Parte 1
Liam continuava aconchegado no colo da marquesa, os olhos brilhando enquanto ouvia o final da história. A sala ainda envolta em uma penumbra suave, iluminada apenas pela luz suave das velas espalhadas pelos móveis antigos. As sombras dançavam nas paredes, acompanhando o ritmo calmo da voz da marquesa enquanto ela terminava o conto da lobinha.
Quando o último som das palavras dela morreu no ar, Liam se levantou de repente, seu rosto cheio de animação. "Eu sempre gosto quando você conta essa história!" exclamou, os olhos faiscando.
"O pai da lobinha é um herói muito legal! Ele lutou até o fim para proteger a família dele."
A marquesa sorriu para o entusiasmo de Liam, seus olhos carregados de uma ternura que ela raramente mostrava. "Ele realmente foi um herói." concordou ela, assentindo lentamente.
"Mas, meu querido, há uma parte dessa história que eu nunca contei a você."
Liam piscou, surpreso e curioso. "O que? Uma parte que você nunca contou? O que aconteceu?"
"Depois de alguns anos..." começou ela, sua voz baixa e envolvente.
"A lobinha já não era mais uma pequena filhote. Ela havia crescido e se tornado alguém importante dentro de sua alcatéia."
Liam inclinou-se mais perto, totalmente absorvido. "Ela ficou forte como o pai dela?"
"Sim, forte e corajosa." a marquesa continuou, seus olhos fitando um ponto distante, como se estivesse visualizando a cena que descrevia.
***
A chuva caía pesada, cada gota fria e implacável como o aço, martelando as folhas das árvores e encharcando o solo da floresta. O vento soprava forte, curvando os galhos e lançando folhas e pequenos galhos no ar. A única luz era o brilho intermitente dos relâmpagos que cortavam o céu.
Wysa, agora uma loba crescida e imponente, caminhava à frente de seu grupo, suas patas fortes afundando no solo lamacento. Os outros lobos seguiam-na de perto, suas pelagens molhadas coladas aos corpos musculosos. Os olhos de Wysa estavam focados, atentos a qualquer movimento ou som ao redor, mesmo com o barulho ensurdecedor da chuva e do vento.
Ela sentia a força da tempestade nas entranhas, como se a natureza refletisse a turbulência interna que ela sempre carregara consigo. A floresta, que uma vez fora seu lar seguro, agora parecia cheia de ameaças invisíveis, sombras que espreitavam além das árvores, lembranças enterradas que ainda a assombravam.
"Chefe." uma voz firme cortou o som da tempestade, fazendo Wysa parar abruptamente. Um dos lobos, um macho grande com cicatrizes visíveis ao longo do flanco, aproximou-se dela, sacudindo a água de sua pelagem.
"Achamos algo mais à frente. Um filhote de corvo, caído no chão. Está vivo, mas mal se mexe."
Wysa franziu o cenho, o nome que ele usara para chamá-la ainda soando estranho em seus ouvidos. Mesmo depois de todos esses anos, ser chamada de "chefe" ainda lhe parecia uma responsabilidade pesada, uma posição que ela havia assumido mais por necessidade do que por desejo.
"Um corvo?" Ela repetiu, sua voz firme, mas com um tom de surpresa. A memória da batalha de seus pais com aquele corvo fatídico lampejou em sua mente, o sabor amargo de uma perda que nunca desapareceu completamente.
"Onde está?"
"Logo à frente, sob uma árvore caída." o lobo respondeu, movendo-se para guiá-la. Wysa o seguiu, sentindo um nó formar-se em seu estômago. Os outros lobos mantinham-se perto, mas em silêncio, respeitando a liderança dela.
Eles chegaram a uma pequena clareira onde um tronco velho e parcialmente apodrecido havia caído, provavelmente atingido por um raio da tempestade. O chão ao redor estava coberto de folhas e galhos quebrados, formando uma espécie de ninho improvisado para o filhote de corvo, que estava encolhido contra o tronco, suas pequenas asas tremendo e o peito arfando com esforço.
Wysa parou diante da criatura, seus olhos fixos no pequeno corpo negro, encharcado e vulnerável. O corvo era minúsculo, as penas ainda não completamente desenvolvidas, e os olhos semicerrados, como se a luta para manter-se acordado estivesse prestes a ser perdida.
"Está fraco." observou outro lobo, uma fêmea de pelagem escura, abaixando-se ao lado de Wysa.
"Provavelmente caiu do ninho durante a tempestade."
"Devíamos acabar com isso logo." sugeriu um terceiro lobo, sua voz carregada de uma praticidade fria.
"Deixar um filhote de corvo crescer nesse lado da floresta pode ser perigoso. Ele pode se tornar nosso inimigo."
Wysa permaneceu em silêncio por um momento, observando o filhote indefeso. Uma tempestade de emoções a envolveu, lembranças do passado e a realidade do presente colidindo em sua mente. O corvo adulto que havia destruído sua infância, e esse filhote frágil, que mal conseguia levantar a cabeça... Podiam ser da mesma espécie, mas não eram a mesma criatura.
"Não." disse Wysa, finalmente, sua voz firme.
"Não vamos matá-lo."
Os outros lobos a olharam com surpresa, alguns até mesmo com descrença. "Mas, Wysa... E se ele crescer e se voltar contra nós?" O lobo que havia sugerido matá-lo insistiu, a preocupação evidente em seu tom.
Os olhos de Wysa mantiveram-se fixos no filhote de corvo por mais um instante, sua mente girando com as possibilidades. Ela levantou a cabeça, mantendo o tom firme, mas sem ignorar as preocupações legítimas do grupo.
"Vamos levá-lo de volta." decidiu ela, com um tom que não deixava espaço para questionamentos imediatos.
"Mostraremos ele aos outros, e então decidiremos juntos o que fazer."
Os lobos trocaram olhares, ainda incertos, mas a autoridade de Wysa era incontestável. Ela sempre havia liderado com sabedoria, e mesmo que alguns tivessem reservas, a confiança nela não era algo fácil de abalar.
"Se ele for perigoso, resolveremos juntos." ela acrescentou, sua voz suavizando um pouco.
"Mas, por enquanto, ele é só um filhote, indefeso e à mercê da tempestade. Não seremos tão cruéis quanto aqueles que nos ferem."
O lobo que havia sugerido matar o filhote inicialmente franziu o cenho, mas acabou assentindo devagar. "Eu entendo, Wysa." disse ele, embora o tom ainda carregasse um leve traço de dúvida.
"Confiaremos no seu julgamento."
Wysa deu um pequeno aceno com a cabeça, ciente de que a confiança de sua alcatéia era algo precioso e não dado de ânimo leve. "Vamos." ordenou ela, virando-se para retomar a caminhada pela floresta.
"Quanto mais rápido voltarmos, mais cedo resolveremos isso."
***
A marquesa terminou sua narrativa, deixando um silêncio confortável preencher o quarto. Ela olhou para Liam, seus olhos atentos e curiosos, refletindo as chamas tremulantes.
"E agora sim, esse é o final da história." disse a marquesa com um sorriso, relaxando os ombros como se tivesse acabado de fechar um livro invisível.
"O que achou, meu pequeno?"
Liam, que havia estado imóvel e atento durante toda a história, sentou-se mais ereto, o rosto ainda iluminado pela excitação. "Eu gostei muito! Mas..." Ele hesitou, franzindo a testa em uma expressão pensativa.
"Eu queria saber o que vai acontecer com o corvo. O que a lobinha vai fazer?"
A marquesa riu suavemente, tocando o queixo de Liam com um gesto carinhoso. "Ah, essa é uma boa pergunta. Mas acho que teremos que deixar essa parte para outra noite."
Liam fez uma careta ligeiramente desapontada, mas logo seus olhos brilhantes recuperaram o entusiasmo. "Então você vai me contar na próxima vez, certo?"
"É claro." respondeu a marquesa, sua voz baixa e aconchegante, como o crepitar de uma lareira numa noite fria. Ela ajeitou alguns velhos panos ao redor de Liam, puxando-os até seu queixo.
"Mas agora, já está na hora de dormir. Você precisa descansar."
Liam se aconchegou, ainda relutante, mas reconhecendo o cansaço que começava a pesar sobre seus olhos. "Tá bom." disse ele, com um pequeno bocejo.
"Mas você promete que vai me contar o que acontece depois?"
"Prometo." disse a marquesa, inclinando-se para beijar sua testa.
"Boa noite, meu querido."
"Boa noite..." murmurou Liam, já se afundando no travesseiro, os olhos se fechando lentamente.
Parte 2
Liam despertou lentamente, seu corpo ainda pesado e a mente envolta em uma névoa de sonhos que se dissipava gradualmente. A primeira coisa que ele percebeu foi a sensação familiar de dedos suaves deslizando por seus cabelos, acariciando-os com um ritmo lento e reconfortante. Por um momento, ele não se moveu, saboreando aquele toque que o fazia lembrar de tempos passados, de uma infância em que esse gesto era sua âncora de segurança.
Ele abriu os olhos devagar, e a escuridão quase total ao seu redor o envolveu como um manto. A sala estava fria, as paredes parecendo se fechar sobre ele de uma maneira que fez seu peito apertar. A única fonte de calor era a presença da marquesa, que continuava a acariciar seus cabelos, sua respiração tranquila e ritmada.
Liam moveu-se levemente, ajustando sua posição, e os olhos da marquesa se encontraram com os dele, iluminados por um brilho que ele não conseguia decifrar completamente. Algo naqueles olhos parecia... diferente. Não havia a mesma luz suave e acolhedora de antes. Era como se uma sombra sutil houvesse se infiltrado, um vestígio de algo mais sombrio e oculto.
"Você acordou." ela disse, sua voz baixa e melódica, quase sussurrada, como se quisesse manter a escuridão ao seu redor intacta.
"Sim..." Liam respondeu, a voz um pouco rouca do cansaço, mas também carregada de uma ponta de incerteza que ele não sabia de onde vinha.
Ela sorriu, mas o sorriso não atingiu seus olhos. "Você fez bem lá no outro lado, Liam. Mas você chegou em uma hora ruim."
As palavras dela pairaram no ar, carregadas de uma implicação que ele não conseguiu captar completamente. Algo sobre o jeito como ela falava, a escolha das palavras, fez um arrepio percorrer sua espinha.
"Eu... eu não consegui acabar com eles, me desculpe, não queria atrapalhar." ele disse, sua voz soando pequena no espaço sombrio da sala. Ele tentou sentar-se, mas a marquesa pressionou sua mão suavemente contra seu peito, mantendo-o deitado, a cabeça ainda em seu colo.
"Não se preocupe com isso agora." ela murmurou, continuando a acariciar seus cabelos.
"Mas você pode fazer meu dia ficar melhor. Eu sei que pode."
Liam sentiu uma estranha mistura de alívio e desconforto. Ele queria agradá-la, queria ser útil, mas algo estava errado. Era a sala escura, talvez, ou a maneira como a marquesa o olhava, com um tipo de expectativa que ele não entendia.
"Como eu posso fazer isso?" ele perguntou, tentando esconder o tremor em sua voz.
A marquesa inclinou a cabeça levemente, seus lábios se curvando em um sorriso que, em qualquer outro momento, poderia ter sido reconfortante. Mas agora, no breu absoluto daquela sala, aquele sorriso parecia ter algo de perverso, algo que despertava as sombras ao redor.
"Espere um momento, meu querido." ela murmurou, sua voz suave como um sussurro de seda.
Ela se virou ligeiramente para o lado, a escuridão engolindo seus movimentos quase que completamente. "Venha aqui." chamou, sua voz ecoando pelo ambiente como se as paredes estivessem a apenas alguns centímetros de distância.
Um som quase imperceptível de passos pesados surgiu das profundezas da sala, e uma figura indistinta emergiu das sombras, apenas uma mancha de escuridão ainda mais profunda. O homem se aproximou, curvando-se ligeiramente, seus traços completamente ocultos pela falta de luz.
"Senhora Wysa, o que gostaria?" a voz do homem era grave e respeitosa, mas carregava um tom que, em outras circunstâncias, poderia ter sido de alguém lidando com algo que não compreendia, mas que temia profundamente.
A marquesa gesticulou para que ele se aproximasse ainda mais, e Liam sentiu o ar ao seu redor mudar, como se algo estivesse deslocando o próprio tecido da realidade ao redor deles. Ele podia ouvir o respirar pesado do homem, um som abafado e ofegante, mas não conseguia enxergar seu rosto ou qualquer detalhe de sua figura. Era como se a escuridão estivesse viva, se moldando ao redor deles, escondendo todos os segredos que a noite poderia abrigar.
"Mais perto." a marquesa ordenou, sua voz agora tingida de uma doçura que Liam não conseguia associar a qualquer coisa além de perigo.
O homem hesitou por um breve momento, mas então obedeceu, inclinando-se tão próximo que Liam podia sentir o calor de seu corpo, uma presença opressora em meio à escuridão que os envolvia. Mas, mesmo assim, Liam não conseguia ver nada. Era como se seus olhos tivessem sido privados da visão, como se algo estivesse bloqueando sua percepção.
E então, sem qualquer aviso, um grito atravessou o ar. Não era um som comum, mas algo visceral, um grito estridente e agudo de puro desespero, o tipo de som que perfura a alma e faz o sangue gelar. A voz do homem, antes firme e controlada, agora era nada mais que um eco quebrado, uma súplica por um alívio que nunca viria.
Mas, estranhamente, Liam não sentiu medo. Ao contrário, uma onda de relaxamento inexplicável o tomou. Aquele grito que deveria ter enervado seus sentidos, que deveria ter acelerado seu coração e levantado os pelos em sua nuca, teve o efeito oposto. Sua mente parecia amortecida, desconectada da realidade de uma forma que o impedia de reagir como qualquer outra pessoa teria reagido.
A marquesa continuava a acariciar seus cabelos, seus dedos deslizando suavemente, enquanto o grito se tornava mais abafado, como se fosse sufocado pelas sombras que engoliam tudo ao seu redor. Liam sentia um estranho torpor se espalhar por seu corpo, uma sensação quase anestésica que fazia tudo parecer distante, como um sonho do qual ele não conseguia despertar.
O grito cessou abruptamente, substituído por um silêncio denso e sufocante. A respiração do homem não era mais audível, e a sala, que já era envolta em trevas, parecia agora completamente desprovida de qualquer traço de humanidade.
De repente, um som úmido, quase grotesco, rompeu o silêncio. Era baixo, mas inconfundível, como o som de carne sendo rasgada e ossos sendo esmagados. A marquesa, que até então estava completamente quieta, fez um movimento sutil, e Liam sentiu um leve arrepio quando algo quente e viscoso escorreu sobre seu rosto.
A luz fraca que se infiltrava pela janela iluminou um brilho sinistro na boca da marquesa. Seu rosto estava manchado de sangue, seus lábios manchados de vermelho enquanto ela mastigava algo com uma voracidade assustadora. O cheiro de ferro e carne encheu o ar, se impregnando na atmosfera opressiva da sala.
Com um gesto lento e deliberado, a marquesa pegou mais um pedaço do homem com a boca, uma porção indistinguível de carne e ossos esmagados, e trouxe até os lábios de Liam. O sangue ainda fresco escorreu por entre seus dentes enquanto ela aproximava sua boca da de Liam, seus olhos fixos nos dele com uma intensidade quase hipnótica.
Liam, incapaz de resistir, abriu a boca mecanicamente, deixando que ela colocasse a carne ensanguentada em sua língua. Ele fechou os olhos por um momento enquanto engolia, sentindo a textura macabra se desintegrar em sua garganta, o gosto metálico do sangue se espalhando por seu paladar. Era repulsivo, mas, ao mesmo tempo, havia algo estranhamente satisfatório nisso, uma necessidade primal que ele não sabia que possuía, mas que agora se manifestava com força total.
Seus olhos se abriram lentamente enquanto ele engolia, desviando seu olhar para a janela próxima. Através do vidro, a lua cheia brilhava intensamente, seu brilho prateado iluminando a noite escura. A lua parecia maior do que o normal, uma presença imponente que parecia observá-lo, julgando-o em seu ato horrendo. A luz da lua refletia nos olhos de Liam, criando um contraste inquietante com a escuridão ao seu redor, como se ele estivesse entre dois mundos, um que ele conhecia e outro que estava apenas começando a desvendar.
Depois de engolir o que restava do homem, Liam sentiu o estômago se contorcer em uma mistura de náusea e satisfação. Ele piscou lentamente, tentando processar o que acabara de fazer, mas sua mente estava tão entorpecida que as emoções pareciam distantes, abafadas por uma névoa de aceitação desconfortável.
A marquesa se inclinou para mais perto, seus olhos brilhando com uma intensidade quase sobrenatural enquanto observava cada reação de Liam. "Volte para lá, Liam." ela sussurrou, sua voz pingando com uma doçura falsa que não combinava com o horror do momento. Seus lábios ainda estavam manchados de sangue, um contraste aterrador com o tom suave de sua voz.
"Não seja uma decepção." ela acrescentou, seu rosto agora tão próximo que Liam podia sentir o cheiro metálico do sangue em sua respiração, uma presença quase tangível no ar.
"Faça o que precisa ser feito."