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Chapter 63 - LXII. QUEDA

Elohkar me conduziu por uma longa série de corredores a uma ala diferente do Aluadouro. Finalmente dobramos uma esquina e vi algo novo: uma porta inteiramente feita de cobre.

Ele tirou uma chave do bolso e a abriu.

— Gosto de dar uma passada aqui quando estou pela vizinhança — disse, de modo displicente. — Para verificar minha correspondência, regar as plantas, esse tipo de coisa.

Tirou uma das meias, deu-lhe um nó e usou-a para manter a porta aberta.

— E um lugar agradável para se visitar, mas, sabe como é... — disse, dando uma puxada na porta para ter certeza de que ela não se fecharia. — De novo, não.

A primeira coisa que notei no quarto foi algo estranho no ar. A princípio pensei que fosse à prova de som, como o quarto de Raldin Whet, mas, olhando em volta, vi que as paredes e o teto eram de pedra cinzenta e nua.

Achei então que o ar talvez cheirasse a bolor, mas, ao respirar fundo, senti o aroma de lavanda e roupa de cama limpa. Foi quase como se houvesse uma pressão em meus ouvidos, como se eu estivesse embaixo d'água; só que não estava, é claro.

Agitei uma das mãos à minha frente, quase esperando que o ar fosse diferente, mais denso.

Não era.

— Bem irritante, hein? — fez Elohkar. Virei-me e vi que ele me observava. — Fico surpreso por você ter notado. Não são muitos os que notam.

O quarto era decididamente melhor que o de Raldin Whet. Tinha uma cama de baldaquino, um sofá super-estofado, uma estante vazia e uma mesa grande, com várias cadeiras. O mais notável eram as janelas imensas, que davam para gramados e jardins. Vi uma sacada do lado de fora, mas parecia não haver acesso a ela.

— Observe isto — disse Elohkar.

Pegou uma das cadeiras, suspendeu-a com as duas mãos, girou-a no ar e a atirou com força na janela. Estremeci, mas, em vez de um estrépito terrível, houve apenas o som surdo de madeira quebrada. A cadeira despencou no chão, numa mistura de tábuas e estofamento destruídos.

— Eu passava horas fazendo isso — comentou Elohkar, respirando fundo e correndo os olhos pelo quarto com ar amoroso. — Bons tempos.

Fui examinar as janelas. Eram mais grossas que de hábito, mas não tanto assim. Pareciam normais, exceto pelas tênues riscas avermelhadas que apresentavam. Olhei para o caixilho. Também era de cobre. Corri os olhos devagar pelo quarto, examinando as paredes nuas de pedra, sentindo seu ar estranhamente pesado. Notei que a porta não tinha nem maçaneta do lado de dentro, muito menos fechadura. Por que alguém se daria ao trabalho de fazer uma porta sólida de cobre?

Resolvi fazer minha segunda pergunta.

— Como o senhor saiu?

— Até que enfim! — disse o Mestre, com um toque de exasperação.

Afundou no sofá.

— Sabe, era uma vez o dia em que o Grande Elohkar se descobriu trancafiado numa torre alta. — Fez um gesto para o quarto em que estávamos. — Tinham-no despojado de seus instrumentos: a moeda, a chave e a vela. Além disso, sua cela não tinha uma porta digna de ser mencionada. Nem janelas que fosse possível romper. — Gesticulou com displicência para cada uma delas. — Até o nome do vento lhe fora escondido pelas maquinações ardilosas de seus captores.

Levantou-se do sofá e começou a andar pelo quarto.

— À sua volta não havia nada senão a pedra dura e lisa. Era uma cela da qual nenhum homem jamais havia escapado.

Parou de andar e levantou um dedo, com ar dramático.

— Mas Elohkar, o Grande, sabia os nomes de todas as coisas, e por isso todas as coisas estavam sob o seu comando — continuou. Pôs-se de frente para a parede cinzenta ao lado das janelas. — E ele disse à pedra: "QUEBRA-TE", e ela...

Sua voz se extinguiu e ele inclinou a cabeça de lado, com ar curioso. Espremeu os olhos.

— Raios me partam, eles a trocaram — disse consigo mesmo, baixinho, aproximando-se da janela e ali colocando uma das mãos. — Hum.

Deixei minha atenção vagar. Alas e Leif tinham razão, o homem tinha o miolo mole. Que aconteceria se eu saísse correndo do quarto, soltasse a porta e a deixasse bater? Os outros professores me agradeceriam?

— Ora! — exclamou Elohkar de repente, rindo. — Foi quase esperto por parte deles! — comentou, recuando dois passos da parede. — Cyaerbasalien.

Vi a parede mover-se.

Ondulou-se como um tapete pendurado e sovado com madeiradas. Depois simplesmente... ruiu. Feito água suja derramada de um balde, toneladas de areia cinzenta se espalharam pelo chão num jorro súbito, enterrando os pés de Elohkar até as canelas.

A luz do sol e o canto dos pássaros inundaram o quarto. Onde antes houvera 30 centímetros de sólida rocha cinzenta havia agora um enorme buraco, tão grande que uma carroça poderia cruzá-lo.

Mas o buraco não estava completamente desobstruído; um material verde estendia-se pela abertura. Chegava quase a parecer uma rede suja e emaranhada, mas era irregular demais para uma rede. Mais parecia uma teia de aranha grossa e esfrangalhada.

— Isso não estava aí antes — desculpou-se Elohkar, soltando os pés da areia cinzenta. — Foi muito mais dramático da primeira vez, posso lhe assegurar.

Fiquei literalmente parado, perplexo com o que acabara de ver.

Aquilo não era simpatia.

Não era nada que eu já tivesse visto.

Só consegui pensar no antigo verso de uma centena de histórias parcialmente recordadas: E o Grande Valoran disse à pedra: "QUEBRA-TE" e a pedra se quebrou...

Elohkar arrancou uma perna da cadeira e a usou para bater na rede verde e emaranhada que se estendia pela abertura. Partes dela se quebraram facilmente ou se desfizeram em lascas. Nos pontos em que a rede era mais grossa, ele usou a perna da cadeira como uma alavanca para entortar os pedaços. Nos pontos em que se vergou ou quebrou, a rede cintilou ofuscante à luz do sol. Mais cobre, pensei. Veios de cobre perpassando os blocos de pedra que compunham a parede.

Elohkar largou a perna da cadeira e passou pela abertura agachado. Pela janela eu o vi debruçar-se sobre o balaústre de pedras brancas da sacada.

Segui-o para o lado de fora. Assim que pisei na sacada, o ar deixou de parecer estranhamente pesado e parado.

— Dois anos — disse ele, olhando para os jardins — podendo ver esta sacada, mas não postar-me nela. Podendo ver o vento, mas não ouvi-lo nem senti-lo no rosto.

Passou uma de suas pernas pelos balaústres de pedra, sentando-se nele, depois deixou-se escorregar um metro e pouco até pisar no pedaço plano de telhado logo abaixo. Andou por ele, afastando-se do prédio.

Eu mesmo pulei a balaustrada e o segui até a borda do telhado. Estávamos a uma altura de apenas uns seis metros, mas os jardins e fontes que se espalhavam por todos os lados ofereciam uma vista espetacular.

Elohkar ficou perigosamente perto da borda, com a toga de professor esvoaçando a seu redor como uma bandeira negra. Pareceu-me muito imponente, na verdade, se a gente se dispusesse a ignorar que ele usava apenas um pé de meia.

Fui postar-me junto dele na beira do telhado, sabendo qual teria que ser minha terceira pergunta:

— O que tenho de fazer para estudar a arte de nomear, sob a sua orientação?

Ele me fitou calmamente, avaliando-me.

Pule. Pule deste telhado.

Foi nesse momento que me dei conta de que tudo fora um teste.

Elohkar estivera me avaliando desde o momento em que nos encontráramos. Sentia um respeito relutante por minha tenacidade e ficara surpreso por eu haver notado algo estranho no ar de seu quarto. Estava prestes a me aceitar como seu aluno.

Mas precisava de algo mais, de uma prova da minha dedicação. Uma demonstração. Um salto no escuro, um ato de fé.

Parado ali, lembrei-me de um trecho de uma história. "E assim, Valoran caiu, mas não se desesperou. É que sabia o nome do vento, e por isso o vento lhe obedecia. O vento o aninhou e acariciou. Carregou-o para o chão com a suavidade da brisa ao soprar a lanugem do cardo. Colocou-o de pé com a doçura de um beijo materno."

Elohkar sabia o nome do vento. 

Ainda a fitá-lo nos olhos, avancei além do beiral do telhado.

A expressão dele foi maravilhosa. Eu nunca tinha visto um homem tão atônito.

Girei de leve ao cair, de modo que ele continuou na minha linha de visão. Vi-o levantar de leve uma das mãos, como que numa tentativa tardia de me segurar.

Senti-me sem peso, como se flutuasse.

Depois, despenquei no chão. Não com suavidade, como uma pluma que pousasse. Com força. Como um tijolo batendo numa rua de pedra. Caí de costas, com o braço esquerdo embaixo do corpo. Minha vista escureceu quando a cabeça atingiu o chão, e todo o ar foi expulso do meu corpo.

Não perdi a consciência. Fiquei caído ali, sem fôlego e incapaz de me mexer. Lembro-me de ter pensado, com toda a seriedade, que estava morto, que estava cego.

Aos poucos minha visão voltou, fazendo-me piscar diante da luminosidade súbita do céu azul. Senti uma dor lancinante no ombro e o gosto de sangue. Não conseguia respirar. Tentei sair de cima do braço, mas meu corpo se recusou a me obedecer. Eu tinha quebrado o pescoço... a coluna...

Depois de um momento prolongado e apavorante, consegui dar um arquejo superficial, depois outros. Suspirei de alívio e percebi que tinha pelo menos uma costela quebrada, além de todo o resto, mas mexi de leve os dedos das mãos, a seguir os dos pés. Funcionavam.

Então vi que não tinha fraturado a espinha...

Enquanto eu permanecia deitado lá, contando minhas bênçãos e minhas costelas quebradas, Elohkar entrou em meu campo visual e baixou os olhos para mim.

— Parabéns — disse. — Foi a coisa mais idiota que eu já vi em todos os tempos — sentenciou, com uma expressão que misturava assombro e incredulidade.

E foi então que decidi dedicar-me à nobre arte da Artificiaria. Não que tivesse muitas outras opções.

Antes de me ajudar a capengar até a Iátrica, Elohkar deixou claro que qualquer pessoa estúpida o bastante para pular de um telhado era inconsequente demais para segurar uma colher em sua presença, que dirá para estudar algo tão "profundo e volátil" como a nomeação das coisas.

Mesmo assim, não fiquei terrivelmente arrasado com sua recusa.

Magia de contos de fadas ou não, eu não estava ansioso por estudar com um homem cujas primeiras lições tinham-me deixado com três costelas quebradas, uma concussão leve e um ombro deslocado.

  1. Basicamente o baldaquino é uma espécie de dossel¹. É uma obra de arquitetura ou marcenaria, que serve de cora a um trono, altar ou uma cama.
    1. Armação de ornamento que vai encima de peças de mobiliário como tronos, altares, liteiras ou camas.