Não quero mais isso.
Não ligo mais pra essa vaca.
Assim que sair dessa guerra, vou pegar minhas coisas e ir embora.
— Arthur, você vai fugir comigo, né?
Eu sei que vai. Tenho certeza. Ele é tão bobo.
— Claro, tonta.
Eu disse!
Mas…
— Você tem que parar de sorrir assim. É estranho.
Eu gosto tanto dele…
Mas esse sorriso é realmente ruim.
Tenho que fazer ele treinar sorrisos. Tenho certeza que vamos conseguir chegar em um ideal.
Mas enfim.
Cansei de esperar que a Jasmim encontre a Ana. Se ela tá viva, eu mesma vou achar.
Ela vai ficar tão brava quando eu contar sobre todo o tempo que passei aqui...
Mas se eu tiver sorte, vai me elogiar quando mostrar o quão forte fiquei.
Ai, ai…
Espero que ela goste do Arthur.
Ele vai sofrer até se acostumar com os treinos, mas vai acabar gostando dela também.
A Ana é tão incrível!
Vamos ser uma família! Uma nova família!
Se o lobo ainda estivesse com a gente, tudo ia ser perfeito…
Merda, merda…
— MERDA!
Gritei mais alto do que deveria.
Até o Arth parou de correr por um instante, me olhando como se eu fosse uma louca.
Tá, talvez eu seja um pouco. Mas e daí?
A raiva que tá fervendo dentro de mim precisa sair de algum jeito.
Os soldados inimigos tem expressões tão medrosas…
— AAAAAH, É BOM ESTAR AQUI!
Minha espada acertou o primeiro deles antes que ele tivesse tempo de reagir.
Quando acertei, o impacto ressoou nos meus braços.
O peso do aço cortando carne e osso sempre me traz essa sensação… sabe, satisfatória.
Tenho pena dessas pessoas.
Mas é ótimo conseguir descontar a raiva.
O amigo dele vai tentar reagir, mas aquele escudo devia ser segurado um pouco mais pra baixo…
Um golpe vertical vindo do chão, talvez…
Bingo! uma perna a menos.
Mas minha mão dói. Esses caras de pedra são realmente firmes.
Talvez mais uns golpes, e ele logo deve cair…
— Lúcia! Dá pra tentar… sei lá, ser menos barulhenta? Vai chamar atenção.
— E onde está a graça nisso?
Bom, ele suspirou, mas eu vi que ele estava sorrindo. Um sorriso torto, claro, mas ainda assim um sorriso.
Essa expressão de aceitação é melhor que a outra.
Pelo menos não traz arrepios de desconforto.
Ele é meio covarde.
É meio incômodo. Sempre tão hesitante, tão… fraco.
Mas, droga, ainda é fofo.
Será que a Ana se sentiu assim quando começou a cuidar de mim?
Nah. Ela deve ter me achado só útil. É isso.
Faz tanto tempo…
Aparece logo, Ana idiota!
— Você é impossível, Lucia.
— Eu sei.
— Ei, cuidado!
Opa!
Essa foi a centímetros do meu rosto.
Mas tinha que ser mais rápido.
Mais um caído.
— Viu? Não precisa se preocupar comigo.
— Um dia, você vai acabar exagerando.
— Talvez. Mas hoje não é esse dia.
Arthur assumiu a frente dessa vez.
Tá vendo aquelas espadas brilhantes?
Cof cof, eu que fiz.
Não sei quantas vezes esse menino trocou de arma, mas essas combinam com esse estilo cauteloso dele.
Até parece menos mole.
— Vamos seguir pelas laterais. O resto do nosso esquadrão se dispersou muito.
Ele me olhou com aquela expressão que eu já conhecia bem, como se estivesse medindo minhas palavras antes de decidir se me seguiria.
— Mandaram ficarmos aqui…
Só posso revirar os olhos com esse tipo de resposta, chega até a doer.
— Você quer morrer?
— Não!
— É isso que vai acontecer se ninguém cobrir nossas costas. Vamos usar as casas como barreiras enquanto eles se reúnem.
Eu não vou morrer aqui.
Nem fodendo.
Nem.
Fodendo.
Ainda sou tão jovem!
Só preciso de um pouco mais de força. Só mais um pouco. Tenho tanta coisa pra explorar ainda.
A capital que todo mundo fala tanto!
Aquela cidade que voa!
Novas comidas!
Novos livros!
Novos sentimentos!
Como é uma sauna?
Como é a neve?
Como é… beijar?
— Tá me encarando por quê? No fim, é você que vai morrer se não prestar atenção!
Droga!
Fico feliz de estar coberta de sangue. Pelo menos assim ninguém percebe como estou parecendo um tomate de tanta vergonha.
Sinto meu rosto arder!
Idiota, idiota, idiota!
— Se você me viu te olhando… é porque também estava olhando, idiota. Presta atenção na luta!
— Como isso virou contra mim?
— Só cala a boca. Não quero mais falar com você.
Preciso entrar em um buraco. Agora.
E se nós fugíssemos logo? Pra que esperar acabar a batalha?
Não tem motivo pra ficar aqui. No fim, quando o resto do exército chegar, isso vai acabar. É só questão de tempo.
Mal sabem eles que a segunda leva viria algumas horas depois.
Ou sabem.
Não ligo. Só quero ir embora.
— Ei, Arth… e se nós fos…
— Vocês dois! Me sigam agora!
A voz cortante de Jasmim atravessou meus pensamentos.
Aaaaah, aquela vaca!
Ela surgiu de repente, com a postura impecável e aquela expressão irritantemente superior.
Como sempre, parecia alheia ao caos à sua volta, como se a guerra fosse apenas um jogo em que ela já tinha certeza de vencer.
E esse maldito menino irritante me ignorou e foi correndo até ela.
Parece um cachorro!
Não gosto dessa proximidade.
É tão irritante!
— Quê foi, não tá vendo que estamos ocupados?
— Ah, Lúcia, minha caçadorinha mirim preferida.
A voz melosa de Jasmim me deixa estranha, mas não de um jeito bom.
— Já disse que tem que aprender a respeitar logo. Não vou ser bondosa assim pra sempre.
— Fala logo, Jasmim.
Esse sorriso dela… sempre o mesmo.
Não importa o quanto eu me irrite, ela sempre me olha como se eu fosse uma criança, como se estivesse acima de mim.
Me dá nos nervos.
Se ela fosse um pouco mais fraca…
Algum dia, vou subir de rank.
Dizem que sou um prodígio. Se eu tiver sorte, não vai demorar.
Vou voltar aqui só pra explodir essa cabeça mandona.
Vaca.
— Achamos a rainha deles. Parece que foi direto pro castelo.
— E o que temos a ver com isso? Não estão protegendo os portões? Não acho que dá pra passar por ali agora.
— É por isso que vocês vão me acompanhar enquanto damos a volta!
— Nós?
— Não só vocês, claro. Mas seja lá o que tem no castelo, essa é a hora de descobrir. Finalizei o planejamento com o Roldan, ele vai mandar parte de sua elite pela lateral esquerda. Diz que pode garantir o acesso usando as montarias, mesmo com o fosso.
Eu já sabia onde isso ia dar, mas não interrompi.
— Você vai me acompanhar com nossa própria elite.
Tenho certeza que ela saboreia o gosto de poder dar ordens.
— Estamos com o número de manipuladores de mana bem limitado, então você vai ajudar a construir as pontes, monstrinha.
"Monstrinha."
Ela fala isso como se fosse casual. Boba, fofa, ou qualquer coisa do tipo.
Mas eu sinto o rancor. É estranho.
Não sei o que fiz pra ela. Nem mesmo lembro de quando nossa relação ficou assim.
Antigamente... eu gostava dela.
Eita! Quase esqueci disso…
A Ana vai ficar brava se eu matar a irmã dela?
Espero que não.
Espero que não…
— Lúcia?
— Que foi, Arth?
— Você tá viajando, né? Não vai responder a líder?
Aaaaaah, vou virar um pimentão.
Droga.
Drogaaaaa!
— Tá, Jasmim. Mas não me enche o saco depois disso. E o Arthur vem junto.
— Rabugenta como sempre. Que seja. Eu já ia mandar ele vir. Vamos partir agora. Se conseguirmos encontrá-la lá, talvez terminemos isso antes do esperado.
— Se morrermos, vou te assombrar pelo resto da vida.
Eu ouvi aquele mané rir baixinho atrás de mim, o que, estranhamente, tornou o momento um pouco mais suportável.
E lá vamos nós.
Ela está seguindo pelos caminhos de um jeito muito natural.
Certeza que tinha informações que não nos passou.
Que raiva.
Mas e esse garoto? O que quer me olhando?
— Não vai dizer nada?
— Sobre o quê?
— Qualquer coisa. Tá esquisito ficar quieto desse jeito.
— É só que… Você parece… diferente.
— Diferente como?
— Sei lá. Mais nervosa.
— Claro que tô nervosa. Estamos no meio de uma guerra, gênio.
— Apressem o passo. Temos que chegar ao castelo antes que eles reforcem ainda mais as defesas.
Eu queria gritar. Queria dizer pra essa chata que não me importava com o castelo, que só queria sair dali.
Mas ao invés disso, ajustei minha espada e continuei andando.
Pelo menos o resto do grupo já está visível. Menos mal, não precisamos andar tanto.
Ah, e lá vai ela. Mais uma vez nos deixar de fora.
— Por que não podemos ouvir o assunto?
Arthur suspirou antes de responder.
— Somos só a base, Luci…
— Ah, pelo amor, né? Você vai sempre ficar lambendo as botas dela, mesmo quando ela nos trata assim?
— A gente já falou sobre isso…
Eu sabia que ele estava certo, mil vezes já falamos do assunto.
Eu sei que estou sendo chata.
Mas não consegui evitar. A forma como ela nos ignora, como se fôssemos descartáveis, me dá nos nervos.
Ele venceu dessa vez.
Mas só dessa vez.
Vou ficar quieta.
Mas... quê?
— Lúcia, sua vez. Abracadabra, ponte!
— Mas aonde eles estão indo? Você não disse que íamos ser um grupo?
— Sim, mas também disse que temos poucos manipuladores. Vão se espalhar ao longo da muralha para entrarmos por mais pontos. Quem encontrar algo, avisa.
— E como você sabe que não tem um exército inimigo inteiro esperando do outro lado?
— Eu sei contar, menina. Tínhamos pessoal suficiente infiltrado entre eles para saber um tamanho aproximado do exército. Mesmo que tenha alguns, só nós três devemos conseguir passar escondidos.
Não valia a pena discutir.
— Hm…
Vou só fazer logo.
Um, dois, três.
Uma ponte. Uma escada. Algo torto? Talvez, mas nem tanto.
Não vou gastar muita mana nisso. Melhor usar algo leve.
Madeira? Não, talvez bambu. Algo que não me deixe sem energia.
É isso, uma plataforma de bambu parece interessante. Simples, eficiente, e só precisa durar uns cinco minutos, no máximo.
Vamos tentar.
— É isso. Uma ponte.
Ela arqueou as sobrancelhas. Dessa vez tenho que concordar, não parece a melhor das manifestações…
— Você nem se esforçou… Vai aguentar mesmo? Tá bem torto. Não quero morrer à toa.
Outro sorriso. Ela sempre sorri, não importa o que eu diga.
E lá vai ela.
Morrer.
Como se alguém no rank B morresse por uma queda dessas.
Tá. Vamos terminar isso logo.
Pior que tá torto mesmo.
Eu devia ter feito um pouco melhor.
Melhor se apressar.
Eu sim morreria.
Não consigo nem ver o fundo desse buraco. Certeza que tem estacas lá embaixo.
Finalmente, no topo.
Olhando ao redor, realmente está bem vazio aqui.
Menos mal. Ser pega de surpresa seria o fim.
O castelo não tá tão longe. Nesse ritmo, chegaremos em poucos minutos.
— Prestem atenção, vocês dois, parece que algo aconteceu aqui.
O aviso não era necessário.
Restos de batalha por toda parte.
Corpos, marcas de cortes nas paredes, armas abandonadas.
Mas... não tivemos nenhum relatório de grupos passando por aqui antes.
Lutas internas?
Que azar do caramba.
Digo, pra esses caras.
Pelo estrago, talvez nem tenhamos o que fazer.
Jasmim olhou ao redor, as botas esmagando uma máscara rachada no chão.
— Chegamos. O castelo não parece tão grande, mas vamos ficar ocultos. Olhem cada sala, uma por vez, mas voltem para esse corredor a cada verificação.
Eu queria protestar.
É idiota dividir. É pedir pra morrer.
Claro, isso supondo que tenha alguém forte aqui.
Se o nível for o mesmo dos soldados lá de fora, talvez dê pra se virar. Talvez.
Mas sabemos que não estamos sozinhos.
É baixo, bem baixo, mas tem um ruído persistente e ritmado nesse lugar.
O som claro de alguém lutando.