— Ana! Acorda!
"Vai ser toda vez assim?"
Resmungando, Ana abriu os olhos uma vez mais.
Ao focar sua visão, viu Nyx à sua frente, o rosto quase colado ao seu. O sorriso da barda era largo, quase inapropriado para a cena ao redor, e um fino filete de sangue escorria de seus lábios.
Não só isso: três grandes flechas, as quais foram cortadas desleixadamente ao meio, estavam firmemente fincadas em seu corpo. No entanto, seus dedos continuavam dedilhando uma melodia lenta e melancólica, como se o som pudesse suavizar a realidade brutal do momento.
— Você está bem acabada.
— É que você não viu aquele cara! — respondeu Nyx com leveza, sentando-se no degrau logo abaixo de Ana e se esticando para trás, apoiando-se na rainha como se estivesse relaxando após uma tarde ensolarada.
Seus olhos desviaram para um canto do salão, indicando dois guerreiros que se aproximavam. Um deles estava visivelmente debilitado, quase tropeçando a cada passo, enquanto o outro o segurava, tentando ajudá-lo a avançar.
Ana suspirou profundamente, a exaustão em sua expressão se misturando com um leve toque de resignação.
— No fim, você realmente usou o frasco…
Alex, em resposta, apenas sorriu dolorosamente, então Ana continuou.
— Na verdade, não ficou tão ruim quanto pensei que ficaria. Os corrompidos de onde peguei o DNA eram muito mais... bizarros. Pele carbonizada, dor constante por queimarem por dentro. Acho que passaram muito frio nos últimos anos para evoluírem assim. Seus resultados são inesperadamente interessantes…
— Eu não queria usar, mas esse cara não me deu uma folga! — exclamou Alex em uma voz animada. — Não é incrível? Quem diria que o Felipe ia voltar! O grupo original está quase de volta!
Terminando a frase, Alex, claramente tão mal quanto a rainha mascarada, deixou-se cair pesadamente nos degraus próximos. O outro homem, Felipe, o seguiu, sentando-se ao lado com movimentos rígidos e mecânicos.
Ana observava os dois, os olhos semicerrados enquanto tentava entender o que estava acontecendo.
— É... Quem diria... Bem-vindo de volta, Felipe…
Observou o segundo homem com atenção, surpresa pela identidade inesperada do companheiro da Colecionadora. O odor fétido que emanava de seu corpo era sufocante, e o dedo de Nyx, discretamente pressionado contra os lábios em um gesto de silêncio, dizia mais do que qualquer explicação poderia.
"Que seja, isso eu resolvo depois"
Ana apertou as têmporas, afastando os pensamentos perturbadores enquanto seus olhos vagavam pelo salão.
Três dezenas de mascarados, bestiais e corrompidos dos mais diversos estavam espalhados, todos em estados variados de exaustão e múltiplos ferimentos. Alguns usavam móveis quebrados para improvisar barricadas nas portas, enquanto outros ajudavam os mais feridos a se acomodarem. O salão parecia um campo de batalha, tanto por dentro quanto por fora.
— É um prazer vê-la, minha rainha.
A voz forte e familiar fez Ana levantar o olhar. Miguel estava se aproximando em passos largos. Ele parou à sua frente e fez uma leve reverência.
— Sem essa merda de 'minha rainha', Miguel.
— É provável que sejam meus últimos minutos vivos, então temo que te chamarei como eu quiser — Ele riu levemente, mas havia um peso em sua expressão.
Ana arqueou uma sobrancelha, analisando seu secretário pessoal.
A armadura de Miguel estava completamente destruída, com várias partes ausentes. Seu corpo de pedra, normalmente imponente, parecia desgastado, apesar de quase intacto. No entanto, a ausência do braço direito era impossível de ignorar.
— Alguém está bem revoltado hoje — comentou ela em um tom divertido, mas seus olhos mantinham a seriedade. — Que seja, se é isso que quer, hoje não implicarei. Como está a situação lá fora?
O secretário acenou em agradecimento, e logo seguiu com sua resposta.
— Estávamos em relativa igualdade de forças, mas fomos pegos de surpresa. Um pouco mais de mil soldados chegaram após os batalhões principais do inimigo.
Ana estreitou os olhos.
— Nossos batedores não os viram?
Miguel balançou a cabeça.
— Sim, mas parece que já haviam planejado tudo. Soldados da leva anterior estavam escondidos na floresta. Eles impediram que retornassem com as notícias, e estavam distantes demais para os comunicadores funcionarem.
— Mas que merda... Então tudo acabou.
O secretário hesitou, um brilho de algo indefinido em seus olhos.
— Não exatamente... Digo, para nós é bem provável que sim, tudo acabou. Estamos completamente cercados. Mas para Insídia... ainda há uma chance.
Ana suspirou, inclinando-se ligeiramente para a frente, apesar da dor evidente.
"Eu preferia ficar viva e deixar Insídia ir para a casa do caralho."
Apesar do que pensava, conteve a língua, voltando ao tom firme anterior.
— Uma chance?
— Foi uma sorte inesperada vinda da desconfiança... — começou o secretário mascarado. — Parece que o povo inseto de Myrmeceum não acreditou em você quando disse que devolveria a rainha deles. Um exército começou a marchar no exato momento que você partiu da colônia. Niala os encontrou no caminho, e, para nossa surpresa, decidiu também entrar na guerra.
— Chegando depois que todo mundo tá quase morto... São uns sortudos. Acabaram de ganhar um reino de graça.
Miguel deu um meio sorriso, seco e resignado.
— Ao menos parecem mais íntegros do que Barueri. Não acho que vão massacrar os sobreviventes.
— Pois é... — murmurou Ana, sua voz soando distante, quase indiferente.
Foi então que o som ressoou.
Uma batida pesada na grande porta central do salão real.
O impacto reverberou pelas paredes, as barricadas improvisadas tremendo sob a força. O som trouxe uma onda de silêncio inquietante pros soldados que aguardavam do lado de dentro, como se até mesmo o ar ao redor tivesse congelado.
Todos no ambiente se entreolharam. Sacaram suas armas e engoliram seco, aguardando a próxima batida.
Foi Nyx quem quebrou a quietude.
A barda, que dedilhava o alaúde vagarosamente, se esforçou para endireitar as costas. O instrumento marfim, com pequenas manchas de sangue seco, parecia se destacar em meio aos rostos tristes que o cercavam, tão fora de lugar quanto a serenidade que sua dona exibia.
— Ah, mas que momento perfeito... — murmurou a Sombra.
A melodia mudou aos poucos, tornando-se algo que confortava os guerreiros ao redor. Cada nota carregava orgulho, coragem e imponência.
Alguns abaixaram as armas, fechando os olhos como se a música fosse um consolo que nunca souberam que precisavam. Outros simplesmente ficaram imóveis, absorvendo a melodia como se ela pudesse aliviar, mesmo que momentaneamente, o peso do destino inevitável que pairava sobre eles.
Ana observava Nyx com afeto, o som parecendo acalmar até mesmo a dor que latejava em seu corpo.
— Você é ótima com momentos dramáticos.
A barda riu baixinho.
— É que você me deu o melhor dos palcos, 'minha rainha' — respondeu em tom provocativo.
Outra batida cortou o riso alto da Sombra. Foi mais forte, arrancando estilhaços de madeira da porta.
Os corações de todos no salão aceleraram.
— Eles estão chegando — murmurou Miguel.
Ana ergueu uma sobrancelha, inclinando a cabeça levemente em direção ao secretário.
— Obrigado pelas sábias palavras, senhor óbvio — respondeu ela com uma voz carregada de sarcasmo. Então gesticulou vagarosamente em direção à lança cravada em Jasmim. — Tire-a dessa desgraçada e traga para mim. Deixe-os vir com tudo o que têm.
Miguel hesitou por um instante, mas acenou com a cabeça, avançando em direção à inimiga debilitada; Sem demora retornou com a lança-espada negra em mãos, entregando a arma à Ana com cuidado. Ela a segurou firmemente, a sensação do metal frio contra sua pele trazendo um estranho consolo.
Mesmo que seu corpo protestasse contra o esforço, a rainha se levantou e deu um passo à frente, posicionando-se no centro do salão.
Foi então que Nyx começou a cantar.
— Ó, guerreiros, sintam o ar, tão doce e amargo... 🎵
A voz etérea soava como um lamento e um grito de desafio ao mesmo tempo. Era claramente uma canção de adeus, mas todos que a ouviam puderam desenhar um pequeno sorriso de paz em meio ao nervosismo.
— Que comece o último ato — sussurrou Ana, observando as portas finalmente desabarem.