O sol entrava pelo buraco no teto destruído, iluminando o ambiente peculiar onde três pessoas estavam largadas pelo chão. A luz do amanhecer desenhava sombras longas e irregulares pelas paredes de madeira, misturando-se com o pó que flutuava no ar. A cabana, embora velha e desgastada, ainda tinha um ar de refúgio para os três habitantes temporários.
Ana, agora com um pouco de mana recuperada através da caça de pequenas criaturas, conseguia manter a razão, apesar de seus pensamentos ainda se desorganizar com facilidade. A mercenária estava pendurada no teto destruído, lendo um livro com diversos padrões estranhos em sua capa. Seus olhos percorriam as páginas com um olhar entediado, molhando a ponta do dedo para passar cada folha. O livro era espesso e pesado, repleto de runas e ilustrações detalhadas que um dia haviam sido misteriosas e fascinantes, mas agora pareciam desprovidas de qualquer novidade.
Eva, a jovem ruiva, estava sentada perto de uma janela quebrada, brincando com uma flecha. Ela girava o objeto nos dedos com uma habilidade que vinha da prática constante, mas seu olhar estava perdido, como se a mente vagasse longe dali. O brilho metálico da ponta da flecha refletia os raios de sol, criando pequenos pontos de luz que dançavam nas paredes desgastadas.
Alex, por outro lado, estava ocupado martelando algumas tábuas, tentando montar uma nova mesa. Seu trabalho era meticuloso, e cada golpe do martelo ecoava pela cabana, misturando-se com os sons suaves da natureza do lado de fora. Ele terminou a construção, limpando um suor falso da testa e jogando o martelo de lado com um suspiro exagerado.
— Essa vingança está incrível — sussurrou o homem, sarcasticamente, encarando as duas garotas que pareciam alheias ao mundo.
— Você sabe onde a Natalya está? — perguntou Eva, levantando a visão da flecha com uma expressão curiosa e preguiçosa.
— Ah, é... — respondeu Alex com uma expressão pensativa. Logo se jogou no sofá, também entediado, cruzando os braços atrás da cabeça.
A garota girou os olhos e voltou a brincar com a flecha, suspirando de leve. De repente a visão de Alex vagou até a espada negra de Ana, encostada na parede.
— Essa faca ter virado uma espada longa me faz sentir velho, parece um filho indo pra fase adulta. O que vai fazer se ela não parar de crescer?
— Se ficar maior que uma Zweihänder, vou simplesmente jogar no lixo — respondeu Ana, cada palavra saindo como um leve cantarolar, sem parar sua leitura.
— Quanto é isso? — Alex perguntou, franzindo a testa.
— Por volta de um metro e oitenta.
Com um baque repentino, Ana fechou o livro e despencou do teto, atingindo pesadamente o chão. Ela girou os braços para esticar as costas, sentindo um ardor vindo das feridas semi fechadas que bateram no piso de madeira. Com um salto, se pôs de pé.
— Como vai usar uma arma maior que si mesma? — ele continuou, a expressão cética.
Ana deu de ombros, um meio sorriso brincando em seus lábios.
— Eu me viro bem — murmurou, dando uma volta ao redor de si mesma como se tal ação exemplificasse sua fala.
Nesse instante, ela olhou para o lugar no teto em que a espada ficou presa na luta do dia anterior, lembrando-se do embate.
— Apesar de que precisarei de uma arma menor para quando precisar sair no soco novamente — murmurou para si mesma, antes de direcionar a fala para Eva. — Gostaria de dar uma olhada no seu arco também. Por incrível que pareça tive certa inspiração nesse livro rúnico meia boca.
Eva levantou a sobrancelha, surpresa com o pedido.
— Tem certeza? Não é uma arma comum…
— Absoluta! Não aguento mais ficar parada.
A garota respirou fundo, um pouco hesitante, mas então sorriu.
— Claro, posso mostrar pra você.
Se esticando para o lado, pegou o arco que estava no piso ao seu lado, entregando-o para Ana, que o recebeu com um olhar atento e ansioso. A mercenária deu pequenos saltos de animação e começou a examiná-lo, abrindo e fechando o mecanismo algumas vezes, ouvindo o som suave das dobradiças e engrenagens se movendo. A precisão da construção era notável, cada peça encaixava-se perfeitamente, demonstrando uma engenharia refinada.
— Qual o tamanho das flechas que você usa? — perguntou, enquanto ainda manipulava a arma bem próximo de seus olhos.
— Normalmente, cerca de 80 centímetros — respondeu Eva, observando atentamente os movimentos de Ana. — Mas em certas situações algumas um pouco maiores.
A mulher assentiu, compreendendo melhor as especificações da arma. Ela jogou o arco no sofá e correu para pegar uma folha de papel e uma caneta na estante, começando a anotar vários itens de forma bagunçada enquanto sussurrava cálculos para si mesma. Seus olhos se estreitaram enquanto escrevia, concentrada em cada detalhe. A lista incluía desde materiais pesados, peças mecânicas, componentes eletrônicos, até partes de monstros.
— Vamos precisar disso tudo — disse Ana, entregando o papel para Eva. — E também de um notebook!
— A maioria das coisas podemos encontrar no mercado atual da cidade. Um ou dois dias devem ser o suficiente para conseguir tudo — Eva analisou a lista, seu olhar correndo pelos itens mencionados um a um, tentando entender as letras tortas e palavras sobrescritas. — Só tem um porém, as partes de monstros estão em falta devido à guerra…
Ana franziu a testa, lembrando-se das defesas anormalmente pesadas que viu nas muralhas quando chegou na cidade.
— Por causa da… guerra?
Eva suspirou, colocando o arco de volta no chão.
— Sim, as partes de monstros são usadas para criar armas e equipamentos, e a demanda aumentou exponencialmente.
— Isso dá pra entender, mas está tendo uma guerra? Em Barueri? — Ana perguntou em um tom que parecia duvidar um pouco do que ouvia.
Eva olhou para Ana com uma expressão de confusão, mas logo compreendeu a situação.
— Esqueci que você esteve fora nos últimos anos. As coisas mudaram drasticamente.
— O que exatamente aconteceu?
— Bem, foi algo estranho e repentino — começou a ruiva, suspirando. — Em muitos lugares, os monstros começaram a ficar mais inteligentes, formando pequenas aldeias. Isso, somado à falta de comunicação de longa distância, fez com que as cidades finalmente se tornassem reinos independentes que protegiam apenas a si próprias. E a partir daí, foi só ladeira abaixo, tudo virou uma bagunça.
— A humanidade começou a mudar — acrescentou Alex. — Pelos estudos feitos até agora, é um tipo de adaptação com base no local de moradia e no estilo de vida. Foi uma mudança brusca, com os corpos de populações inteiras se modificando ao longo de poucos meses. São chamados de novos humanos, mas o problema é que muitos deles se acham um tipo de espécie superior.
— Isso tem algo a ver com esse papo de "puros" que ouvi ao chegar aqui?
— Sim, é exatamente isso. Sem surpresa, surgiu um certo preconceito entre as raças — continuou Eva, a voz ficando mais sombria. — Pelo que soube, a maioria dos locais ainda é dominado pela humanidade sem mutações, mas nos arredores, Barueri é a única cidade intacta. O problema é que as pessoas daqui estão criando uma ideologia bizarra, chamando a si mesmos de puros e qualquer variante humana de aberração. Nem todo mundo é sem noção assim, mas tá tomando proporções assustadoras.
— É o esperado em um mundo de pessoas fodidas… de que tipo de mutações estamos falando? — Ana perguntou, cada vez mais curiosa. Os problemas não importavam para ela, afinal, não estavam relacionados aos seus objetivos, mas uma fagulha de esperança começou a crescer dentro dela, uma esperança de que a maldita mana permitisse que seus sonhos laboratoriais passados finalmente pudessem dar um passo além do que a natureza do antigo mundo permitia.
— Hmmmm, difícil dizer. Em Carapicuíba, por exemplo, a íngreme e árida paisagem fez com que as pessoas ganhassem características de répteis. Algumas pessoas até mesmo têm grandes e poderosas caudas. Já em várias vilas isoladas, as variações são mais assustadoras, com pessoas ganhando traços rochosos que se misturam às paisagens ou começando a andar como animais quadrúpedes.
— Bingo!
— O que?
— Oh, não é nada, não ligue muito pra mim — respondeu Ana, com um profundo sorriso, para a confusa Eva. — Pela aparente paz que vi nas ruas, suponho que a guerra seja dividida em conflitos isolados, certo?
— Certo, hoje em dia é difícil para nós sabermos em que pé isso está, as batalhas ficam do lado de fora e são controladas pelas guildas, mas ainda assim a vigilância é firme nas muralhas. Muitas pessoas morreram no último ano com os ataques surpresa de outras cidades — disse Alex, a tristeza evidente em sua voz.
Ana ficou em silêncio, processando tudo o que ouviu.
— Bom, então não vai ter jeito. Pode trazer apenas os outros materiais, eu me viro.
— Eu disse que é difícil, mas não impossível… Podemos tentar negociar com alguns caçadores independentes. Eles costumam ter estoques próprios, mas vai custar caro — respondeu a jovem, pensativa.
Alex, que estava ouvindo a conversa de longe, levantou-se do sofá e se aproximou.
— Dinheiro não deve ser um problema. Temos nossas reservas e podemos encontrar uma forma de conseguir mais.
— Então vou fazer o possível para conseguir o que precisamos — comentou Eva, com uma forte determinação em sua voz.
— Obrigada, deixarei isso em suas mãos — respondeu Ana, pegando sua espada negra e saltitando em direção aos fundos. — Enquanto isso, vou preparar a forja.