Miguel estava com pressa para ir ao seu primeiro dia no trabalho. Ele havia conseguido a vaga que tanto queria: gerente em uma loja de móveis.
Após trabalhar como atendente de telemarketing há pelo menos uns dez anos, aquela era a oportunidade que tanto esperava. A oportunidade perfeita e nada poderia dar errado.
O relógio marcava sete horas da manhã. Apesar do seu horário ser a partir das nove horas, decidiu sair mais cedo de casa. Estava muito ansioso para ficar esperando.
Aquele dia estava quente demais e movimentado demais, muito além do que o de costume. O sinal demorava uma eternidade para ficar verde para ele poder finalmente atravessar aquela larga avenida conhecida como Rio Branco. O sinal finalmente o autorizou e Miguel não fez cerimônia para sair em disparada até o outro lado da rua.
Enquanto atravessava, uma música começou a tocar em sua mente. Era uma música de superação, como se ele estivesse em um filme dramático, onde ele era o protagonista da trama.
Miguel estava tão emocionado que não olhou para a sua esquerda e não viu um motorista que perdeu o controle e o atropelou , sem nem sequer parar para prestar socorro. Uma multidão cercou o corpo do rapaz. Todos olhavam, mas não faziam nada. De qualquer forma, o socorro não iria adiantar de nada, já que Miguel morreu no local devido ao seu pescoço ter sido quebrado.
Duas horas depois do acidente, a família de Miguel já estava reunida no hospital para o reconhecimento do corpo. Sua mãe, Letícia Viger, uma mulher de quarenta e cinco anos; e o pai, Afonso Viger, de cinquenta e oito anos.
Marcos Henrique Mafra era um médico pneumologista e responsável pelo maior hospital da cidade Brilho Grande.
O médico estava passando por um sério problema: sua filha, de dezessete anos, precisava de um transplante de coração e já não podia mais esperar por um doador. Marcos, então, pediu ajuda de um legista para remover todos os órgãos de Miguel sem a permissão da família, para poder usar o coração na cirurgia de sua filha.
Após o procedimento, o doutor foi informado que os pais da vítima estavam lá. Marcos saiu às pressas da sua sala e foi até eles.
- Olá - disse o médico, enquanto se dirigia até eles.
- Oi - responderam os pais com um sabor amargo ao pronunciar aquela pequena palavra.
Os dois estavam sentados em um banquinho no fim do corredor e, do outro lado, estava um menino de dez anos, escondendo-se na parede, ouvindo toda a conversa. Aquele menino era o irmão de Miguel. Seus pais pensaram que ele estivesse no carro, mas lá estava ele, inconformado demais para simplesmente esperar sentado por respostas. Ele queria saber quem atropelou o seu irmão.
- Por favor, me digam. Por acaso ele é um doador de órgãos? - perguntou o médico.
- Por Deus, não! Queremos o nosso filho inteiro! - respondeu dona Letícia de forma exasperada. O senhor Afonso apenas assentiu.
- Entendo a preocupação de vocês, mas não importa mais onde o corpo dele está, ele sempre estará nos corações de todos que o amavam. Além disso, muitas pessoas estão esperando há muito tempo por um transplante de órgãos. Ele poderia salvar vidas, vocês poderiam salvar vidas. Basta assinar este formulário. É muito importante.
- Não! - gritou o menino, revelando-se.
- Filho! O que está fazendo aqui? Volte para o carro agora! - ordenou a mãe.
-Nem pensar! - respondeu o garoto. Estava com o olhar em chamas.
- Vocês não vão tirar nada do meu irmão! Ele nunca fez mal a ninguém! Vocês não querem nem saber quem o atropelou e já estão querendo fazer essas coisas horríveis com o corpo dele. EU NÃO QUERO! - finalizou o menino.
- Volte para o carro ou você ficará de castigo - ameaçou a mãe, sem muita paciência para discutir com o garoto. O menino olhou para o rosto da mãe, do pai, do médico e, então, voltou a olhar para o rosto da mãe, até que finalmente virou as costas e caminhou devagar de forma desorientada pelo corredor de onde veio.
- Olha, esse não é um bom momento para a gente falar disso - respondeu dona Letícia.
- Entendo - gaguejou Marcos.
Sem alternativas, decidiu arriscar.
- Eu não queria chegar a este ponto, mas, que tal se fizermos assim? Posso assinar agora mesmo um cheque no valor de vinte mil reais e vocês liberam a retirada dos órgãos. Devolverão o corpo para vocês ainda hoje. Isso não afetará o funeral de maneira nenhuma, podem ficar tranquilos. Será como se nada tivesse acontecido, eu prometo. Além disso, pensem que seria como um presente de despedida do Miguel para vocês - ofertou o médico.
- Como se atreve? - perguntou dona Letícia em tom de negação, mas em negação a ela própria, já que a oferta fez ela repensar.
- Tudo que o Miguel queria - disse Afonso -, era arrumar um bom emprego para poder nos ajudar financeiramente. Acho que era isso que ele iria querer.
Letícia olhou para o marido e o abraçou. As lágrimas caíram mais uma vez.
- Tudo bem, doutor. Nós aceitamos - respondeu a mãe.
Aquelas palavras foram como um soco no estômago do irmão, que ainda não havia voltado para o carro e estava ouvindo mais da conversa.
Naquele momento, o ódio tomou conta do seu corpo, pois ele sabia que não era aquilo que o seu irmão iria querer.
Os anos se passaram e os pais de Miguel usaram o dinheiro para abrir um mercadinho, coisa que eles queriam há muito tempo.
Quanto ao garoto, começou a ficar incontrolável.