Ana, a estátua de Gabriel e a Sombra estavam reunidas na sala do trono. O ambiente ainda estava impregnado pelo cheiro de sangue, resquício da batalha recente. Após os tratamentos básicos, o restante do grupo descansava em um dos cantos, exaustos, tentando recuperar as forças.
Por um momento, Ana balançou sua espada longa no ar. A arma já estava com quase um metro e setenta e cinco depois das últimas batalhas, tornando-se algo pouco prático para uso rotineiro. Porém, algo diferente ocorreu após André finalmente deixar de respirar; a lâmina, que sempre crescia em tamanho e peso, ficou sutilmente mais leve.
A mudança parecia quase imperceptível, mas a mercenária já estava acostumada o suficiente em notar as pequenas alterações na espada negra, e a drástica mudança de comportamento a deixou intrigada. Após a encarar por alguns minutos, a colocou cuidadosamente ao lado do trono com um longo suspiro.
— Como isso aconteceu? Como vocês criaram vida? — perguntou Ana, quebrando o silêncio com uma pergunta que já estava a horas fervendo em sua mente.
A mercenária mudou de posição, quase deitando-se no trono, totalmente relaxada, enquanto a sombra se escorava na escada. A figura alada, por outro lado, mantinha uma postura ereta com a cabeça levemente abaixada, como se nervosa por estar em frente a alguém que exigia respeito.
— Não sabemos ao certo. Um dia, simplesmente… despertamos. Foi como se a vida tivesse sido soprada em nós. E, com o movimento, vieram as memórias. Memórias de eras em que estivemos estagnados, sem perceber o tempo passar — sua voz inexpressiva ecoava pelo local, quando certa ternura começou a surgir em cada palavra. — De imediato lembramo-nos do seu toque, da primeira vez que sentimos sua mão moldando nossas formas.
Ana estreitou os olhos, processando as palavras. Aquilo tudo não parecia muito possível.
— Isso foi há séculos... — murmurou ela, a perplexidade evidente em sua voz.
Gabriel assentiu levemente.
— Sim, sei disso. Mas, na realidade, o nosso despertar ocorreu apenas nos últimos anos.
— E não pensaram em se mudar para algum outro lugar? Essa cidade está um lixo…
— Oh, não… Não precisamos dormir, não sentimos fome ou sede, e... não envelhecemos. Já saímos daqui antes, mas as pessoas nos evitam, fomos nomeados de amaldiçoados, e desde então poucos se aproximam…
Os olhos de Ana brilharam de repente com as palavras, sua expressão iluminou-se.
— Um corpo imortal que não se cansa? Vocês podem desbravar tudo o que existe no mundo! Isso... isso é a perfeição, a verdadeira liberdade! Como podem pensar ser amaldiçoados?! — disse ela, com um tom de inveja quase infantil.
— Não é tão simples, nem tão perfeito… Não sentimos vontades, não temos desejos ou sonhos. Apenas existimos. A cidade onde vivemos, que uma vez foi vibrante, agora está em decadência. Sem objetivos, sem algo para guiar nossos passos... tudo o que ansiávamos era o seu retorno. Um anseio por algo que nos motive a continuar, nos dê um objetivo.
— Eles são semelhantes a mim… — a Sombra, que até então estava em silêncio, murmurou suavemente.
Ana franziu a testa, intrigada.
— De que forma?
A Sombra suspirou, como se estivesse prestes a explicar algo complexo e profundo.
— São erros. Sabe, a Mãe... ela está em tudo: nas árvores, na brisa, no mar. Ela é parte do mundo, e sua vontade permeia cada coisa, mesmo quando ausente. Eu fui criada a partir de uma fração dessa vontade, sou fruto de sua essência.
Com estas palavras, a Sombra se endireitou na escada, esticando as costas com um espreguiço antes de continuar.
— A mana reversa que flui em meu corpo é uma manifestação dessa vontade. Pelo que aprendi da Mãe, a mana comum é como Deus; é a própria vontade da Criadora. A mana reversa, por outro lado, é a antítese, uma forma de se opor ao ser que lhe nega. Mana reversa é o que desafia Deus... mana reversa é a própria Mãe.
A Sombra fez uma pausa, deixando suas palavras pairarem no ar antes de seguir sua explicação, seus olhos sombrios refletindo a curiosidade dos dois ouvintes.
— Infelizmente, diferente das criações de Deus, o que surge através da Mãe são falhas. Sombras como eu... nós não temos sentimentos profundos, é como se estivéssemos à margem da existência. Entendemos o que é viver, mas não experimentamos o mundo da mesma forma que os outros seres vivos. E essas estátuas... elas são como eu, seres incompletos, criados sem um verdadeiro propósito.
Ana olhou para o ser mascarado, tentando absorver o que a Sombra acabara de dizer. Havia algo de trágico naquilo, uma beleza melancólica na ideia de existir sem propósito, sem um verdadeiro sentido de ser. Era algo que ela entendia por si própria, e, para falar a verdade, um estado de existência que ela daria tudo para recuperar.
— No entanto — continuou a Sombra, sua voz ganhando um tom de fascínio — Há algo extraordinário nisso. A Mãe cedeu parte de si para criar companheiros que pudessem compartilhar seu ódio, sua loucura. Ela se dividiu para dar origem a essas falhas, esses reflexos imperfeitos de sua vontade.
— Ainda não sei se entendo onde quer chegar… — murmurou Ana, tentando captar o sentido do que ouvia.
A Sombra sorriu, uma expressão que misturava empatia e resignação.
— Minha habilidade, Ana, é uma cópia da habilidade da Mãe. Eu compartilho minha essência através da minha música, e com isso, trago o poder da criação, mesmo que temporário, para minhas mãos. Mas é uma criação limitada, apenas intensa o suficiente para que corpos que já perderam sua mana ou que aceitam voluntariamente minha invasão sigam minha vontade. Podemos dizer que eles são como sombras menores, falhas ainda mais evidentes do que eu mesma.
— Fale logo de uma vez!
— Eu acredito que você deve ter alguma habilidade semelhante à da Mãe. De alguma forma, você imbuiu sua vontade em suas criações. Mas, ao contrário de mim, elas parecem simplesmente… vazias.
Os olhos de todos se reuniram em Gabriel, tentando sentir algo, qualquer traço de energia. Mas como dito, havia apenas um vazio. Nenhuma mana, nenhuma mana reversa. Apenas o nada, como se estivessem olhando para uma pedra comum.
— E é isso que torna tudo tão intrigante — completou a Sombra. — Não faz sentido, não é a natureza da criação, nem da criação falha. É incrível, mas meio… sem graça.
— Então, o que sustenta a existência de vocês? — Ana respirou fundo, agora se dirigindo à estátua novamente, tentando encontrar uma explicação lógica.
A figura mascarada inclinou a cabeça levemente, como se ponderasse a questão.
— Não tenho a resposta para isso.
— Certo… — suspirou a nova rainha. — Mas vocês são... bizarros como essa mulher? Acham que sou sua mãe?
A estátua alada balançou a cabeça suavemente.
— Não exatamente. É mais como se fôssemos parte de você, uma extensão de seus desejos. Você é nossa mestra. Mas, pela gentileza com que nos moldou, "mestra" parecia inadequado… Por unanimidade, decidimos que somos o seu povo, e você é nossa rainha.
— Oh, sim, sou realmente gentil… — acenou lentamente a mulher, perdida em seus pensamentos. — Se é assim, que seja. No momento, estou fraca demais para perseguir todas as respostas que este mundo me deve.
Aproveitando a mudança de tom, ela voltou-se para a Sombra mais uma vez.
— E quanto à igreja sombria? Onde entra na sua história?
— Não tenho muito a dizer, religião é ideia de uma de minhas irmãs.
— Já ouvi algo assim antes… realmente não trabalham juntas? Tipo uma organização gigante de Sombras ou alguma bobeira assim?
A Sombra hesitou por um momento antes de responder, mas logo balançou a cabeça com um sorriso, como se não importasse.
— Somos apenas dez. Ou melhor, nove agora, já que uma de nós foi consumida, tratada como gado.
Ana sorriu, coçando a cabeça, tentando desviar o assunto.
— Só dez de vocês? Por que tão poucas?
— Nove — ressaltou novamente a barda, com uma pequena alfinetada. — Como eu expliquei, a Mãe usava sua essência para transformar apenas aqueles que considerava especiais. Pessoas ou artefatos que a surpreendiam, como eu, ou como sua espada.
— Transformar...? Então, você era humana?
— Sim, era humana. Meu nome já foi conhecido pelo mundo. Minha música ecoou nos salões dos imperadores. Mas isso faz parte de histórias há muito esquecidas, não é mais quem eu sou…
Ela continuou, sua voz suave e cheia de tristeza.
— A Mãe sempre deixava uma parte mínima de si em cada criação. Isso a enfraquecia um pouco a cada vez, por isso tão poucas escolhidas.
Ana, perdida em seus pensamentos, começou a pensar em seu tempo ao lado do anjo. De repente, uma ideia surgiu em sua mente. Ela se lembrou de como Gabriel parecia se tornar mais distante, mais vago, sempre que colocava um novo selo nela.
"Será que as facetas em minha mente são partes de sua essência que foram deixadas para trás? Por que você se sacrificaria por mim, Gabriel?"
Uma onda de surpresa repentinamente a atingiu, e memórias passavam como um filme atrás de seus olhos.
"Supondo que sua existência seja tão longa quanto a sombra fez parecer, talvez esse enfraquecimento explique como foi capturado com tanta facilidade…"
Muito do que flutuava em sua mente ainda não se encaixava, e as centenas de questões a incomodavam, mas ainda assim sentiu certa satisfação em entender um pouco mais do que aconteceu em seu passado.
"É realmente um anjo estúpido…", pensou, enquanto sentava-se corretamente no trono. Novamente percebeu que o tempo não está mais ao seu lado, já era hora de parar de preguiça.