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Chapter 139 - Rum, Runas e Reféns

— Realmente há necessidade disso? 

Ana riu com a pergunta do mentalista, mas seu olhar continuava fixo e impiedoso em Niala. 

— Necessidade? Você ficou mais estúpido no tempo que ficou com esses caras? — o desprezo em sua voz estava escancarado. — É lógico que tem necessidade. Nem fodendo vou entrar em um barco cheio de pólvora sem uma garantia.

Ela passara os últimos dias recuperando-se apenas o necessário para carregar a espada outra vez, e imediatamente colou o aço frio da lâmina sob o pescoço da soberana com precisão, sem nunca ameaçar de fato sua vida, mas o suficiente para deixar claro quem estava no controle.

Desde então, se recusara a deixar a lâmina baixar, permanecendo a meros centímetros de distância da rainha inseto, sendo obrigada a dar passos ao mesmo tempo que sua prisioneira para manter o equilíbrio. Era uma cena no mínimo peculiar, talvez cômica, mas, se alguém achava aquilo covarde, Ana não estava interessada. Mesmo beirando o exagero, ela tomaria todas as precauções para evitar uma reviravolta.

Niala mantinha seu habitual semblante entediado e fedia a bebida, ocasionalmente lançando um olhar fugaz de desdém para a espada pressionada contra sua pele. Ela não protestava, apenas caminhava um passo de cada vez, acompanhada de perto por Luiz, que não disfarçava seu desconforto com a cena.

A preparação para a partida acontecia em meio ao caos da colônia. A ordem dada por Niala parecia ter causado um alvoroço, mas, devido à quantidade de habitantes de Myrmeceum, carregavam a grande embarcação em tempo recorde, enchendo-a com centenas de baús de pólvora. 

O barco era uma estrutura simples, mas impressionante, de madeira escura, com remendos de metal nas bordas que lhe davam uma aparência robusta e desgastada pelo tempo. Apesar de grande e projetado para carregar uma quantidade massiva de carga, sua estrutura interna havia sido adaptada para permitir que fosse manejado por poucas pessoas. Cordas grossas e bem trançadas pendiam das laterais, presas a suportes de ferro com entalhes rúnicos, indicando que algum nível de engenharia mágica havia sido implementado ao mesmo.

A cabine de comando, elevada em relação às demais partes, oferecia uma visão panorâmica do rio, sendo protegida por uma estrutura curva que abrigava o leme. Os mastros altos mantinham-se firmes, apesar das velas esfarrapadas de tecido reforçado com fios metálicos que cintilavam à luz do sol. 

Os baús com a carga preenchiam cada canto possível do convés, amarrados com cordas grossas e fixados com âncoras improvisadas, para evitar que qualquer movimento os jogasse na água. Apesar de seus múltiplos detalhes, era uma embarcação que parecia sustentada por adaptabilidade. Nos tempos antigos seria impraticável que algo desse porte navegasse pelas águas turvas do Tietê, mas o rio agora era bem diferente. 

O som da correnteza, pesado e ruidoso, indicava a força com que ele fluía. Com a mescla dos mundos, se tornara vasto e incontrolável, largo o suficiente para transportar um exército. Esse era o único caminho rápido até Insídia, já que era inviável atravessar a floresta em segurança com uma carga tão grande e na presença de tantos inimigos.

Ana caminhava de costas até o barco. A cada passo, suas botas faziam um estranho barulho ao afundar levemente na lama da beira do rio, e olhares surpresos e receosos a acompanhavam. Quando finalmente subiu em seu transporte, fez questão de declarar em voz alta, olhando diretamente para quem quer que estivesse por perto.

— Assim que chegarmos ao destino, ela será liberada. Não vim aqui para buscar guerra.

Não houve resposta para o comentário, então a mercenária simplesmente deu de ombros. A figura de Verath era a única que os observava de perto com uma expressão diferente do medo. Ele havia retornado às pressas de uma viagem nas aldeias próximas ao ouvir a notícia da partida da rainha e, por sorte e muito esforço de suas frágeis asas, conseguiu chegar pouco antes de partirem.

— Não se preocupe, Verath. Eu confio que os mascarados não buscam uma batalha... Apesar de toda a comoção. — disse Niala, interrompendo as palavras que sairiam da boca do homem inseto, em um tom arrastado e monótono. 

Aquelas palavras não pareciam convencê-lo, que a encarou com frustração evidente. Niala, no entanto, manteve-se calma, virando o rosto lentamente para ele. 

— Cuide da colônia enquanto estou fora. Sei que ficará tudo bem. 

Verath aproximou-se, e embora mantivesse uma postura respeitosa, os punhos cerrados e os lábios pressionados mostravam a verdadeira expressão de desagrado. Ele estava rangendo os dentes com tanta força que todos puderam ouvir o som. Seus olhos se voltaram para Ana com uma intensidade cortante, como se sua raiva pudesse atravessar a distância entre eles e cortá-la ao meio ali mesmo. Ele parecia prestes a reclamar, mas se conteve. Com relutância, fez uma leve reverência para sua rainha.

— Como quiser, majestade.

A rainha mascarada observou o súbito ato de lealdade com uma mistura de desprezo e diversão. O olhar gélido que ele continuava a lhe lançar só a divertiu ainda mais, e ela retribuiu com um sorriso sardônico, como se o desafio dele fosse um mero detalhe.

Enquanto o sol se punha, lançando sombras douradas nas águas do rio, o cenário transformava a cena em algo quase surreal. Era como se a natureza conspirasse para observar aquela interação delicada entre ameaças e uma paz incômoda.

Assim que tudo estava pronto, Luiz subiu no barco, desamarrando a corda que mantinha a embarcação presa ao porto. Ana, com um gesto meio torto devido ao corpo da mulher colado ao seu, ergueu a perna e deu um chute seco na rampa de acesso, que caiu pesadamente na água com um som abafado. 

Sem mais conversa, o barco começou a se mover, impulsionado pela correnteza forte do rio. Quando finalmente estavam longe do alcance da visão do povo de Myrmeceum, Luiz soltou um suspiro longo e exausto. Ele observava o cenário que passava rapidamente ao seu redor, enquanto lentamente ajustava uma das velas.

A embarcação balançava ritmicamente, o som da água batendo nas laterais misturando-se com o rangido das velas. Ao longe, a vegetação densa das margens parecia indiferente à tensão crescente a bordo, como se o mundo natural zombasse do teatro humano.

Ana, por outro lado, continuava com a espada em mãos, ocasionalmente lançando um olhar afiado para Luiz, como se até mesmo ele não estivesse completamente isento de sua desconfiança.

— Pensei que ele ia quebrar os dentes enquanto te encarava — comentou o mentalista, se sentando na borda do barco.

— Aquele cara é bizarro. Como consegue manter ele do seu lado, mulher aranha?

— Verath não é exatamente do tipo fácil de lidar, admito. Mas o que lhe falta em tato, ele compensa com eficiência. É leal à colônia e a mim, mas possui um... senso de pragmatismo afiado demais.

Ana riu, um som curto e cínico, e finalmente baixou a arma, flexionando o braço com alívio. Arrastando a arma pela madeira, caminhou ao redor, dando pequenas batidas no tampo dos muitos caixotes empilhados.

— Podem parar de me olhar assim? — Ana resmungou, sentindo o olhar confuso dos outros dois navegantes. — Meu braço já estava doendo.

Luiz riu com discrição, enquanto Niala apenas a encarou, como se analisasse cada movimento. Ignorando-os, Ana continuou com as batidas, até ouvir um som diferente, um toque que indicava algo oco.

— Achei! — exclamou, triunfante.

Ao abrir o baú, revelou uma fileira ordenada de garrafas de rum, cada uma brilhando sob a luz do dia como uma promessa líquida de alívio. Com um sorriso travesso, pegou uma garrafa e lançou-a para Luiz, que a pegou no ar, surpreso. Pegou outra e jogou para Niala, que a recebeu com um estranho entusiasmo. Por fim, arrancou a rolha da própria garrafa com os dentes e bebeu longamente, permitindo que o calor do álcool descesse em um fluxo forte e contínuo.

— Sorte que não deixaram isso escondido no meio das outras caixas — murmurou para si mesma. — Eu ficaria puta, seria um inferno encontrar.

Sem mais rodeios, ela deu passos firmes em direção ao leme do barco. Ao tentar movê-lo, percebeu imediatamente o peso robusto da madeira, que exigia força descomunal para girar. Contudo, Ana não se intimidou. Passou os dedos pelos símbolos rúnicos finamente gravados ao redor do leme e tomou outro gole de rum, sentindo o calor aumentar em seu peito. Com curiosidade crescente, decidiu experimentar aquele grande "equipamento", e canalizou um fio fino de mana, infundindo-o diretamente nas marcas.

Gradualmente, uma luz suave e hipnótica de azul-claro com toques de amarelo começou a emanar da estrutura do barco, iluminando cada linha e detalhe entalhado na madeira. Fascinada, Ana observou a embarcação reagir, tornando-se quase viva sob seu toque. 

— Ora, ora… — sussurrou ela, fascinada.

Com o controle restaurado, girou o leme mais uma vez, experimentando o peso do barco na correnteza. O barco tremeu intensamente em resposta, fazendo um movimento brusco que balançou todos os presentes. Luiz arregalou os olhos e soltou um leve palavrão, enquanto agarrava a borda para evitar uma queda desastrosa. Sua surpresa era visível, o rosto ligeiramente pálido, mas ele rapidamente recompôs a expressão com um suspiro aliviado. Já Niala, impassível, manteve-se firme, segurando-se com precisão usando uma das patas de aranha para estabilizar-se. Um leve desconforto cruzou seu rosto, mas ela rapidamente reajustou a postura, com uma expressão fria e controlada. Ana apenas sorriu em uma excitação contida.

— Incrível... — sussurrou com os olhos brilhando.

Logo após tudo se normalizar, ela se abaixou e começou a inspecionar mais de perto cada entalhe, murmurando suas funções em voz baixa, até que encontrou uma sequência de runas que não reconhecia.

— Rainha alcoólatra, pra que serve isso aqui? — ela gritou para Niala, sem sequer levantar a cabeça.

— Qual das interposições? — perguntou Niala, parando de beber com um misto de irritação e exasperação.

— Quinta linha inferior, partindo do centro, logo abaixo da runa de controle principal.

Niala refletiu por um momento, tomando mais um gole de rum antes de responder.

— Está vendo a runa anterior, de estabilização? Seguindo ela você chega na de redistribuição de força, ajustando o leme para suportar o fluxo de mana sem quebrar.

— Ooooh, muito prático! — Ana sorriu, visivelmente impressionada. — Não tinha pensado em usá-las desse jeito.

Animada com a descoberta, ela deu um pulo leve por cima do leme e caminhou até Niala, puxando a manga esquerda da camisa que Luiz havia lhe arranjado. A roupa improvisada revelou parte de sua armadura, adornada com runas simples de endurecimento.

— E então? O que acha? Como posso aprimorar isso?

Niala observou a armadura por alguns segundos, sua expressão indecifrável. Ana notou que as pernas de aranha da rainha se aproximavam, mas não sentiu nenhuma hostilidade, então manteve-se parada. Niala começou a passar a ponta dos membros aracnídeos pelas runas, franzindo o cenho ao ver que algumas delas terminavam de forma abrupta.

— Isso não parece apenas engenharia mágica… — comentou Niala, com uma ponta de curiosidade.

— E não é. Há uma parte orgânica ligada diretamente à carne.

— Qual o sentido disso?

— Bem... Eu... "rego" elas — respondeu a rainha mercenária, dando de ombros.

Niala arqueou uma sobrancelha, sem entender completamente o que Ana quis dizer, mas decidiu não insistir. Em vez disso, seguiu observando o item como um quebra-cabeça interessante.

— Runas conectadas às veias — Niala disse, percebendo o detalhe. — Isso expande enormemente as possibilidades de uso.

Ana piscou, surpresa que a rainha tivesse notado a ligação com tanta precisão.

— Não é fácil aplicar múltiplas runas em um equipamento, especialmente para propósitos diversos — continuou Niala, mostrando suas pernas enquanto levava a garrafa a boca novamente. — Veja, cada uma dessas pernas tem um tipo de runa específica, mas as que não possuem runas de proteção são frágeis, focadas em aprimoramentos de ataque. Quando se coloca mana em um equipamento comum, é impossível prever a direção do fluxo, o que torna a inclusão de múltiplas funções um risco. Em resumo, uma combinação de propósitos pode simplesmente fazer tudo explodir.

Ela pausou, observando a reação de Ana, que escutava com uma intensidade incomum.

— Mas no seu caso, com as veias conectadas e com treino suficiente, você poderia considerar isso como uma extensão do seu corpo, controlando os fluxos em cada direção. Deve ter sido aterrorizante fazer essa fusão.

Ana riu alto, seu rosto iluminado por uma mistura de admiração e excitação.

— Ah, dor é o tempero da vida, não acha? Se é fácil demais, não vale o esforço — Arrumando a manga, ela se sentou ao lado da rainha inseto. — Sabe, eu adoraria saber mais. Que tal uns minutos para me ensinar durante a viagem?

Apesar do tom leve, Ana manteve sua espada em uma posição propositalmente ameaçadora, e Niala revirou os olhos, sabendo que, mesmo sendo uma pergunta, ela não teria escolha.

— Claro... Por que não?

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