Ana estava sentada em frente a uma fogueira, com os olhos fixos nas chamas dançantes. O crepitar do fogo era o único som além do farfalhar suave das folhas, e a luz amarelada lançava sombras longas e inquietas ao redor do acampamento. Ao seu lado, o lobo repousava, a cabeça apoiada em suas patas, observando-a com olhos atentos e penetrantes.
— É triste ter fogo e não poder fritar a carne — reclamou Ana, dando um suspiro enquanto mordia um grande pedaço cru. — Não é mesmo, garoto?
O lobo levantou a cabeça ligeiramente, como se entendesse a frustração da sua dona. Seus olhos brilhavam com uma inteligência quase humana, e ele soltou um som baixo, quase um gemido de concordância. A garota jogou o osso vazio na fogueira e observou-o crepitar e se transformar lentamente em cinzas, sentindo uma mistura de melancolia e determinação.
Nos últimos dias, ela havia dedicado todo o seu tempo a entender o novo coração que agora batia dentro de seu peito. Cada teste, cada pequeno experimento era um passo para desvendar os mistérios que envolviam sua nova condição. Ela sempre foi meticulosa e metódica, e dessa vez não foi diferente.
Sempre que consumia carne com mana ou matava uma criatura, sentia o coração aquecer um pouco, pulsando com uma energia latente. Por enquanto, ela só havia matado pequenas criaturas, animais da floresta que não ofereciam muito desafio. Mesmo assim, a sensação era inconfundível. O calor aumentava, centrando-se em seu órgão vital em ondas suaves, mas perceptíveis.
Ela tentou usar a mana de várias formas. Concentrou-se, tentou canalizar a energia para suas mãos, para seus ferimentos, para objetos ao seu redor. Mas sempre que fazia isso, sentia seu corpo ferver, o coração disparar descontroladamente, e nada acontecia.
— O que está faltando são as veias — murmurou para si mesma, olhando para o lobo como se ele pudesse oferecer alguma solução. — O coração tem a energia, mas não consegue distribuí-la pelo corpo. É como um rio represado, sem canais.
Apesar disso, ela notou algumas mudanças sutis em seu corpo. Pequenos arranhões se curavam mais rápido do que antes. O cansaço agora desaparecia em questão de minutos de descanso, e não horas. Seu corpo estava, aos poucos, se adaptando à nova fonte de energia, mesmo que de maneira imperfeita. O pensamento de que ela estava evoluindo, mesmo que lentamente, trazia um leve conforto.
De repente, em meio a uma tediosa brincadeira com um graveto enquanto estava perdida em seus pensamentos, um grito desesperado cortou o silêncio da noite. Era o som de uma menina, um chamado de socorro que ressoou pela floresta, fazendo o lobo levantar a cabeça instantaneamente, com suas orelhas alertas..
— Isso não é um bom sinal — disse Ana, levantando-se em um salto.
Ela apagou a fogueira com um chute de terra, pegou sua lâmina e voltou a se sentar, mas dessa vez, com os sentidos aguçados, pronta para qualquer perigo súbito. A criatura vermelha a seu lado assumiu uma postura de ataque, com um leve rosnado, indicando que algo se aproximava.
— Deite-se — ordenou Ana, sua voz firme. — Não quero ser escravizada de novo.
Ela havia ignorado toda vida humana que via ao longe, sempre passando pela floresta sem se envolver. Não cometeria o mesmo erro de se deixar capturar novamente. Mas o lobo inclinou a cabeça e fez um som, quase como um gemido, pedindo para ela ir investigar.
Os gritos ficaram mais claros à medida que se aproximavam. Ela podia ouvir o som de galhos quebrando, passos pesados e respirações ofegantes. De repente, viu a silhueta da criança passando a poucos metros. Ana suspirou, passando a mão pelo rosto em sinal de resignação.
— Só dessa vez — murmurou, irritada. — Só dessa vez.
Montando no lobo, partiram em direção ao som, suas habilidades de caça naturais permitindo que se movessem rapidamente e em silêncio. Logo chegaram a uma clareira e viram a menina, talvez com uns doze anos e curtos cabelos pretos, desesperada. Atrás dela, um monstro estranho, uma mistura de coelho com chifres, dentes afiados e um olhar sinistro, estava prestes a saltar em um ataque.
A menina segurava uma adaga prateada à sua frente, tentando se defender mesmo com cada vez mais lágrimas escorrendo de seus olhos.
— Interessante — murmurou a mercenária para si mesma, um leve sorriso curvando seus lábios enquanto observava por um momento a cena da criança armada.
O lobo bufou impacientemente, e Ana revirou os olhos.
— Ok, ok, eu vou ajudar.
Com um salto, desceu das costas da criatura e pegou uma pedra no chão. Em um movimento rápido e preciso, mas levemente descuidado, atirou em direção ao monstro. A cabeça da criatura explodiu com o impacto, sem oferecer resistência. O som do crânio se partindo ecoou pela clareira, e o corpo inerte caiu com um baque surdo.
A menina, ainda tremendo de medo, caiu de joelhos, olhando para a mulher acompanhada do grande lobo com olhos arregalados ao perceber que havia sido salva. Ana se aproximou com passos lentos, pegando a pedra suja de sangue e miolos de coelho com certa curiosidade, antes de finalmente voltar para a pequena garota.
— Você é muito corajosa — disse Ana, com um tom de aprovação. — Mas deveria voltar para casa logo.
— Obrigada... muito obrigada… — secando os olhos com a manga da roupa, a menina conseguiu balbuciar um agradecimento em meio a soluços. A gratidão em seus olhos era evidente, mas havia também um traço de medo.
Ana estendeu a mão e a ajudou a levantar-se, quando a arma nas mãos da garota chamou sua atenção. A lâmina parecia antiga, mas bem cuidada.
— Devo estar ficando louca depois de tanto tempo sem minha faca… — murmurou para si mesma. — Ei, você tem uma bela arma, posso ver isso um instante?
A garota, que estava agradecendo, abraçou a faca com força, recusando-se a entregá-la e se afastando rapidamente.
— O que foi? Fiz algo errado? — perguntou Ana, confusa.
— É uma das armas da Deusa do Ferro — respondeu a menina, com os olhos arregalados de medo e determinação. — Não posso dar para estranhos!
Ana franziu a testa, intrigada com a reação da menina. A resposta da garota só aumentava seu interesse.
— Deusa do ferro? — repetiu, olhando mais atentamente para a adaga. — Quem é essa deusa?
A menina hesitou, abraçando a adaga ainda mais forte, seus olhos cheios de desconfiança e medo. Ana respirou fundo, tentando suavizar sua expressão.
— Como você se chama?
— Lúcia.
— Muito bem, Lúcia. Meu nome é Ana, e este é meu amigo — disse ela, apontando para o lobo. — Ele não tem um nome, mas é um bom companheiro.
Lúcia olhou para o lobo com curiosidade, e ele inclinou a cabeça ligeiramente, como se reconhecesse a apresentação. A menina pareceu relaxar um pouco, os ombros menos tensos, e logo se levantou, batendo nas calças para tirar a terra.
— Escute, não vou tirar nada de você, só quero entender o que está acontecendo.
A menina mordeu o lábio, considerando as palavras de Ana. Finalmente, ela deu um passo hesitante em direção à mercenária.
— Eu... eu não conheço muito bem a deusa… mas minha mãe disse que ela salvou todo mundo quando a gente veio pro mundo escuro.
— Salvou?
— Sim! Ninguém viu ela, mas ela deixou essas armas para nos proteger dos monstros! Tenho certeza que ela nos vigia de algum lugar.
— E como uma criança carrega a arma de uma deusa tão casualmente? — perguntou Ana, desconfiada.
Quanto mais olhava para a arma, mais algo profundamente enterrado em sua mente despertava.
— É que... havia tantas armas! — disse Lúcia finalmente, com uma excitação crescente em sua voz. — Era como um mar! Um mar de armas brilhantes e afiadas. A deusa foi muito generosa, deixou um montão delas para nós.
— Deusa do Ferro… quem diria — sussurrou a antiga ferreira para si mesma, de forma quase inaudível, ao entender o motivo da adaga trazer memórias distantes. Aos poucos, um sorriso irônico começou a se formar em seus lábios. — Espero que não tenham mexido no meu martelo.
Lúcia, observando o sorriso estranho de Ana e seus murmúrios, deu um passo para trás, um pouco menos confiante em sua salvadora do que antes.