*Capítulo extra não canônico
A floresta estava coberta por uma fina camada de neve, que caía em espirais silenciosas, absorvendo o som dos passos de Ana. O frio era tão intenso que parecia cortar sua pele, o que, para ela, era uma sensação incomum e inusitada, porém mais um incômodo do que uma ameaça.
Foi então que, em meio à tempestade, uma luz distante chamou sua atenção. Uma cabana simples, com dois andares, surgiu à sua frente. As luzes das velas iluminavam fracamente a neblina nas janelas, revelando vultos que se moviam lá dentro. Sem ter um rumo claro, Ana decidiu se aproximar.
Com o pé, bateu à porta. Esperava que ninguém a atendesse, afinal, quantos moradores estariam dispostos a abrir suas casas a estranhos em uma noite como aquela?
Para sua surpresa, rapidamente ouviu um rangido leve, revelando uma mulher de cabelos grisalhos e um sorriso doce. Seu rosto era acolhedor, como o de uma avó que sempre sabe o que dizer para confortar.
— Oh, meu Deus! — exclamou a mulher, surpresa. — Uma viajante! Você deve estar congelando. Entre, querida, entre!
A mulher a puxou suavemente para dentro da cabana, e Ana permitiu que o calor a envolvesse. O interior era aconchegante, a lareira crepitava no canto, o cheiro de algo assando no forno preenchia o ar, e a decoração simples, mas charmosa, criava uma atmosfera que contrastava violentamente com a nevasca lá fora.
— Fui pega de surpresa pela tempestade de neve — comentou a mercenária, observando o ambiente com cuidado, seus olhos analisando cada detalhe.
— Ah, isso acontece muito por aqui. A neve às vezes chega sem aviso. Meu marido está preparando o jantar. Querido, temos visita!
— Ótimo! — uma voz grave e abafada respondeu da cozinha. — Vou colocar mais carne na grelha!
— Não precisam se preocupar comigo. Vou embora assim que a nevasca enfraquecer — disse Ana, sem querer atrapalhar a noite do casal.
— Não seja boba, querida. Isso pode durar horas! — comentou a mulher, soltando uma risada suave. — No pior dos casos, até dias!
— Certo, então. Acho que posso ficar um pouco mais… — Ana esboçou um sorriso contido, quase imperceptível, e cedeu, encostando sua espada com cuidado ao lado da porta. Sendo orientada pela senhora, sentou-se em uma cadeira de madeira acolchoada, sentindo o calor da lareira ao fundo aquecer suas costas.
Minutos depois, o marido da mulher apareceu com uma grande bandeja. Ele era um homem imenso, de quase dois metros de altura, com uma constituição robusta, um pouco gordo, mas de aparência forte. Seu avental estava salpicado de manchas vermelhas, algo que, em qualquer outro contexto, poderia passar despercebido, mas que chamou a atenção de Ana imediatamente pelo contraste com seu sorriso amigável.
— Carne fresca? — perguntou casualmente a rainha, sentindo o forte aroma no ar enquanto o homem se aproximava da mesa.
Ele sorriu amplamente, um brilho de orgulho surgindo em seus olhos.
— Ah, sim! Tentamos sempre manter tudo fresco. Isolados assim, precisamos garantir que o corte seja feito na hora — disse, ajeitando a bandeja com cuidado. — Não há nada como o sabor de algo… Bem, você sabe, recém-preparado.
— Realmente é mais saborosa assim — comentou Ana, avaliando os cortes. — Isso está muito bem alinhado, é uma técnica maravilhosa.
— Parece que temos uma convidada que entende das coisas esta noite — comentou a gentil senhora.
— Meu Deus, onde estão meus modos! — exclamou o grande homem de repente. — Meu nome é Jefferson, e esta é minha esposa, Ana.
— Curioso. Também me chamo Ana. É um prazer.
Os dois sorriram com a coincidência, compartilhando o momento com uma leveza desconcertante, e logo começaram a se servir. Ana também começou a comer em silêncio, mastigando devagar. Por um breve momento, seus olhos se arregalaram ao sentir o gosto da carne, mas logo sua expressão voltou ao habitual.
— E de onde você é? — perguntou a mulher, a outra Ana, curiosa, enquanto se servia de mais um pedaço de carne.
— De uma vila próxima. Estou apenas treinando por aqui. Nada demais.
— Não sabia que tinha uma por aqui. Sabe, não conhecemos muito da região — comentou Jefferson. — Gostamos do nosso canto isolado. Tranquilo, sem perturbações.
As conversas fluíram naturalmente, enquanto o vento lá fora soprava forte, aumentando a sensação de isolamento. A luz das velas iluminava o ambiente de forma aconchegante, mas havia uma tensão sutil no ar.
Finalmente, após alguns minutos de mais mastigação, Ana colocou seu garfo sobre o prato e levantou o olhar devagar, limpando a boca com um guardanapo de tecido.
— Pode ser meio indelicado, e realmente não quero ser rude... — disse ela, em um tom calmo, mas com uma pitada de ironia. — Mas apesar do bom corte, a carne está muito mal preparada.
O casal parou, trocando um olhar breve e confuso. Por um momento, um novo silêncio pairou sobre a mesa, dessa vez mais pesado do que o anterior.
— Não entendi... — disse a mulher, a doçura ainda presente, mas um pouco mais hesitante.
— Se vocês realmente quiserem aproveitar bem esse tipo de carne, precisam entender como cada parte do corpo funciona — começou Ana, encostando com o dedo na comida que restava no prato para sentir a textura. — Por exemplo, músculos como este aqui — apontou com a faca para o prato — São bastante firmes, e por isso é preciso uma preparação cuidadosa. O ideal seria mariná-los por várias horas com algo ácido, como vinho ou vinagre, para quebrar as fibras. Depois, devem ser cozidos lentamente, de preferência a baixas temperaturas, para que a carne não endureça.
Os dois moradores a encaravam, seus sorrisos suaves se esvaindo enquanto o choque de ouvir uma análise tão meticulosa surgia em seus rostos.
— Mas claro, se vocês querem mais sabor e maciez, o melhor é usar partes mais gordurosas. As coxas, por exemplo — continuou Ana, contornando a própria perna com a faca como se estivesse falando de algo trivial. — Elas têm uma combinação perfeita de músculo e gordura. Assadas com a pele, a gordura derrete e infunde a carne, mantendo-a suculenta. Mas, para conseguir o melhor resultado, é importante usar a técnica correta de tempero. Algo simples, como alho, ervas e um pouco de sal grosso, pode fazer maravilhas.
Jefferson e sua esposa ainda estavam como estátuas, sem saber como reagir, mas Ana não parecia se importar. Ela levantou a faca levemente, apontando para o prato novamente, e depois subindo por seus braços.
— Os ombros também são uma boa escolha — explicou, mudando o tom para algo quase apreciativo. — Eles têm bastante colágeno. Se forem cozidos lentamente, o colágeno se transforma em uma gelatina natural, o que deixa a carne desmanchando na boca. Um bom ensopado com os ombros pode alimentar uma família por dias!
Ela então franziu a testa ligeiramente, como se estivesse se lembrando de algo importante.
— E não podemos esquecer dos órgãos! — havia uma pontada de entusiasmo em sua voz que causou um calafrio no casal. — O fígado é uma iguaria, especialmente quando ainda macio e cheio de sangue. Basta selá-lo rapidamente em uma frigideira bem quente, com manteiga e ervas. Simples, mas elegante.
Ana fez uma pausa, saboreando as palavras.
— E o coração... ah, o coração é uma verdadeira obra de arte. Cada músculo firme e cheio de vida. Se cortado em fatias finas, grelhado até atingir a perfeição, com apenas um toque de sal e limão, pode se transformar em uma experiência que faz você... transcender seus limites. Digo por experiência própria!
O casal estava estupefato, suas expressões revelando uma mistura de fascínio e horror, como se estivessem ouvindo uma especialista falar de um banquete em um restaurante sofisticado, mas a realidade da situação tornava aquilo tudo grotesco.
Foi então que, em um movimento súbito, o marido e a esposa puxaram facas longas de suas cinturas, tentando esconder o nervosismo em seus rostos.
Ana sequer olhou para eles. Continuou cortando outro pedaço da carne e, com tranquilidade, levou-o à boca. O silêncio ensurdecedor da sala foi interrompido apenas pelo som de seus dentes cortando as fibras do alimento.
— Parem com isso — disse ela com um tom despreocupado, olhando para eles por cima do prato. — Só quis ajudar.
— Quem... quem é você, afinal?
— Eu? — ela inclinou a cabeça levemente, um sorriso irônico nos lábios. — Sou apenas uma viajante. Alguém que entende de boas refeições e sabe apreciar um trabalho bem feito.
Jefferson abaixou lentamente a arma que carregava, confuso e claramente intimidado.
— Você realmente entende de carne... — disse por fim, tentando parecer calmo, mas sua voz tremia levemente. — Poderia repetir o que disse? Acho que... não anotei direito.
Ana riu alto, um som que ecoou pela cabana, reverberando nas paredes de madeira. O riso era ao mesmo tempo leve e carregado de uma frieza desconcertante.
— Posso fazer melhor do que repetir; Se tiverem carne suficiente, posso ensinar na prática!
A outra Ana, ainda um tanto abalada, tentou manter a compostura. Seu sorriso nervoso retornou, embora seus olhos traíssem o medo crescente.
— Claro que temos carne suficiente, querida. Já disse que estamos sempre preparados.
— Ótimo — respondeu a rainha, caminhando até o centro da sala e estalando os dedos, como se estivesse se preparando para algo do dia a dia. — Vou preparar a ceia eu mesma. Hoje vamos ter um verdadeiro banquete.
Ela foi então em direção à cozinha, seus passos lentos e deliberados.
— Afinal, é Natal!
O casal permaneceu em silêncio, enquanto Ana já dava uma boa olhada nos utensílios, como se estivesse na própria casa. Jefferson olhou para a esposa, que deu de ombros, e ambos seguiram-na, ainda incertos se deviam temer ou admirar aquela estranha mulher que havia transformado a noite em algo muito além do que haviam planejado.
Aos poucos, as tensões baixaram, e as horas se passaram lentamente. O trio se envolveu em pequenas conversas, relembrando anedotas de um passado antigo e, por um breve momento, parecia que o tempo havia parado. Lá fora, o vento uivava, mas dentro da cabana, o calor e a luz do fogão tornavam a cena quase idílica, com Ana, Jefferson e a outra Ana rindo juntos como se fossem velhos amigos.
De vez em quando, um leve ruído vindo do porão — algo entre um arrastar e um gemido abafado — atravessava o ambiente, mas parecia tão distante que ninguém mencionava. O cheiro de comida sendo preparada era intenso, e a leveza das interações criavam uma atmosfera quase familiar, fazendo, por um breve momento, que ali parecesse um refúgio de aconchego e alegria, e, acima de tudo, uma família perfeita e feliz.
Afinal…
É Natal.
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