Os corações das duas mulheres batiam como aríetes prestes a destruir um resistente portão. Seus olhos, ambos negros como o mais profundo poço, refletiam algo que não podia ser descrito como raiva ou fúria, mas sim como uma calma perigosa, uma cortina que pouco escondia a loucura que ali se esgueirava.
A rainha mascarada gargalhava, sua voz ecoando pelo campo e tornando a situação perigosa em algo próximo ao ridículo. A mana reversa pulsava ferozmente, alimentando seu corpo, mas exigindo um preço. Sempre que a Sombra tocava as cordas do alaúde, o caos parecia aumentar, dificultando para Ana manter a seriedade.
Ela não corria mais. Cada passo era uma declaração, então avançava com calma, como se o próprio tempo obedecesse à sua vontade. Conforme a luta avançava, após aprender um pouco os padrões do grande sapo, se tornou muito mais fácil desviar, identificando com precisão os pontos para onde ele não conseguiria saltar diretamente.
Com um único golpe que beirava o cruel, cheio de um incômodo desprezo silencioso, mais uma língua foi cortada.
A extremidade caiu ao chão com um som molhado, e Bogaroth soltou um grito estridente, balançando desajeitadamente, mas logo uma nova língua brotou, crescendo como uma serpente renascida. Ana observava com interesse, limpando a gosma que respingou em sua capa.
— É uma criatura incrível, admito.
— Acha melhor que a cura dos escamosos? — perguntou Nyx, dando uma breve pausa na música.
Ana não teve tempo de responder. A interrupção repentina dos acordes fez com que travou o fluxo forçado de mana reversa, e seu corpo reagiu como se estivesse afundando em areia movediça. Ela cambaleou, uma mão pressionando o peito antes de vomitar uma bocada de sangue.
— Desgraçada, quer me matar?
— Ops! — respondeu a barda com falsa inocência, seus dedos já voltando à melodia. — Geralmente uso isso em cadáveres, então não costuma ser um problema.
Ana suspirou, endireitando o corpo e limpando ointenso carmesim que vazava pela borda da máscara. Seus músculos queimavam, mas a dor já era parte dela.
— Enfim, não dá pra saber se seria uma boa adição para as próteses. Ainda não estudei o DNA de criaturas, só de corrompidos. Quem sabe quando tudo isso acabar.
— É, quem sabe... — respondeu Nyx com desinteresse, voltando a dedilhar mais algumas notas rápidas.
Um grunhido profundo quebrou o momento. O cavaleiro soltou as rédeas de Bogaroth e inclinou-se preguiçosamente contra seus chifres, guardando a espada bastarda de volta na bainha.
— Que diabos... que diabos… — murmurou. — Eu não gosto de ser obrigado a lutar assim, mas vocês duas já estão me cansando. Chega. Bogaroth, salte!
O sapo obedeceu enquanto as duas mulheres o encaravam confusas, e o cavaleiro aproveitou o momento. Já no alto, com uma movimentação fluida, puxou uma lança curta de sua sela, concentrou sua mana interna, estabilizou sua mira e atirou-a com toda a força. O projétil voou, cortando o ar como uma flecha mortal.
Tudo aconteceu em um piscar de olhos, e Nyx viu apenas uma mancha vermelha explodindo em conjunto com um som nauseante. O sangue que atingiu seu rosto a deixou paralisada por um breve segundo.
Antes que pudesse processar o que havia acontecido, viu um soco vindo em sua direção. Instintivamente se abaixou, esquivando-se por um triz.
— Idiota! Tira a cabeça da lua!
O golpe havia sido dado diretamente pela própria rainha, e o motivo estava claro: a lança que fora atirada estava cravada na mão de Ana, atravessando carne e osso por completo.
— Uou! Essa foi por muito pouco! — brincou a barda, com uma risada exagerada, saltando para trás para desviar de mais um soco dado pela companheira, como se aquilo fosse parte de uma grande performance teatral. Sua máscara de ópera escondia o sorriso, mas sua postura e movimentos tornavam impossível ignorar sua diversão.
Ana estava preparada para investir novamente em direção a mulher, mas um brilho prateado chamou sua atenção. Notou tardiamente que se tratava de um fino fio de metal entrelaçado ao cabo da lança, e antes que pudesse reagir, foi puxada pela mão ainda perfurada.
O movimento a desestabilizou, e um estranho frasco que vinha junto com o puxão se estilhaçou perto de sua perna. Felizmente, a maior parte de seu líquido cáustico atingiu o solo, mas o pouco que chegou ao seu corpo conseguiu corroer o couro e infiltrar-se nas brechas de sua armadura.
Ana cerrou os dentes enquanto sentia sua pele arder. Sem hesitar, arrancou um frasco regenerativo de seu cinto e o colocou com força no encaixe da armadura. O líquido demorou alguns segundos para se espalhar, e quando finalmente chegou na área afetada, apenas aliviou parte da dor, com a batalha entre o veneno e o regenerador continuando profundamente em sua carne.
"Vai ficar uma cicatriz, mas é melhor do que perder uma perna".
Ana usou a espada cravada no chão para apoiar-se e arrancou a lança de sua mão ferida. O momento foi exato, pois assim que finalizou o gesto a arma foi novamente puxada, e sem um respiro foi obrigada a se impulsionar para trás, desviando no último instante de outra ponta afiada que estava chegando.
— Impressionante, espadachim — zombou o cavaleiro, sua voz carregada de escárnio enquanto suas mãos enrolavam as correntes com calma, recuperando os itens lançados. — Poucos sobrevivem às minhas lanças, e ainda menos ao ácido de Bogaroth.
— E poucos conseguem ser tão irritantes quanto você, está de parabéns — respondeu de forma vagarosa Ana, balançando a perna para livrar-se dos últimos vestígios do líquido venenoso através da bota que agora estava parcialmente derretida.
Ao fundo, a fumaça negra voltou a emergir de Nyx, que tocava o instrumento ainda mais intensamente do que em sua canção inicial, e Ana estalou o pescoço, sentindo o fluxo de força selvagem retornar para dentro de si como uma onda avassaladora. O cavaleiro resmungou algo inaudível antes de dar outro comando à sua montaria, e Bogaroth voltou ao ar, cobrindo o Sol com seu corpo em um tipo de eclipse grotesco.
— Vai ser uma porra lutar com esse cara… Tenta só fugir, Nyx. Vou ver o que faço.
— Você pode usar manifestações, não?
— É nossa primeira luta, se eu gastar mana agora, as coisas podem se complicar um pouco… Bem, você sabe...
Nyx acenou, sem discutir, e girou o corpo no momento exato em que uma lança passou zumbindo a centímetros de sua cabeça. Ana desviou de duas outras que vinham em sua direção, aparando uma com sua espada. Para sua sorte, um frasco oculto entre as armas também atingiu a lâmina, derramando o líquido venenoso para o chão sem causar danos.
Bogaroth voltou a tocar o solo com força, mas quase imediatamente saltou novamente, obedecendo a outro comando de seu mestre. Mais três lanças foram lançadas, cada uma forçando as mulheres a movimentos rápidos para desviar.
Desta vez, porém, o ácido foi em direção à barda, que sem tempo para pensar, atirou o alaúde diretamente contra o projétil em um gesto quase desesperado. O impacto fez o frasco explodir no ar, espalhando o veneno longe. Felizmente, o instrumento, impregnado da mesma essência que a arma de Ana, permaneceu intacto.
A pausa na melodia, entretanto, fez Ana tropeçar mais uma vez. O retrocesso do poder a deixou momentaneamente pesada e descoordenada.
— Desculpe! — gritou Nyx, já correndo para recuperar o alaúde e voltar a tocar.
— Isso não vai dar certo… — Ana suspirou, balançando a cabeça enquanto sua mente trabalhava rapidamente para analisar o campo de batalha.
Bogaroth pousou novamente, rachando o chão sob seu peso, e preparou-se para, mais uma vez, repetir a ação de ir aos céus.
— Sem lanças dessa vez? — pensou rapidamente a mulher com os olhos seguindo o movimento do Jóquei. — Seis, então... supondo que ele não esteja escondendo algumas.
Com o corpo movendo-se quase automaticamente, ela começou a correr em direção à área onde o cavaleiro estava. Quando a montaria flexionou as patas traseiras, Ana deu um impulso poderoso, e sua lâmina brilhou sob a luz enquanto cortava o ar, desferindo um golpe pesado na enorme pata traseira do monstro.
Seus músculos, agora repletos de mana reversa, quase explodiram com o esforço, mas diferente do último ataque direto ao animal, esse surtiu efeito. Um longo corte abriu-se na carne da pata, e o salto saiu descontrolado, fazendo a criatura colidir com o telhado de uma grande casa, que desmoronou sob seu peso. Infelizmente Ana não teve tempo para comemorar. Antes que a poeira baixasse, ouviu um suave tintilar de correntes, e duas novas lanças vieram voando em sua direção.
A primeira passou de raspão, abrindo um corte ardente em seu braço. A segunda errou por pouco, e o impacto contra o chão próximo a ela jogou fragmentos de pedra e metal que arranharam sua armadura. Rangendo os dentes, esperou por um momento, tentando prever de onde o Jóquei viria em seguida.
"Concentre-se, idiota… concentre-se"
Respirou fundo, os segundos pareciam anormalmente demorados, até que, como esperava, o som do atrito metálico denunciou mais uma vez as lanças sendo puxadas de volta para a sela. Disparou na direção do Jóquei, que já comandava um novo salto. Desta vez, Ana ajustou sua posição e desferiu outro golpe rápido, abrindo mais um corte no corpo da criatura.
— Não está sendo profundo o suficiente... — resmungou, sentindo o cansaço acumular-se em seus músculos e vendo que, por mais que machucada, a criatura continuou os movimentos. Seus ossos começaram a protestar com estalos cada vez mais audíveis, e ela alcançou mais um frasco regenerativo no cinto. — Só restam mais três... Isso vai ter que bastar.
A sua frente, a sombra do sapo indicava onde ele pousaria em seguida. Ana correu para interceptá-lo, afinal, era tudo o que poderia fazer. Não esperava que, desta vez, o Jóquei estaria preparado. Assim que ela se aproximou, uma das armas foi lançada diretamente em direção ao seu rosto, enquanto a enorme espada bastarda do cavaleiro descia em um arco mortal em direção ao seu tronco.
Não havia tempo para desviar de ambos. Com um movimento rápido, ela conseguiu sair da trajetória da lança, mas para a espada, precisou colocar sua própria lâmina como barreira. O choque percorreu seu corpo como um raio, e, pela primeira vez em muito tempo, Ana soltou sua arma. A dor na mão mutilada tornou impossível manter o agarre.
— Merda! — gritou, impulsionando-se para trás com um fluxo de mana reversa que concentrou nos pés. O movimento evitou o próximo golpe, mas, ao pousar, suas pernas fraquejaram, e ela caiu de joelhos.
O Jóquei começou a rir em um tom alto e cheio de arrogância. Contudo, ao invés de irritá-la, o som instigou-a, e um riso contido pela dor escapou de seus lábios, crescendo até se igualar ao do inimigo.
Cambaleando, a mercenária se levantou. Estendeu a mão para pegar sua espada caída, mas sentiu algo estranho. A arma parecia menor do que deveria. Seus olhos estreitaram-se em confusão, e antes que pudesse entender o motivo, sentiu o puxão súbito da corrente. O homem, com um movimento firme, arrancou a arma de arremesso de suas mãos.
— Ah… Eu devo estar realmente cansada… — murmurou Ana, os lábios curvando-se em um sorriso incrédulo. Desta vez, estendeu o braço corretamente em direção à sua arma escura. — Acredita que confundi você, velha amiga, com uma simples... lança…?
Foi quando a realização a atingiu com a força de um soco de lutador de boxe. Seus olhos se arregalaram, e uma gargalhada estrondosa escapou de sua boca, reverberando pelo campo.
— Caralho… caralho! Estou ficando senil! Uma velha estúpida e senil!
Ela balançava o metal negro em suas mãos como se tivesse acabado de descobrir um segredo mirabolante do universo. Ao mesmo tempo, não conseguia deixar de sentir-se ridiculamente burra.
— Longa demais para uma espada. Fina demais para uma espada. Tão estupidamente óbvio! Só pode ser uma lança!
Ao fundo, o som dos saltos de Bogaroth ecoava mais uma vez, a terra tremendo a cada impacto. Mas ela ignorava a aproximação do monstro. Fechou os olhos brevemente, deixando o mundo ao redor se dissolver em ruídos abafados. Quando soltou o ar, junto com ele veio um punhado da fumaça negra que a fortalecia, ondulando como serpentes ao seu redor.
— Gastar só um pouquinho de mana não vai fazer mal... — resmungou, enquanto uma fina vinha emergia de sua armadura, subindo em espirais pela empunhadura da arma negra. A energia reversa fluiu como um veneno vivo, e com sua influência sobre a mana comum, espinhos surgiram por toda a extensão da manifestação. Eles perfuraram sua mão sem piedade, gotas de sangue escorriam por seu braço, mas Ana não se importava.
Como se absorvendo parte da energia de sua dona, a arma começou a brilhar fracamente. Era um brilho opaco, quase como o reflexo de um abismo infinito, devorando tudo ao seu redor.
Vendo isso, Ana ajustou sua postura com cuidado. Memórias do Grande Vazio afloraram em sua mente, de um tempo onde aquele movimento fora praticado milhares de vezes, mas seu corpo parecia lembrar antes mesmo de sua consciência.
Flexionou os joelhos, transferindo o peso para a perna de apoio. A mão que segurava a arma ajustou-se levemente, buscando o equilíbrio perfeito. Os músculos de seus ombros e braços tensionaram-se, enquanto o fluxo de mana reversa percorria suas veias como fogo líquido. Cada parte de seu corpo parecia uma mola prestes a se soltar. Bogaroth, agora quase sobre ela, era uma ameaça colossal, mas a mercenária estava pronta para isso.
Com um grito rouco, jogou a arma.
A lança negra rasgou o ar com uma estranha beleza em um trajeto hipnotizante. Seu movimento era tão gracioso quanto implacável, uma obra de arte forjada para a destruição, um predador ansioso por ser liberado.
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