A cena, antes ordenada e controlada, explodiu em um banho de sangue caótico. Dos aproximadamente seiscentos soldados que marchavam sistematicamente, cerca de cem agora estavam caídos, empalados por lanças simples, mas extremamente afiadas. A visão era horrenda: olhos arregalados em choque, bocas entreabertas, tentando entender o que havia acontecido. Tudo fora rápido demais, tão de repente que nem tiveram tempo para reagir. Alguns ainda respiravam, mas nenhum deles estava em condições de continuar na batalha.
Aqueles que não foram atingidos despertaram subitamente com os gritos de agonia ao redor, erguendo as armas em reflexo e assumindo posições defensivas.
— Despertem, o inimigo nos cercou!
Entre eles estava Amélia, a líder da guilda dos Grifos. Vociferava comandos enquanto avançava com elegância feroz, perfurando cada corrompido que se aproximava. Sua presença era marcante e, ao mesmo tempo, contraditória: era intensa, mas de feições doces, e movia-se com uma suavidade quase graciosa.
Sua arma não era menos peculiar: uma fina agulha de pouco mais de um metro, praticamente invisível a olho nu, mas brilhando sutilmente com um tom esbranquiçado toda vez que ela a movia para atacar, com as minúsculas runas em sua empunhadura acendendo por breves instantes antes de voltarem a se apagar. Era tão delicada e afiada que parecia mais uma extensão de seus dedos do que uma arma propriamente dita.
Mantinha uma postura impecável, o corpo levemente inclinado, com uma das mãos repousando nas costas, quase como se duelasse em um salão nobre. Seus cachos castanhos balançavam ao ritmo de seus passos, e embora seus olhos mostrassem uma pontada de tristeza, como se lamentasse cada vida que ceifava, sua determinação não deixava espaço para hesitações. Cada golpe era letal.
— Se agrupem! — bradou Amélia, sua voz cortando o ar e puxando os soldados para a realidade brutal à sua volta. — Foquem nos sussurradores de pétalas antes que eles iniciem uma nova ilusão!
A cena ao seu redor era desconcertante. O número de corrompidos era impressionante, um mosaico de seres que, para ela, pareciam ter saído de um pesadelo. Observando-os de relance, teve que refrear seu impulso de recuar, afinal, eram o dobro de suas tropas. Felizment, ao estudar rapidamente a formação inimiga, percebeu que a maioria dos adversários mal sabia como empunhar uma arma, claramente despreparados para uma guerra em grande escala.
Apesar do estranho povo-planta se destacar com seus corpos cobertos de trepadeiras, musgo e flores exóticas que brotavam diretamente de suas peles, não eram os únicos presentes naquele campo de morte.
Entre as fileiras havia uma gama fascinante de variantes, e cada grupo parecia ter sua própria peculiaridade. Sua atenção foi atraída principalmente por pessoas de ossos retorcidos, figuras em que as deformidades eram tão pronunciadas que seus próprios corpos pareciam enredados em ganchos e espinhos naturais. Seus números eram pequenos e seus movimentos lentos, mas cada golpe era brutal e quase suicida. Eles avançavam de forma incontrolável, e suas extremidades afiadas perfuravam armaduras com uma facilidade anormal.
Nos flancos, corrompidos salivantes causavam ainda mais desconforto. Estas pobres pessoas possuíam pele viscosa e olhos injetados de sangue, e seus dentes serrilhados pareciam prontos para despedaçar qualquer coisa em seu caminho, acompanhados de um filete de saliva que escorria constantemente de suas bocas, deixando manchas de um líquido escuro no chão. Apesar de quase rastejarem, moviam-se com rapidez, esgueirando-se pelas beiradas e tentando atacar os soldados desprevenidos.
No entanto, não eram esses combatentes improvisados que a preocupavam, mas sim aqueles malditos vermes feitos de milhares de flores. Seus corpos massivos seguiam de perto alguns membros do povo verde, os quais, descaradamente, exibiam estranhas coroas feitas inteiramente de girassóis em suas cabeças.
Assemelhavam-se a cachorros adestrados, mas, apesar disso, não mantinham a mesma fofura destes animais domésticos, pois o denso pólen que exalavam tecia perturbadoras ilusões, tão detalhadas e cruéis que amedrontavam até mesmo os soldados mais experientes.
A guerreira avançava em frente a ela com rapidez e calma, cada golpe uma estocada mortal, e, em menos de um minuto, mais de cinco inimigos já haviam caído perante sua lâmina, sem muita ameaça.
Isso até o primeiro plantíneo se aproximar, indiferente à própria segurança, com uma faca avermelhada firmemente empunhada na mão. Ele se lançou contra Amélia com a fúria de um desespero inesperado. No reflexo, Amélia jogou a agulha contra o peito do atacante, que foi perfurado com um som seco, como se fosse apenas mais uma folha quebrando ao vento. O homem de madeira apenas sorriu, a faca a poucos centímetros de alcançar o rosto da líder inimiga.
— Patético — murmurou Amélia, com um suspiro de desdém.
Ela se moveu com um sutil passo para trás, desviando-se do ataque sem perder a compostura. O plantíneo, ainda sorrindo, virou o braço bruscamente, pronto para uma nova investida. Dessa vez, mirou diretamente no peito da mulher, e com uma velocidade impressionante, avançou em seu coração.
Seus planos foram frustrados quando repentinamente a intensidade da luz na lâmina encravada em seu corpo aumentou. O brilho, antes discreto, transformou-se em uma luminosidade quase cegante, ofuscando a visão ao redor.
"Eu... com dor?" pensou o atacante, incrédulo.
Havia quanto tempo desde que ele sentira algo assim? Desde que havia sido transformado pela mana, seu corpo de madeira e folhas substituíra a vulnerabilidade da carne. A dor havia se tornado uma memória distante.
Mas não era uma alucinação: a dor estava lá, real e intensa, cada fibra vegetal de seu corpo pulsava com uma agonia insuportável. Contudo, foi uma sensação passageira, pois logo percebeu algo ainda mais perturbador. Rachaduras surgiam em seu peito e se espalhavam com velocidade assustadora. Ele tentou gritar, mas, antes que o som escapasse, sua garganta começou a se desfazer em estilhaços translúcidos. Sua boca, seus olhos, cada parte de seu corpo começou a se fragmentar, se despedaçando em uma destruição silenciosa.
E então, ele já não existia mais.
Amélia fitou o que restava dele com olhos cheios de pesar, seu semblante carregando um toque de melancolia. Era sempre assim: matar lhe trazia uma sensação amarga.
Com um movimento suave e quase cerimonial, balançou a agulha, limpando a lâmina da poeira gelada que havia se depositado nela. Os pequenos pedaços de gelo caíram ao chão, estalando ao se misturarem com o sangue e a terra.
— Desgraçados, o que estão esperando?! — gritou, levantando os olhos, a raiva escapando em um tom ríspido. — Queimem tudo e recuem!
A ordem parecia óbvia, mas executá-la era um desafio maior do que poderia parecer. Cada vez que um manipulador tentava se concentrar para lançar uma labareda, um ataque surgia de algum canto, forçando-o a quebrar o foco. Quando uma fagulha ocasionalmente conseguia tocar as flores que cobriam o solo, os habitantes corrompidos se jogavam sobre ela, extinguindo-as com seus próprios corpos para impedir que o fogo se espalhasse. Já quando um sussurrador de pétalas era atingido, rapidamente amputava a parte danificada de seu corpo sob as ordens das dríades que os comandavam. Ficavam menores, enfraquecidos, mas ainda capazes de exercer algum impacto no combate.
A batalha se arrastava, as fileiras de ambos os lados diminuindo rapidamente. Os soldados estavam exaustos, seus movimentos se tornaram mais calculados e hesitantes, enquanto o ritmo frenético da luta aos poucos era substituído por uma cautela cuidadosa para evitar mais baixas, perdendo a intensidade.
A única exceção eram os cavaleiros leves da Guilda dos Grifos. Eles seguiam em alta velocidade nas bordas do campo em seus cavalos, investindo e recuando com cautela. Com suas montarias ágeis, não permitiam nenhuma brecha que os tornasse alvo das ilusões dos sussurradores, embora os danos que infligiam fossem menos impactantes a cada incursão.
Amelia sentia o sangue ferver com a estagnação. Os dentes cerrados e as mãos crispadas revelavam sua irritação crescente, queria acabar logo com aquilo, não gostava deste tipo de ambiente.
— Patético! Patético! — murmurava, cada vez mais fora de controle, enquanto a compostura fria e disciplinada começava a ruir. A mão que mantinha atrás das costas apertava seus cabelos com tanta força que fios rebeldes se soltavam em suas mãos.
Foi então que, nesse momento, um som de estática cortou o campo de batalha. Era baixo, mas claramente direcionado a ela. Seus olhos, ferozes e atentos, se viraram rapidamente em direção ao ruído, se deparando com uma mulher planta carnívora de formato estranho, a qual parecia rir, como se zombasse da situação.
— Acham mesmo que ignoraríamos a fraqueza mais óbvia do nosso exército? — murmurou Marlene, com um sorriso desafiador nos lábios cheios de seiva. — O solo está extremamente úmido, não permitiremos que queimem esse local.
Amelia a ignorou; em um movimento rápido, atacou a figura zombeteira, mas a lâmina cortou apenas fumaça enquanto Marlene desaparecia.
— Como ousam atacar nosso lar… — sussurrou a voz cheia de estática da plantínea, tão próximo que Amelia sentiu o calor da respiração em sua orelha. Instintivamente, a guerreira girou a espada, mas o movimento foi em vão, acertando o ar mais uma vez. Nesse exato momento, um ataque invisível acertou sua armadura, fazendo um rasgo no metal.
— Vadia covarde, me encare de frente! — irritada, ela rosnou e olhou ao redor. A expressão gentil da líder dos Grifos havia se transformado em um ódio puro e descontrolado. Ela apertou a espada, que começou a brilhar com uma intensidade ainda mais fria, e o ar em seu entorno tornou-se anormalmente gelado.
Outro ataque sibilou no ar. Amelia, agora mais alerta, tentou desviar, mas a lâmina inimiga ainda conseguiu fazer um corte fino em sua cintura. Ela grunhiu, a frustração evidente em seus olhos.
— Imundos patéticos, apareçam! — rugiu. A frieza implacável da lâmina novamente cresceu, tão intensa que os próprios lábios da guerreira começaram a tremer. Uma leve neblina se estendia da arma, formando uma aura gélida que aumentava sua presença intimidadora no campo.
Seu foco aumentou ainda mais, e um sorriso sombrio surgiu em seus lábios quando, subitamente, um estalo sutil rompeu o ar semi congelado ao seu lado, um som quase inaudível, mas o suficiente para denunciar a presença da oponente.
— Te peguei, aberração!
O golpe foi certeiro. Um grito curto e ruidoso acompanhou o som de estilhaços quebrando-se. Em um instante, o mundo ao redor dela tremeu, a visão distorcida se despedaçando como um espelho em frangalhos, dissolvendo a ilusão em que estava. Quando a fumaça clareou, Marlene estava à sua frente, segurando o ombro onde antes estivera seu braço.
Sem olhos, mas com uma raiva quase palpável, a mulher planta fixou um olhar mortal em Amelia, que, satisfeita, repetiu o movimento brusco da espada de sua luta anterior, fazendo os fragmentos congelados que antes eram o braço de Marlene caírem ao chão.
— Não se preocupe — murmurou, o tom de voz carregado de ironia. — Eu não preciso de fogo para acabar com todos vocês.
Marlene não respondeu. Sabia que Amelia estava em um nível muito acima em termos de combate, não seria capaz de derrotá-la diretamente. Com uma expressão de desconforto, a mulher vegetal recuou lentamente, dissolvendo-se em meio ao sussurrador de pétalas atrás de si.
A líder da guilda dos Grifos, agora em um breve momento de alívio, também retornou, aproximando-se de um de seus capitães, um homem alto com uma espada larga que parecia o completo oposto da sua, e com um olhar brusco, mas estranhamente gentil. Observando a armadura parcialmente destruída da líder, o capitão bufou, uma expressão de respeito e desaprovação misturadas em seu rosto.
— Metade das nossas forças já foram destruídas — reportou ele. — Mas eles também não estão muito melhor. Nossos manipuladores restantes conseguiram reagrupar e incineraram algumas daquelas malditas minhocas, mas… as demais simplesmente desapareceram.
Amelia assentiu, encarando fixamente o exército inimigo à distância.
— Ordene que os cavaleiros deem a volta e ataquem de surpresa pelos flancos. Enquanto isso, vamos investir direto no centro da formação deles.
— Isso é perigoso, Amelia.
— Cale a boca. Olhe o nível desses caras. Vai me dizer que está com medo?
— Não é medo, mas...
— Apenas me siga, idiota! — ela o interrompeu, sua voz cortante, enquanto partia para a linha de frente, sem olhar para trás.
Os soldados entraram em formação rapidamente atrás dela, como se a presença firme de Amelia fosse o único escudo necessário. O capitão, ainda um pouco reticente, fez um gesto aos cavaleiros, que entenderam a ordem prontamente e começaram a se reposicionar, preparando o ataque lateral.
Do outro lado do campo, o exército de Insídia os observava com expressões misturadas de apreensão e determinação. Os feridos estavam sendo atendidos por dríades, que passavam pelas fileiras com recipientes de medicamentos estranhos. Os soldados que os bebiam pareciam recuperar rapidamente o vigor perdido; seus olhos se focavam, e suas mãos, que antes tremiam, ficavam firmes como aço. A líder, Marlene, assistia à cena com uma expressão impassível.
Ela alinhou o rádio em seu peito e preparou o que poderia ser sua última mensagem para o exército.
— Pensem em suas famílias — começou, com uma voz que adentrou no ouvido de cada um ao redor. — Pensem em suas casas. Pensem neste mundo tão cheio de podridão… Hoje, guerreiros, temos apenas uma missão. E não é uma missão bonita. A morte, afinal, quase nunca é bonita.
Enquanto falava, ajustava os botões do rádio. Ela riu pensar que teria sido perfeito se houvesse tempo para instalar caixas de som nas plantações, soube que estavam tocando a todo vapor no centro da cidade, mas aquele detalhe não importava mais. Com um último giro no dial, o rádio se sintonizou fracamente na transmissão de Ana, e a música intensa e vibrante também ressoou no dispositivo preso em seu peito.
Ela fechou os olhos, sentindo a vibração em seu corpo.
A música era especial para o mudo povo verde. E, nessa situação, também foi para os soldados em campo.
O efeito da melodia misturava-se à bebida que as dríades haviam entregado anteriormente; seus olhos, que haviam recuperado um intenso foco que sobrepunha o medo, começaram a desanuviar-se. Os corpos balançavam inconscientemente no mesmo ritmo das notas musicais que saíam como uma cachoeira, envolvendo-os como se fossem um só com o som.
"Me desculpem por isso… mas é o melhor para todos nós", pensou ela, com o olhar preenchido por uma sensação indescritível, enquanto via o efeito das drogas enraizarem-se profundamente na mente de cada soldado.
— Não se preocupem, povo de Insídia! Hoje, a natureza está do nosso lado! Hoje, venceremos!
Um grito de guerra se ergueu da multidão, seguido de outro, e mais outro, até que o campo de batalha ecoava com a promessa de resistência. O exército corrompido estava pronto, e avançou como uma onda viva de cor e força, além de uma paz artificial que não deveria estar presente em seus estranhos sorrisos.
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