Nulo... Se passaram alguns dias que houve o ataque e esse nome e olhos não sumiam de minha mente. Eu andava com Love enquanto Akantha estava offline e fazia o mesmo quando Love tinha compromisso.
Aparentemente eu era a única que tinha as noites garantidas, mesmo que algumas vezes tivesse de ficar até mais tarde no serviço ou vezes sequer quisesse aparecer com tamanha humilhação que eu tinha de suportar naquele lugar. Porém, quando estava no corpo de Raven parecia que eu esquecia de minha supervisora, de minha fraca condição financeira, dos meus erros e humilhações... Eu virava outra pessoa.
Em uma missão solo, estava caçando um demônio fugitivo das cavernas de Novena. Eu usava os galhos das árvores como esconderijo enquanto observava minha mais nova presa se alimentando de restos de algum infeliz jogador sem sorte.
O corpo da criatura era avermelhado, em um tom puxando para o marrom, o crânio puxado em formato de morcego, sem asas, as mãos tinham pequenas garras em uma estrutura feita para correr rapidamente. Eu o encarava de longe sabendo que minha proximidade faria ou ele fugir ou ter um confronto direto.
Sumonando minha adaga, pulei para o galho seguinte imaginando como faria para o atacar sem que ele me visse. Seu nível era alto e preferia assim, os bônus também valiam a pena os riscos, no entanto, esse parecia ter uma consciência maior do que os lobisomens ou esqueletos amaldiçoados.
Fechei os olhos tentando sentir se ele havia algum tipo de barreira de percepção ou apenas era um instinto natural. Forcei minha presença notando seu rastro e antes de o tocar o alertando, parei abrindo logo em seguida os olhos. Sua barreira era vasta, mais dois ou três galhos e ele me notaria sendo que sequer estaria preparada para um bote certeiro.
Suspirei me sentando, imaginava se deveria o enfrentar na base de golpes ou se tentava mesmo uma emboscada. Enquanto pensava notei o agir diferente da criatura, como se ele tivesse escutado algum som alto mais para dentro da floresta, ele novamente olhou para os lados parecendo em total alerta e isso me fez ter um calafrio.
Me levantando, entrei em pose de luta sentindo aquele mesmo frio que contorcia meu estômago e o revirava. Algo forte se aproximava, mas era impossível distinguir de onde, sua presença parecia alternar de posição em segundos.
Respirando profundamente, pensei ser melhor abandonar a missão e o prêmio enquanto ainda dava tempo, porém, quando dei o primeiro pulo para a direção contrária, senti um enorme peso me atingir. Olhando onde o demônio estava, vi o bote certeiro da morte.
Em um segundo, o ser monstruoso estava de pé, encarando sua volta e até mesmo notando minha presença, no segundo seguinte sua cabeça voava enquanto uma silhueta ao seu lado se materializava. O golpe o matou antes do personagem aparecer? Não, isso é impossível... Ah droga! Dei um novo pulo quando senti aquela mesma onda vindo em minha direção, no entanto, o deslize me fez cair da árvore em direção ao chão.
Os fios compridos de meu cabelo tamparam minha visão, parte suficiente para que eu tivesse certeza de que aquela coisa estava se aproveitando do meu novo ponto cego para me encarar sem que eu soubesse sua posição. Sentindo muita dor, puxei os fios para longe e arfando, encarei meu entorno notando sua presença a quatro passos de onde eu estava.
— Oh droga, eu até sobrevivi a primeira vez, mas essa não vai rolar — Eu ri levantando minha desistência. Que aura descomunal — Eu conseguiria negociar minha ida sem morte?
Silêncio. Ele conteve sua presença como se tivesse desaparecido e esperei que isso fosse um anúncio de minha morte, mas nada aconteceu. Alguns sons de passos e lá estava aqueles olhos me encarando bem de perto, o suficiente para que os gritos de perigo evoluíssem para um terror irracional.
— Nome — A voz era sem timbre, sentimentos ou interesse. Masculina, era bonita e me deixou impressionada no mesmo nível que surpresa.
— Raven — Falei tentando não gaguejar, engolindo seco.
— Seus reflexos são bons — Isso era um elogio? Espero que sim.
— Ah obrigada — Falei meio sem jeito. Aos poucos minhas forças voltaram e finalmente pude me sentar — Você é bem rápido. Qual seu nível?
Ele não respondeu e pareceu não ter interesse em o fazer.
— Pode ao menos me falar sua classe ou raça? — Nada — Nome?
Suspirei sabendo que não teria nada mais vindo dele. Com dificuldade me levantei batendo em toda minha roupa para tirar a poeira e olhas grudadas em meu cabelo — Vai me matar ou eu posso ir?
Sem respostas, mais um suspiro frustrado e, coçando a cabeça, só imaginei que havia sido liberada — Raven, onde você está?
A voz em minha mente me lembrou de que Love iria entrar só algumas horas mais tarde. Será que eu podia ir até ela? Ele iria me matar se eu desse as costas? Qual o motivo de ainda não ter me matado até agora? Ah que droga!
— Escuta, você é o jogador intitulado Nulo, né? — Questionei coçando meu pescoço para aliviar a tensão no ar — Eu vi alguns vídeos sobre você... Quer dizer, poxa você sempre mata MUITO rápido todo mundo e... Ainda não me matou. Tem um motivo?
— Nada em especial — Ah ele respondeu! Um avanço.
— Você falou que meus reflexos são bons — O lembrei para ver se tinha algum tipo de ligação, ele apenas confirmou com um rápido sim — É por isso? Eu sou nível baixo então foi sorte... É... Eu tenho umas amigas me esperando... Se quiser agilizar e me matar...
Se passou dois minutos e ele sequer tomou algum tipo de reação. Suspirei e dei as costas indo na direção onde Love estaria me esperando impacientemente e andando em silêncio por alguns minutos, decidi olhar para trás antes de subir na copa das árvores novamente.
Quando virei meu rosto, quase gritei com o susto. Ele estava atrás de mim, MUITO perto, me seguindo como um animal abandonado e em total silêncio para que eu não percebesse sua presença.
— VOCÊ QUER ME MATAR DO CORAÇÃO? — Esbravejei batendo as mãos nas laterais de meu corpo. O que ele queria? — Por que você está me seguindo?
Como imaginei, não obtive qualquer resposta e dando um passo o vi imitar meu movimento. Ele era minha sombra agora? Mas que droga! — Raven, você vai demorar muito? — Maldita Love! Quer saber, vou levar ele comigo, ela deve saber o que fazer com ele.
— Você demorou muito — A elfa loira choramingava, a cabeça jogada para trás enquanto parecia estar ainda acordando de um cochilo. Era incrível o fato dela sempre me reconhecer — MAS QUE MERDA É ESSA?
Quando Love encarou a figura encapuzada sua mandíbula se abriu com o susto. Ela logo sumonou suas adagas tomando o mais rápido que pode uma postura defensiva esperando o ataque do inimigo. Se passou um, dois, três minutos e nada aconteceu, porém, ainda sem acreditar naquilo, Love me encarou fuzilando mortalmente enquanto aos poucos relaxava os membros.
— Onde você achou esse cara?
— Na floresta.
— Floresta? E decidiu trazer ele? Simples assim? — Ela parecia mais brava do que o convencional — Ele é algum tipo de amigo seu?
Fiz que não — Aliado? — Mais um negativo e essa foi a gota para ela me lançar a adaga que por um fio não me acertou — ELE É UM NÍVEL CINQUENTA! COMO VOCÊ TRÁS ALGUÉM TÃO FORTE SEM NEM SABER QUEM É?
—Oh, então você é nível cinquenta — Falei levemente surpresa o encarando. Ele deu de ombros — Bem, eu não tenho certeza, mas eu acho que esse cara é o Nulo.
—Nulo? — A voz vinda em minha mente isolou o estranho de nossa conversa — O tal jogador fantasma que você falou uma vez?
Fiz que sim e escutei mais alguns berros vindos de dentro de minha mente. Suspirei a bloqueando temporariamente — Maldita.
— Love, eu não tenho certeza já que ele não fala nada.
— E convida ele? Quem convida o lobo pro pasto das ovelhas? — Love tinha razão, mas eu não havia o convidado.
— Eu não convidei, ele veio porque quis — Mais um novo suspiro frustrado.
— Quero entrar para o time — Ele finalmente falou atraindo a surpresa de nós duas que o encarava como se o rei demônio tivesse pedido nossa amizade. Assustador demais.
— Eu não confio nele — Love disse em minha mente e eu respondi apenas um também — Seria melhor Akantha ver ele antes de aceitar...
— Amanhã... Nos dê até amanhã para responder — Eu falei tomando a dianteira o vendo confirmar.
Eu só conheço gente estranha nesse jogo!
Durante todo meu trabalho fiquei pensativa. Como Akantha iria reagir? Claro que Love teria contado sobre o possível Nulo? Será que era ele mesmo? Não tinha como ter certeza, ele sequer falou se era ou não e apenas assumi que sim. Merda, onde eu estou me enfiando?
Enquanto digitava alguns textos escutei uma notificação sobre um novo vídeo postado sobre Nexus New World. Olhei para todos os lados antes de o abrir em um pequeno arquivo lendo as legendas rapidamente. No começo eram pessoas pedindo atenção de seu ídolo, mas logo se tornou mensagens referentes ao vídeo e o aparecimento de Nulo.
Era uma equipe de cinco pessoas, sendo dois magos de nível maior que o de Akantha e um necromante nível quarenta e dois, porém, enquanto emboscavam um ogro de nível cinquenta e sete viraram as vítimas do jogador fantasma.
A figura encapuzada apareceu segurando uma espada de metal negro e sumiu logo em seguida matando ambos os magos de uma vez no que foi um segundo de ataque. O necromante invocou um dragão de esqueletos para tentar atacar o Nulo que novamente sumiu do campo de visão para aparecer logo em seguida ao lado do corpo do guerreiro que se despedaçou aos poucos enquanto a figura sombria novamente desaparecia levando outro guerreiro e por fim o necromante.
A gravação foi encerrada logo em seguida já que a pessoa que doava os olhos para o vídeo havia morrido por último. Suspirei o fechando antes que eu fosse pega pela minha supervisora voltando a digitar logo em seguida.
— Vai ser uma reunião complicada — Sussurrei para mim mesma tentando novamente voltar meu foco ao trabalho e deixar o jogo por um tempo de lado.
— Esse é ele — Falei quando Akantha nos encarou pensativa — Ele me seguiu depois que nos conhecemos na floresta..., mas na verdade, aquela vez em que eu fui atacada era ele.
— Você deve ser o Nulo — Mesmo aquela vestimenta sempre cobrindo seu rosto e corpo, pude ver um sorriso aparecer — Eu gostaria apenas de saber o motivo de você querer se juntar a nós.
— Não é nada em especial — E puxando o capuz para longe de seu rosto, finalmente pude ver como era o Nulo.
Sua raça era um filho da noite — a mesma que a minha — pele escura em um tom acinzentado, orelhas levemente pontiagudas e um longo cabelo preso. De rosto ele era lindo, olhos levemente puxados com longos cílios, uma expressão neutra e alheia a qualquer julgamento.
Pude sentir quando ele mudou sua atenção de Akantha para mim, os olhos predadores se abriram levemente enquanto aos poucos parecia demonstrar curiosidade com o que eu estava pensando. Se eu parasse para pensar, Nulo era o único jogador que escolheu a mesma raça, será alguma desvantagem nela que sequer pesquisei antes de fazer minha escolha?
— Raven — Senti a voz de Akantha em minha mente me fazendo a encarar, seu cajado estava encostado em uma pequena mureta onde ela se empoleirava — Eu quero que você fique de olho nele... Parece que a guarda só abaixa quando te olha, deve ser melhor serem uma dupla por um tempo.
— A guarda abaixa? — Questionei arqueando uma sobrancelha.
— Ele parece gostar de você — Senti meu rosto se aquecer com seu jeito tão simples de dizer algo como aquilo — Se ele é alguém que quer se juntar conosco ou apenas uma emboscada apenas você vai conseguir descobrir.
— Agora eu sou uma babá? — Suspirei me sentindo frustrada, porém, sem opções apenas aceitei.