Sem o conhecimento de Vítor, atualmente um recém nascido sem nome, Yata chama por Liliana:
"Lili, vem aqui! Rápido!"
Exclamou mentalmente através da língua mãe, enviando telepaticamente a mensagem.
Confusa com o alarme repentino, Liliana levantou-se apressada da cadeira, equilibrando suavemente a xícara de chá no porta copos de porcelana.
"O que foi? Há algo errado com ele?"
Questionou, preocupada com o que poderia estar acontecendo.
"Não, é só, é que..." Tropeçando entre as palavras, não conseguia formar uma sentença completa e responder claramente as perguntas tornou-se inviável.
O que poderia deixar o Yata tão surpreso? Liliana pensou.
Indo até o canto da sala, puxada pela comoção na fala de Yata, percorreu o caminho em passos inquietos, diferentes dos graciosos passos de gato com os quais habitualmente andara.
Ao debruçar-se sobre o berço, apoiando as mãos sobre as grades de madeira polida, esperou encontrar uma cena diferente dentro do berço, algo assutador talvez, ou pelo menos algo parecido.
Estranhou.
Tudo que viu foi a mesma criança humana de sempre, deverás fofo diga-se de passagem, perfeitamente bem, observando do interior do berço a baderna invisível formando-se ao seu redor.
Não podendo estar mais confusa com a situação, a frase - Você está brincando comigo? - Estampara por completo sua face voltada ao corvo estupefato ao seu lado, petriforme, parado como uma estátua.
Aliviou-se da preocupação vendo que, na medida do possível, estava tudo bem.
Ela sabia que Yata não era o tipo de fazer brincadeiras de mal gosto e sabia também que ele, por ter desenvolvido apego ao garoto, não faria nenhuma crueldade ou o colocaria em perigo propositalmente.
Suspirou aliviada.
"Diga me o que aconteceu que poderia lhe causar tanto espanto."
Disse suavemente para que Yata pudesse se acalmar e então processar toda a informação chocante que o afligia.
Yata, por sua vez, agarrou com firmeza o apoio abaixo de suas garras e tomou uma respiração profunda, certificando-se do estado de consciência em que se encontrava, sintonizando a cacofonia de pensamentos e incertezas fervilhando em sua mente.
Olhou de soslaio a amiga de muitos anos sorrindo despreocupada, estática a sua direita, esperando pacientemente pela resposta que ele daria.
Voltando o corpo em direção a Liliana, encarou o ridículo da realidade a sua frente, certo de que aquilo não era um sonho ou ilusão.
Olhou Liliana diretamente nos olhos e disse:
"Olha... O que eu vou dizer agora vai parecer insano e completamente irreal. Vai soar como uma mentira descabida e você com certeza não vai acreditar em mim, mas..."
Suspirou, descrente das palavras que sairiam de seu bico, continuou:
"Esse garoto estava, concientemente - por vontade própria - fazendo circulação de mana de limpeza."
Encararam-se por alguns segundos.
Yata sabia em primeira mão que essa é uma coisa ridícula de se dizer, dadas as implicações dessa afirmação. Mesmo assim, Liliana recebeu plenamente a mensagem, não esboçando reação.
"...Sabe de uma coisa, ontem meu filho recém nascido estava realizando cálculos matemáticos envolvendo multiplicação e divisão de frações, tudo sozinho, sem nunca ter sido ensinado por alguém ou tido contato com material didático..."
Esse é o nível de insanidade da fala de Yata.
Com certeza, alguém com as faculdades mentais em dia acreditaria nessa falácia hiperbólica de proporções faraônicas.
Tente acreditar nisso e tire suas próprias conclusões.
Mais alguns segundos se passaram até que algum deles dissesse algo. Após quase 1 minuto da quietude gritante na sala, esperando inquieto o retorno a sua afirmação, ela foi a primeira a quebrar o silêncio no cômodo:
"Puft!"
"Eu mereço." Ele pensou, mais uma vez, envergonhado pelas expectativas que impôs.
Veloz como um repto-fatiador, Liliana cobriu a boca tentando impedir que quaisquer sons degradantes escapassem-lhe os lábios; um movimento em vão. Além de não ter sido rápida o suficiente, não conseguiu suprimir a pressão gerada por seu diafragma, liberando pequenos sopros de risada entre cada palavra da seguinte frase:
"Nessa idade contando esse tipo de mentira, você não está velho demais pra isso? E além do mais, você acha que eu, a minha pessoa, muá, Liliana Elunia, A high-dríade, cairia em uma piada dessas? Nem em 1 milhão de anos."
Entre espasmos e respirações curtas, falou rapidamente, "Diz aí o que aconteceu, agora sem piadas, por favor."
Sem resposta imediata, encara o olhar impassível no semblante atônito da ave negra a sua frente, certa de que ele admitirá a brincadeira.
Limpando as lágrimas presas nas extremidades dos olhos, acalma a respiração, reunindo o máximo de seriedade que consegue, buscando retomar o foco da conversa.
"Você ainda não me respondeu, qual foi o problema? Não consigo sentir nada errado com ele." Ela disse.
Convicto do que seus olhos haviam visto, bateu na mesma tecla, reafirmando a imposição anterior.
"Eu já disse o que houve, mesmo que inacreditável, é a verdade nua e crua. E eu não estou ficando maluco, o garoto estava fazendo a circulação de mana de limpeza bem na aqui nessa sala."
Levando a mão até as têmporas, apertou-as, desacreditada com o cenário fictício formado na imaginação de Yata.
Eu sei que ele é uma ave, mas não sabia que ele tinha cérebro de passarinho. Liliana pensou.
Buscando sentido nesta conversa aparentemente infrutífera, decidiu dar campo para as possibilidades e deixar a loucura correr solta.
Pigarreou.
"Tá bom, tá bom. Digamos que eu acredite nessa sua história mirabolante. Como você explica o fato de eu não sentir isso acontecendo? Eu sei de tudo que acontece dentro dessa floresta e essa casa não é excessão, como eu deixaria algo tão próximo fugir a atenção?"
Yata mostrou-se pensativo em relação a seriedade da questão proposta.
Apesar da convicção de que poderia encontrar uma resolução satisfatória para o caso, formular um resultado convincente em poucos segundos, fundado em nenhuma informação concreta, não é tangível de precisão. Ainda por cima, sendo esse o primeiro caso desse tipo que presenciam, não havia nem mesmo base teórica para começar.
Então, em primeira análise, só encontrou uma saída plausível, um pensamento avulso que, fortuitamente, criou o estopim ideal:
"Você não sabia..." Balbuceou. Pareceu confuso pelas próprias palavras.
"Ahn? O que isso deveria significar?" Lili perguntou, confusa com as palavras confusas de Yata.
"Nós... não tínhamos como saber... sem verificar com atenção isso passaria despercebido... como aconteceu até agora."
Como um iniciante segurando agulha e linha pela primeira vez, a frase de Yata foi costurada no momento em que falava e tecia instintivamente os pontos, um a um, sem intenção ou forma pensada previamente.
Encantada pelo estranho raciocínio de Yata, alguém tão metódico e, inconsciente da animação crescente em sua voz, manejou o suave fluxo tomado pela conversa.
E assim se seguiu:
"Você quer dizer que para ele a circulação de mana é tão natural que passa despercebida para nós?"
"Não necessariamente, Lili. Se fosse isso, nós perceberiamos na hora. Quando o vi fazendo de perto, a técnica parecia... rústica. Simplória, no melhor dos casos. Como se empurrasse com as mãos um rio correnteza abaixo. Apenas seguindo o fluxo da mana e dando pequenos empurrões esporádicos."
"É, isso explicaria o porquê de não termos percebido antes. Já que há certa instabilidade no fluxo da mana de recém nascidos e como eles não possuem controle sobre a própria mana, as flutuações no fluxo são normais e pareceria apenas isso para quem observasse sem intenção."
"Então, Lili, você que ficou perto dele por mais tempo, consegue imaginar o porquê isso poderia acontecer?"
Ela parou pensativa, repetindo a mesma coisa na cabeça:
"... Um motivo, um motivo, um motivo..."
Apoiando o braço direito sobre as costas da mão esquerda, tocou a bochecha com a mão direita, repetindo o tique rotineiro que aparece parelho à uma questão difícil.
Sem ideias restando, fez um panorama da sala à procura de pistas, revivendo em sua memória todos os momentos que passou ao lado daquele humano, tentando entender a motivação para aquilo.
Nada se encaixava naquela situação estranha, o senso comum não servia de nada perante ela. Coisas como a alta densidade ou pureza da mana presente na floresta não são argumentos plausíveis, já que ele, um recém nascido, não teria como saber os conceitos básicos do estudo da mana.
Excluindo isso, o que resta na equação é o talento inato da própria pessoa, um aspecto naturalmente imutável e, como o nome diz, inerente ao indivíduo, algo decido antes mesmo do nascimento.
"Talento inato."
O que um termo tão simples mas, ao mesmo tempo, tão obscuro e adstringente poderia definir por inteiro o destino de alguém?
O talento inato pode ser dividido em três partes, o poder bruto, o controle e a capacidade de crescimento. E essas capacidades se dividem em outras duas partes, física e mágica.
O poder bruto se refere as capacidades mais básicas dos seres vivos, a "estrutura" ou "fundação" de cada indivíduo.
O controle se refere a como os indivíduos usam o "poder bruto" que possuem, quanto melhor o controle, maior o aproveitamento do poder bruto.
O tamanho não importa, o importante é como se usa o que se tem, certo?
A capacidade de crescimento fala por si só; a capacidade e velocidade de desenvolvimento individual.
Então como as três bases fundamentais influenciam diretamente cada um?
O poder bruto está intrinsecamente ligado a "substância dos indivíduos" e são considerados os atributos mais básicos dos seres vivos
Características como, força, velocidade, resistência, resiliência, altura, sentidos, densidade óssea e muscular e todos os traços e individualidades fisiológicas dos seres vivos fazem parte dos aspectos físicos ligados ao "poder bruto."
Armazenamento, produção e pureza máximas da mana no núcleo de mana, absorção e purificação da mana ambiente e capacidade total de transporte das veias de mana e volume de liberação de mana são alguns aspectos mágicos ligados ao "poder bruto."
Então, se o poder bruto refere-se ao quantitativo geral do poder pertencente a alguém, o controle se refere as habilidades, conhecimento e competências que o indivíduo acumula ao longo da vida através dos diversos meios a sua disposição, sejam eles, métodos exaustivos de treinamento, horas gastas estudando na biblioteca, disputas práticas, situações de vida ou morte.
Cada experiência vivida é transformada em fragmentos de existência individual, presos ao poder latente e unidos em prol de forjá-lo a sua forma final, o ápice do poder alcançávelz ou seja, em outras palavras, treinar aquilo em que você é naturalmente habilidoso trará, futuramente, resultados positivos.
Mas é claro que, não importa o quanto alguém treine e se esforce, se não houver espaço para crescimento a melhoria se torna impossível.
Quando digo "espaço" não me refiro apenas a espaço geográfico, ambiente familiar ou condições de ensino, mas também ao "espaço de crescimento interno" ou a capacidade de crescimento dita a pouco.
Imagine o seguinte caso: alguém nasce com um corpo forte ou mana abundante. O que todos irão pensar?
"...Essa criança tem um futuro deslumbrante garantido a frente..."
Ou:
"...Que benção maravilhosa para ela e sua família..."
Ou:
"...Todos temos muitas expectativas para o que lhe aguarda futuramente..."
E se:
O referido jamais atingir as expectativas impostas sobre ele e todo tempo e recursos investidos não se pagarem como todos esperavam? Independente do seu empenho constante.
O que isso implicaria?
Essa criança é inútil? Lixo? Ingrata por desperdiçar as chances entregues de mão beijada?
Não!
Todos possuem limites, alguns altos outros baixos. Alguns superam esses limites através de rituais profanos que vão contra o ciclo natural da vida e morte ou itens lendários perdidos ao longo das eras ou bençãos divinas ofertadas pelos deuses ou quaisquer outros métodos, a maioria considerados proibidos ou impossíveis.
Foram poucos aqueles que romperam o limitador imposto pela vontade universal e, excedendo as leis naturais, ascenderam, conquistando o impossível. A capacidade de melhorar indefinidamente.
Alguns a conhecem como remoção do limitador aspectual, outros de fratura do paradigma estelar.
Nenhum deles está correto, entretanto, nenhum deles está errado.
Não há como ou porquê invalidar as distinções feitas por outrem...
Ainda sim, o termo que perdurou vagando sucinto por entre as eras, desde antes das entidades imateriais e ininteligíveis, massas caóticas de pura infinitude criadas pelo conceito original, se tornarem conhecidas como Espaço e Tempo.
Uma única palavra conhecidas por todos, do dia do nascimento até a hora da morte. Uma palavra simples de caráter ínfimo, irredutível e magnânimo, fundada na ambiguidade da concepção atemporal; nada nunca será menor que ela, nada nunca será maior que ela. E perdurará assim, intocado, após o fim do Tempo e do colapso do Espaço.
O aspecto cobiçado por cada criatura viva, até mesmo pelos deuses. O direito supremo que uma vez adquirido, não pode ser tomado ou entregue a ninguém, nem mesmo as divindades que governam o mundo.
O conceito além dos conceitos.
O que mais poderia ser se não:
[Liberdade]