Atravessando o imponente portão de Gahlok, que controlava a passagem de pessoas que saíam e entravam da remota cidade, estava uma pessoa desconhecida, coberta completamente por um longo e grosso manto verde escuro. Seus passos eram desconfortavelmente desacelerados, pareciam estar em câmera lenta, dando a sensação de que iria cair a qualquer momento.
Um homem, provavelmente embriagado, pois estava com um cheiro de álcool ao seu redor, esbarrou de repente contra a pessoa misteriosa, fazendo o capuz cair de sua cabeça e revelar sua face sem querer. Ainda meio desnorteado, o bêbado tenta pedir desculpas por trombar com ela.
A figura andou dessa forma até uma parte mais movimentada do lugar, onde pessoas passavam de um lado para o outro. Olhava para as diversas lojas que haviam no decorrer da rua, procurando por algo ainda não muito claro.
— Perdão. Eu não vi voc... — Ele engasgou e parou de falar rapidamente ao olhar para aquilo em sua frente.
Uma garota, cerca de quinze anos, se escondia ali debaixo, com um rosto magro e pálido. Não haviam cabelos no topo de sua cabeça, ou melhor, os mesmos estavam carbonizados até a raiz. Além disso, haviam queimaduras em sua bochecha e pescoço. Não eram ferimentos leves e comuns, mas terríveis e profundos, que deixavam expostos até seus ossos e músculos. A visão inesperada deixou o homem tão perplexo e aterrorizado, que ele não soube como reagir. Mas a figura respondeu calmamente:
— Está tudo bem. Eu sei que você não fez de propósito — aplacou, colocando o manto de volta.
Ainda meio cambaleante, o homem se afastou dela, baixando um pouco sua cabeça como pedido de desculpa. Seguiu seu caminho sem proferir nenhuma outra palavra. Seu olhar tornava a virar de vez em quando para trás, tentando ter certeza do que viu.
Agora segurando a extremidade da touca com uma das mãos, a garota também seguiu seu caminho. Dentro de sua veste, um barulho metálico agora tilintava. Em sua outra palma, havia um pequeno saquinho com algumas moedas diversas que havia roubado do rapaz de momentos atrás.
— Ei! Você precisa de ajuda? — Um garoto bem vestido, cerca de dezessete anos, perguntou, se colocando bem na sua frente. Seus olhos verdes cintilavam e seus cabelos loiros refletiam a luz do sol.
Os dois ficaram em silêncio por um momento.
— Posso saber seu nome? — insistiu o menino, com sua voz aveludada.
A figura relutou por uns segundos antes de responder. Ninguém havia perguntado seu nome antes — não que isso importasse tanto pra ela. Após pensar um pouco, ela respondeu.
— Mia.
— Então, Mia. Eu me chamo Vallett. Me desculpe, mas não pude deixar de notar isso quando seu capuz caiu. — Apontou para o rosto dela. — Eu conheço pessoas que podem usar magia de cura. Se você quiser, eles podem consertar seu rosto!
— Eu me viro sozinha — respondeu, enquanto tentava passar pelo lado do menino, que se colocou na frente mais uma vez.
— Não se preocupe, eu não vou cobrar nada de você. Eu sou o herdeiro dessas terras, dinheiro não é problema. — Se gabou.
Mia franziu a testa, deu um passo para outro lado e finalmente ultrapassou o garoto, mas ele ainda não havia desistido.
A mão de Vallett deslizou pelo ar até o ombro do ser ferido e necessitado para impedi-lo de seguir em frente, mas o barulho de algo caindo sobre o chão chamou a sua atenção assim que o tocou. Seu olhar se desviou para a origem daquele som abafado e, logo depois de processar o que aconteceu, ele exclamou:
— AAAAAH! MINHA MÃO! — gritava, enquanto se encolhia e agarrava seu braço. Em seguida, olhou para a sua mão que estava caída sobre o chão. Suas pernas ficaram tão fracas, que ele não conseguiu ficar de pé.
— Não ouse encostar sua mão imunda em mim. — Mia virou-se para olhar nos olhos dele — Eu sei que você está apenas querendo me capturar e me vender em troca da recompensa. Não pense que sou tão idiota assim. Não tem problema com dinheiro? Por vir atrás de mim, eu duvido muito.
Rapidamente, duas pessoas que estavam meio misturadas na multidão, correram para perto do menino ferido. Eram uma mulher e um rapaz, provavelmente seus guardas, pois carregavam consigo espadas e usavam armaduras leves e discretas por baixo das vestes.
A cavaleira cuidou rapidamente do ferimento, rasgando um pedaço de tecido da manga de sua própria roupa e rodeando em torno do antebraço de Vallett para amenizar o sangramento.
— Não se preocupe, os curandeiros ainda podem curar sua mão, senhor — afirmou a mulher para consolá-lo.
Entre lágrimas, dor e desespero, Vallett encontrou um espaço para finalmente conseguir falar.
— Eu sabia que vocês estavam me seguindo. — A voz estava tão trêmula que era quase indecifrável. — Mas dessa vez foi realmente uma boa vocês estarem por perto. Peguem ela! Viva ou morta! — ordenou, elevando sua voz em um grito agudo e feio.
— Entendido, chefe!
Eles sacaram suas espadas imediatamente, que ressoaram um som metálico enquanto eram retiradas de sua bainha. A lâmina era prateada e refletia nela seus rostos sérios e valentes. Com ambos apontando para a figura coberta, a guarda-costas requisitou, com uma voz estridente:
— Fique parada onde está!
Por outro lado, sem dar ouvidos ao que falavam, Mia virou-se e continuou caminhando como se nem tivesse escutado nada para início de conversa.
— Se fizer assim, vamos ser obrigados a matá-la, garota. Está ouvindo!? — ameaçou o rapaz, firmando melhor a mão.
Percebendo a falta de resposta para suas ordens, a cavaleira avançou e levantou sua arma para desferir um golpe nas costas da figura desobediente.
Um breve movimento lateral por parte da menina encapuzada foi realizado, tão mínimo que poderia ser apenas um passo em falso ou algo do tipo. Todavia, antes mesmo de ser baixada novamente, a espada da mulher caiu sobre o chão.
Não muito tempo depois, assim como a lâmina, os joelhos de ambos os defensores de Vallett também se chocaram contra o chão. O olhar da multidão estava confuso, sem entender o que havia acontecido, mas logo compreenderam o porquê de terem feito aquilo. Suas cabeças, se desprendendo de seus pescoços, rolaram e mancharam as pedras talhadas da rua de um vermelho vivo, e seus corpos deitaram sobre a poça escarlate.
O herdeiro, que ainda estava no chão observando tudo, arregalou os olhos e não conseguiu proferir nenhuma palavra e nem ao menos reunir forças para correr. A visão era como de um pesadelo, mas não conseguia despertar. Não fazia ideia de como ou porque aquilo ocorreu, pois foi tão rápido quanto um piscar de olhos.
Mia virou-se para a direita, em direção a uma barraquinha de um vendedor, esquecendo tudo que tinha acabado de fazer e os gritos das pessoas, que corriam em desespero suplicando pelas suas vidas. Aquela loja exibia um pequeno animal desconhecido em um espeto, assando sobre as brasas quentes. Tirando a mão para fora, ela mostrou ao dono do estabelecimento uma moeda de cobre.
— Isso é o suficiente para um desses?...
Ainda em choque, o homem não fez nenhum som, apenas aceitou o que o destino tivesse guardado para ele. Sua respiração estava pesada e suas mãos tremendo e suando, mas a cabeça balançou para cima e para baixo, respondendo a pergunta que lhe foi dirigida. Aquilo claramente não era suficiente, mas poderia mesmo dizer isso?
Pegando o dinheiro com a ponta dos dedos, Mia o colocou em cima do balcão de madeira gentilmente, agarrou uma das carnes e deu uma grande mordida para experimentar.
— Até que isso é bom. Eu acho... Bem melhor que pedras e galhos de árvore...
— O-obrigado, senhorita. — Conseguiu responder, a voz oscilante e baixinha.
Os olhos das pessoas, as poucas que ainda estavam pregadas no chão ali por perto, seguiram o ser de habilidades misteriosas enquanto ele desaparecia na distância, sem entender o que acabaram de presenciar. O mesmo valia para Vallett, que em choque, não sabia o que fazer.
*
Mais para o centro do lugar, caminhava mordendo aquela carne estranha que havia comprado mais cedo enquanto observava a cidade de um lado ao outro, admirando as construções e decorações que haviam ali. Logo após terminar de comer tudo, ela jogou o palitinho de madeira para o lado e ergueu sua mão até seu rosto, inspecionando-o.
— Isso deve ser suficiente por agora — sussurrou consigo mesma.
Mia novamente retirou o pano de sua cabeça. Dessa vez, sua face estava completamente renovada, mas ainda retinha a coloração esbranquiçada de antes. Seus lábios eram de um cinza azulado e ressecados, e seus olhos pretos e sem brilho, assim como seus cabelos, que agora se estendiam até o meio de suas costas.
— E aqui... Vejamos... Como eu pensei. Eu preciso de mais do que isso — cochichou novamente, enquanto tocava em seu peito com a ponta dos dedos, que afundaram mais do que deviam em sua pele, como se houvesse um buraco no local.
— Ei, malfeitora! — anunciou uma voz de repente. — Fique onde está e não farei nada de mau a você!
O aviso vinha de uma garotinha com cerca de doze anos, que posava na frente de Mia com adagas em cada uma das mãos. Seus cabelos castanhos, meio empoeirados, flutuavam no ar de forma épica enquanto seus olhos, também de mesma cor, brilhavam e refletiam a luz do sol que irradiava sobre ela. O vento soprava sua velha capa misteriosamente, dando um ar de imponência à sua presença.
— Eu me chamo Lina — sua voz era jovem, mas firme —, aquela que infelizmente, para você, a levará como prisioneira. Por favor, venha comigo sem resistência.
Mia encarou-a por alguns segundos, mas logo em seguida ficou confusa.
— Huh? Quem é você? — Ergueu uma das sobrancelhas.
— Que? Eu acabei de dizer, poxa... — lamentou, decepcionada. — Cof, cof! Eu me chamo Lina — recitou novamente, como se estivesse em uma peça de teatro —, aquela que vai capturar você e ficar rica com a recompensa que está sendo oferecida pela sua contenção.
— Não foi isso que eu... Esquece, tanto faz. Vou te dar uma chance. Por que eu iria com você pra inicio de conversa?
—Hum?... Bem... Veja só... Na verdade, eu não sei... — Coçava a cabeça, tentando pensar em algo. — Pelo que ouvi falar, você é bem forte, então não acho que consigo derrotar você no mano a mano...
Mia suspirou e virou-se de costas para ir embora dali, cansada e decepcionada com a sua rotina de ser caçada por ai, mas foi surpreendida por uma multidão que a cercou enquanto estava distraída com Lina.
— Ah. Saquei. Então seu plano era me distrair enquanto me cercavam.
— Plano? Você acha que eu faria algo tão desonroso como tentar ganhar de alguém com números? Não tente me rebaixar a tal nível — respondeu, parecendo realmente brava.
— Eu não estava tentan...
— Agora você não tem pra onde ir, bruxa maldita! — gritou alguém da multidão.
— Vamos aproveitar e levar as duas. Essa outra pirralha também está sendo procurada — acrescentou outra pessoa.
Lina levantou suas armas na altura de seu rosto para se proteger, com um semblante sério e corajoso. Suas mãos apertavam os punhais com força. Sua testa franzida e seus dentes, apertando um contra o outro, mostrava que estava preparada para qualquer resultado, independente de qual fosse.
— Não pensem que deixarei me capturarem tão fácil. Eu lutarei até o fim!
Isso distraiu Mia. "Parece que não posso pegar leve com essa garotinha. Se eu quiser derrotá-la, preciso me esforçar mais. Ou melhor, preciso me recuperar", pensou. Mas sua falta de atenção fizeram com que não visse alguém que se aproximava pela sua lateral.
— Vamos começar pela mais perigosa!
Um golpe certeiro atingiu na altura de sua costela, mas, estranhamente, não proferiu um único grito de dor ou agonia sequer. Apenas ficou fixa no mesmo local, esperando o que ia acontecer. Do lado oposto, outro atacante desferiu um golpe, esse agora na altura de sua garganta.
— NÃÃÃO! — gritou Lina, que ironicamente faria o mesmo se tivesse a chance mais cedo.
O último ataque coincidentemente cortou uma pequena fita que Mia usava para amarrar e manter seu manto no lugar, fazendo com que, após as facas serem puxadas de volta, ele caísse no chão. As roupas que ela usava por baixo, uma camisa branca e uma saia vermelha simples, também estavam queimadas.
— Isso dói, sabiam? Por que não me matam logo? — perguntou, sem emoção alguma.
Com a queda do tecido que lhe escondia, foi revelado que seu peito continha um buraco enorme que vinha desde a clavícula esquerda até a cintura direita e se aprofundava até suas costas, deixando exposta a sua coluna vertebral. Parte de seus braços estava em carne viva parecendo estar neste estado por causa de queimaduras também, ou algo semelhante. Seus ossos do tórax estavam quebrados e, alguns deles, ainda pendurados no lugar, presos por restos de tendões e músculos. Alguns órgãos também s faziam presente, mas a maioria em pedaços.
E, o mais estranho de tudo, era que ao invés de um coração, havia algo que brilhava em um tom vermelho do lado mais esquerdo do seu peito: uma pedra que se assemelhava a uma joia preciosa.
Não entendendo o que era tudo aquilo, o máximo que a multidão conseguiu fazer, fora aqueles que vomitaram ao vê-la, foi chamá-la de "monstro" e ficar paralisada diante de tal horror. Naquele estado em que Mia se encontrava, não fazia sentido algum estar viva, muito menos caminhando por aí como se nada estivesse errado.
— Me desculpem, mas eu estou com pressa. Não tenho tempo a perder parada aqui. — Sua mão se ergueu ao ar, e seu braço dobrou em direção a seu pescoço.
— Que merda é você!? Como você pode ainda estar viva!?
Sem se dar ao trabalho de responder, sua mão percorreu pelo ar enquanto girava seu corpo rapidamente, como uma dança mortal de uma bailarina. Logo após completar o giro, o corpo da multidão se partiu ao meio e deslizou para o chão lentamente, todos ao mesmo tempo.
— E se eu estiver certa... Ainda vai sobrar uma...
Olhando para trás, Mia vê Lina, assustada, mas ainda em pé e com os punhos firmes. E atrás da garotinha, algumas pessoas ainda vivas, que saíram correndo imediatamente.
— Eu não entendo. — Ela vestiu seu manto de volta e caminhou para bem próximo do rosto de Lina. — Por que você não morre? Essa é a terceira vez que atinjo você com um golpe...
— O-o que?— indagou, sem entender do que ela estava falando. Seus olhos, ainda arregalados de medo, estavam fixos em Mia.
— Duas vezes enquanto conversávamos e mais uma agora... Primeiro, pensei ter errado, mas não tem como não ter atingido com esse de agora a pouco. E as pessoas atrás de você também não foram atingidas. Acho que essa vai ser a primeira vez que eu irei falar ao invés de escutar isso... "quem é você?", "Como pode ainda estar viva?".
As duas se entreolharam por um momento. Por mais que por motivos diferentes, ficaram em silêncio por alguns segundos.
— V-você tentou me matar!? — exclamou, percebendo agora do que estavam falando. — Pensei que estava me ajudando a escapar deles!
— Eu não tinha motivos pra isso, mas é o que fiz no final das contas... Seu nome é Lina, não é?
— S-sim?... — Deu um passo para trás, amedrontada mas curiosa.
— Eu pensei que andar com outra pessoa me atrapalharia, mas eu mudei de ideia. Você vem comigo a partir de hoje.
A menininha, ainda perplexa e assustada, não conseguiu raciocinar direito tudo aquilo e apenas balançou a cabeça, concordando. Em sua mente, pensava: "o que mais eu posso fazer? Olha o que ela fez aqui". Mas uma ideia veio à sua cabeça.
— Espere ai. — Cruzou os braços. — Você não pode me matar, então não tem porque eu obedecer você.
— Não se preocupe, eu vou recompensar você. Me diga: o que deseja? Pode pedir qualquer coisa, e eu darei um jeito de conseguir.
— Qualquer coisa mesmo? — Ficou observando o rosto de Mia, que respondeu apenas inclinando a cabeça um pouco para o lado. — Então...
A pequena caçadora de recompensas respirou fundo e se preparou para pedir, como se estivesse diante de um gênio da lâmpada ou do próprio rei.
— Eu quero dinheiro! O máximo que puder me dar! — O sorriso em seu rosto era tão sincero que arrepiava. Nem parecia que estava em choque alguns segundos atrás. — Ufa! Agora não tenho que caçar você. Me livrei dessa. — Repousava as mãos na cintura, realmente aliviada.
— Você não tem vergonha?
— Huh? Como assim?