif riu. — Vá dizer a ela um pouco do que acabou de nos dizer.
— Sei — retruquei com amargo sarcasmo. — Como se fosse tão simples quanto cantar. Além disso, nem sei se ela quereria ouvir. Ela é algo especial... O que ia querer comigo?
Leif deu-me um olhar franco.
— Ela foi procurá-lo. É óbvio que quer alguma coisa.
Houve um momento de silêncio, e me apressei a mudar de assunto enquanto tinha chance.
— O Monet me deu permissão para começar meu projeto como artífice assalariado.
— Já? — surpreendeu-se Leif, parecendo apreensivo. — O Kelvin vai concordar? Ele não é chegado a economizar no trabalho.
— Não economizei nada — rebati. — Apenas aprendo depressa.
Alastor deu um grunhido divertido e Leif falou antes que começássemos a implicar um com o outro:
— O que você vai fazer no seu projeto? Uma lamparina de simpatia?
— Todo mundo faz lamparinas — disse Alastor.
Balancei a cabeça.
— Eu queria fazer algo diferente, talvez um conversor rotacional, mas o Monet me disse para ficar com a lamparina.
O sino da torre bateu 4 horas. Levantei-me e peguei o estojo com o alaúde, pronto a seguir para a aula.
— Você devia dizer a ela — afirmou Leif. — Quando se gosta de uma garota, é preciso que ela saiba.
— E como é que isso tem funcionado para você até hoje? — retruquei, irritado por ser justamente o Leif quem tinha a pretensão de me dar conselhos sobre relacionamentos. — Em termos estatísticos, na sua vasta experiência, com que frequência essa estratégia tem sido compensadora?
Alas fez questão de olhar para outro lado enquanto Leif e eu nos encarávamos, furiosos. Fui O primeiro a desviar o rosto, com um sentimento de culpa.
— Além disso, não há nada para dizer — resmunguei. — Gosto de passar um pouco de tempo com ela, e agora sei onde está hospedada. Isso significa que posso encontrá-la quando quiser.
Pobrezinho de mim.