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Chapter 89 - LXXXVIII. ALCATRÃO

Seguindo conselhos insistentes de várias fontes, limitei-me a três campos de estudo no período letivo seguinte: continuei cursando Simpatia Avançada com Lal Mirch, mantive um turno na Iátrica e levei adiante o estágio de aprendiz com Monet. Meu tempo ficou agradavelmente ocupado, mas não sobrecarregado como no período anterior.

Estudei meu artesanato com mais obstinação do que qualquer outra coisa. Visto que minha busca de um mecenas dera num beco sem saída, eu sabia que minha melhor chance de auto-suficiência seria tornar-me artífice.

Nesse momento eu trabalhava com Kelvin e recebia tarefas relativamente simples, de remuneração relativamente baixa. Quando terminasse meu período como aprendiz, isso melhoraria. Melhor ainda, eu poderia criar meus próprios projetos e vendê-los sob encomenda e com lucro.

Se. Se conseguisse manter os pagamentos de minha dívida com a Devi. Se, de algum modo, pudesse continuar a juntar dinheiro suficiente para pagar a Academia. Se conseguisse terminar meu aprendizado com Monet, sem me matar nem me aleijar no trabalho perigoso que era feito diariamente na Ficiaria...

Quarenta ou 50 de nós reunimo-nos na oficina para ver o recém-chegado. Alguns sentaram nas bancadas de pedra para ter uma boa visão, enquanto 10 ou 12 se juntaram nas passarelas de ferro nos caibros, entre as lamparinas penduradas de Kelvin.

Vi Monet lá em cima. Era difícil não percebê-lo: o triplo da idade de qualquer outro aluno e com o cabelo desgrenhado e a barba grisalha. Subi a escada e me postei ao lado dele. Monet sorriu e me deu um tapinha no ombro.

— O que está fazendo aqui? — perguntei-lhe. — Achei que isso era só para os novatos que nunca viram esse negócio.

— Pensei em bancar o mentor zeloso hoje — fez ele, dando de ombros. — E mais, essa exibição, em particular, merece ser vista, nem que seja só para ver as reações dos outros.

Pousado sobre uma das sólidas bancadas de trabalho da oficina estava um recipiente cilíndrico maciço, com cerca de 1,20m de altura e 60cm de diâmetro. As bordas tinham sido seladas sem soldas volumosas e o metal exibia uma aparência escura e lustrosa que me fez achar que se tratava de algo mais do que o simples aço.

Deixei os olhos vagarem pelo salão e fiquei surpreso ao ver Faela parada no meio do grupo, esperando o início da demonstração com os demais estudantes.

— Eu não sabia que a Faela trabalhava aqui — comentei com Monet.

Ele meneou a cabeça.

— Ah, é claro. Já faz o quê? Uns dois períodos?

— Estou surpreso por não ter notado — meditei, observando-a falar com uma das outras mulheres do grupo.

— Eu também — disse Monet, com um risinho baixo e sugestivo. — Mas ela não vem com muita frequência. Esculpe e trabalha com cerâmica e vidro recortados. Vem aqui por causa do equipamento, não da siglística.

A torre do sino bateu a hora e Kelvin olhou em volta, registrando os rostos de todos os presentes. Nem por um momento duvidei que houvesse tomado notas exatas de quem estava faltando.

— Teremos isto na oficina durante várias onzenas — disse em linguagem simples, apontando para o recipiente de metal ali perto. — São quase 10 galões de um agente transportador volátil: Regin Ignal Neratu.

— Ele é o único que o chama assim — disse Monet, em voz baixa. — É alcatrão-de-osso.

— Alcatrão-de-osso?

Ele confirmou com a cabeça.

— É cáustico. Se você o derramar no braço, ele corrói tudo, até o osso, em cerca de 10 segundos.

Enquanto todos observavam, Kelvin calçou uma luva grossa de couro e verteu uns 30ml do líquido escuro do latão metálico num frasco de vidro.

— É importante resfriar o frasco antes de verter o agente porque ele ferve à temperatura ambiente — disse.

Vedou prontamente o frasco e o levantou para que todos o vissem.

— A tampa de pressão também é essencial, já que o líquido é extremamente volátil. Sendo um gás, ele exibe tensão superficial e viscosidade, como o mercúrio. É mais pesado que o ar e não se dissipa. Adere a si mesmo.

Sem maiores preâmbulos, Kelvin jogou o frasco num fosso de incêndio próximo e ouviu-se o barulho estrídulo e claro de vidro quebrando. Da altura em que estava, vi que o fosso devia ter sido limpo especialmente para essa ocasião. Estava vazio: apenas um poço circular raso de pedra lisa.

— É uma pena ele não ter mais talento cênico — disse Monet, baixinho. — O Lal Mirch faria isso com um pouco mais de estilo.

A sala encheu-se de crepitações e murmúrios agudos, à medida que o líquido escuro se aqueceu em contato com a pedra do fosso e começou a ferver. De meu mirante elevado, vi uma fumaça densa e oleosa encher aos poucos a base do poço. Não se portou nem um pouco como névoa ou fumaça. Suas bordas não se difundiram. Ela se acumulou e se agregou como uma nuvenzinha negra.

Monet bateu no meu ombro e eu o olhei bem a tempo de não ficar cego com a explosão inicial da chama quando a nuvem pegou fogo. De todos os cantos vieram ruídos desolados, e calculei que a maioria dos outros fora apanhada desprevenida. Monet deu-me um sorriso e uma piscadela cúmplice.

— Obrigado — disse, e me virei de novo para observar.

Chamas irregulares dançaram pela superfície da névoa, colorida de um vermelho-escarlate vivo. O calor adicional fez a nuvem negra ferver mais depressa, e ela inchou até as chamas lamberem a parede em direção ao topo da borda do fosso, que batia na cintura. Mesmo de onde eu estava, em cima da passarela, pude sentir um leve calor no rosto.

— De que diabo você chama aquilo? — perguntei-lhe baixinho. — Neblina de fogo?

— Seria possível. Provavelmente o Kelvin o chamaria de ação incendiaria ativada pela atmosfera.

O fogo estalou e se apagou quase no mesmo instante, deixando a oficina tomada pelo cheiro acre da pedra quente.

— Além de ser sumamente corrosivo — disse Kelvin —, o reagente, em seu estado gasoso, é inflamável. Quando se aquece o suficiente, inflama-se ao entrar em contato com o ar. O calor que isso produz pode causar uma reação exotérmica em cascata.

— Um incêndio desgraçado de grande, feito uma cascata — traduziu Monet.

— Você é melhor que um coro — comentei em voz baixa, procurando manter uma expressão séria.

Kelvin fez um gesto, concluindo:

— Esse recipiente foi projetado para manter o agente frio e sob pressão. Tomem cuidado enquanto ele estiver na oficina. Evitem o excesso de calor em sua vizinhança imediata — instruiu.

Dito isso, deu-nos as costas e voltou para seu gabinete.

— É só?— indaguei.

Monet encolheu os ombros.

— O que mais é preciso dizer? O Kelvin não deixa ninguém que não seja cuidadoso trabalhar aqui, e agora todos sabem com que tomar cuidado.

— É por que isso está aqui, afinal? Para que serve?

— Deixa os alunos do primeiro período se borrando de medo — disse Monet, rindo.

— Alguma coisa mais prática que isso?

— O medo é prático à beça. Mas a substância pode ser usada para fazer um tipo de emissor diferente para as lamparinas de simpatia. Obtém-se uma luz azulada, em vez do vermelho comum. Um pouco mais relaxante para os olhos. Conseguem-se preços escandalosos.

Olhei para o salão da oficina lá embaixo, mas não vi Faela em parte alguma entre a turma que circulava. Virei-me para Monet.

— Quer continuar a bancar o mentor zeloso e me mostrar como?

Ele passou as mãos pela cabeleira revolta, com ar distraído, e deu de ombros.

— Claro.