* Pov Ardena *
"Peguei-me admirando a lua
novamente em meio a escuridão, algo
nela absorvia toda a minha atenção
e isso me encantava. Era mais do que
uma simples atração, era mais forte do
que apenas isso, era sombrio. Como um
desejo enraizado no canto mais frio
e desconhecido da minha mente. Por
todas as noites, eu tinha um caso
sádico e misterioso com a Lua.
Como naquele dia, desde que abri
meus olhos pela manhã, eu soube, algo
terrível aconteceria.
A chuva caía intensamente
naquela noite em pleno inverno de
Boston, as gotas de água escorriam
rapidamente pelo vidro do carro,
dando um ar elegante ao momento
em que All I need soava no velho
rádio amarelo fosco. Uma belíssima
música, mas Within Temptation não se
adequava ao momento.
Era mórbido, como uma faísca em
chuvas de álcool, era um ponto mais
forte para o meu mau pressentimento.
— Pai, muda essa merda, vou
começar a chorar aqui! expus em
tom de brincadeira e observei pelo
retrovisor interno do carro um sorriso
se formar em seus lábios.
-Mas eu gosto dessa... Seus olhos
encontraram os meus.
— Ardena, que linguagem vulgar é
essa? Minha mãe o interrompeu em
um tom reprovador.
Para alguém como a minha mãe a
forma de se falar dizia tudo sobre
você, por isso raramente aceitava uma
linguagem coloquial da minha parte.
Sua incessante necessidade em usar a
formalidade era herança inglesa de sua
morada na Inglaterra.
- Desculpe-me, força do hábito
expliquei desinteressada.
- Pai poderia permutar para outra música
por favor, não está a meu gosto. Assim
está melhor?
— A encarei com o meu
melhor sorriso sarcástico voltando o
olhar para a lua.
Às vezes era cansativo ser filha dela.
Seguir suas regras e seus objetivos,
seus sonhos. Para ela eu era um molde
que precisava ser desenhado sobre
suas vontades e necessidades. A minha
identidade muitas vezes foi esculpida
em cima da sua. Às vezes era cansativo
até respirar o mesmo ar que ela.
Era triste, desgastante e cruel.
-Assim está bem melhor:
respondeu avançando a playlist
do aparelho de som. Seus olhos
duros varreram as estradas pouco
iluminadas pelos faróis, ela respirou
fundo e levemente seu queixo se
inclinou como um ato de dever.
E aquele era um dos momentos
mais marcantes dos nossos
desentendimentos, quando ela dizia a
si mesma que suas obrigações nobres
eram sua responsabilidade e sua
herança, e como sua filha eu precisava
saber como se portar.
-Eu gosto dessa! - concluiu
demasiadamente animada, como se
guardasse para si seus pensamentos
e suas verdadeiras expressões, se
movendo para ambos os lados, a
vergonha que ela chamava de dança. 144
- Poderia mudar novamente, também
não gosto dessa - meu tom brincalhão
preencheu o ambiente. Vi meu pai
apertar os lábios escondendo um
sorriso.
- Você está pedindo pra morrer!
zombou ele.
Ela se virou para mim e fingiu me
fuzilar com olhos, uma atitude típica
vindo dela. Se formou um silêncio e
percebi que meu pai havia desligado o
som.
- Ei! gritamos em uníssono para ele
que ainda prendia o riso.
Ela sorriu para ele, e então voltou a me
olhar. Foi de maneira diferente, um
olhar estranho, terno, como de quem
carrega culpa.
Estávamos pensando... - iniciou
ela mudando de assunto.
— Em fazermos uma visita a sua tia Meredite no próximo feriado. O que acha?- salientou sugestiva. Ela parecia
pensativa demais, como uma boa
manipuladora.
Ela se referia a sua irmã, a bruxa
velha da Meredite. Eu já tinha a visto
algumas vezes, mas o suficiente para
não gostar de sua pessoa. Meu santo
não batia com o dela. Simples assim!
Tia Meredite?! — Não fiz
questão alguma de esconder meu
descontentamento.
- Ela mora na Inglaterra, mãe! - concluí.
Não que eu não gostasse de viagens, ou
que a Europa não me agradasse, mas o
próximo feriado eu queria aproveitar
com meus amigos e o meu namorado.
E não visitando pessoas que não me
agradavam.
-Seria uma viagem divertida,
querida comentou meu pai com sua
voz macia e paciente.
- Poderíamos até levar quem sabe... - Fez uma pausa misteriosa. - O Brian.
Suas palavras me arrancaram um
sorriso contente no qual não fui
capaz de conter. Seria uma viagem romântica!
-Nesse caso, eu poderia repensar!
admiti pensativa. — Viajar para a
Inglaterra?! Me parece... -me calei.
Divertidíssima!
- Em falar em viagens, o que achou
de nosso passeio? - perguntou ele
curiosamente.
- Confesso que o Caribe é divino,
mas não resolveu o meu problema!
assegurei, sem muito entusiasmo.
- E qual seria ele? - meu pai
olhou-me brevemente.
Levei meu braço a frente expondo
minha pele pálida e avermelhada
devido ao sol.
- Não se preocupe, quem sabe ela não
volte a cor de antigamente - minha
mãe disse amigável.
Ela não se referia ao tom avermelhado,
e sim ao tom de pele que com
pouca frequência se alterava.
Misteriosamente, mudava.
- Duvido muito que essa cor de
lagartixa desapareça - zombou meu
pai acompanhando com uma risada
baixa.
Dei uma palmada em seu braço
mostrando-lhe uma careta feia.
-Calado, pai!
Minha mãe encarou minha pele e
não se conteve em dar boas risadas.
Risadas estas, que nas quais demos
muitas sobre a areia fina e clara do
Caribe. Uma viagem única! Decidida
e organizada por meu pai, que estava
constantemente ausente, preso no
trabalho. Minha mãe logo concordou,
precisava também de uma folga. Então
aproveitamos as férias de inverno para
ir. Eu estava sem aula, e só voltaria
no próximo mês. Então nós apenas
arrumamos as malas e fomos.
As memórias do passeio ainda
pairavam pela minha mente. Foi uma
das mais surpreendentes viagens que
fiz. Nos aproximou de uma forma
única. Eu tinha os meus pais de volta.
Ali e agora. Inteiramente meus.
E assim continuamos nosso caminho
de volta para casa. À gargalhadas e
risadas nos recordando dos melhores
momentos. Foi incrível até eu
adormecer ao som de suas vozes. O
cansaço me consumiu.
Aquela sensação ruim ainda pairava
sob meu peito, ainda pesava sobre a
minha cabeça, ainda condenava meus
sonhos. E ela nunca desapareceu
depois daquele dia.
Ouvi um grito distante e abri o
olhos instantaneamente, ainda me
encontrava dentro do carro, mas
diferente de antes, ele estava parado.
Onde eu estou? perguntei a
minha mesma ainda sonolenta. Não
precisei de respostas quando tudo me
pareceu familiar, as casas, as ruas e até
as pessoas. Eu estava em casa.
"Mas como havíamos chegado tão
rápido?! Eu havia dormido demais,
outra vez".
Dona Clóe passeava pela calçada com
o Pitty, seu gato preto com manchas
loiras de estimação sim, ela ainda passeava com o gato como se ele fosse
um cachorro encoleirado. Havia
coisas que não mudavam nunca. Sorri
ao ver aquela cena novamente, Dona
Clóe estava doente e não saía mais na
rua fazia dias.
O céu estava claro, apesar da chuva
de horas anteriores, mas havia algo
errado, eu não sabia dizer o que era,
mas me senti um pouco incomodada.
Levemente incomodada.
ARDENA! - minha mãe gritou
da janela arrumando as cortinas.
Acorda filha, nós já chegamos.
- É, eu percebi... sussurrei
retirando o cinto. — JÁ ESTOU INDO!
Um sorriso contente se formou em
meu rosto ao me sentir em casa. Por
poder ver Brian e o restante da galera,
principalmente, e suprir toda a falta
que sentia deles, contar todas as
novidades e entregar os presentes de
recordação. Eu mal podia esperar a
hora para isso acontecer!
E aquela sensação de ser observada
novamente me tomou. O frio na barriga e o arrepio na espinha. Olhei
em volta, mas não havia ninguém
por ali, exceto os vizinhos dispersos
em suas tarefas. Era coisa da minha
cabeça e eu sabia disso.
Peguei minha bolsa, levando minha
mão a maçaneta. Eu olhei para a
minha casa outra vez, minha mãe
ainda estava na janela, sem sorrisos
ou gritos. Ela estava lá, apenas me
olhando, como quem observa uma
paisagem.
Como quem diz adeus...
E então, ela ergueu o queixo e desviou
o olhar para algo além de mim. E
eu me virei, foi quando um barulho
ensurdecedor agrediu meus ouvidos, e
arrastou o carro para longe. Eu senti of
impacto. Minha cabeça se chocou com
o vidro da porta me deixando lenta.
Tudo se tornou um borrão de vultos,
gritos e calor. A partir dali tudo se
escureceu, literalmente."
Acordei desesperada e ofegante outra
vez, pela terceira noite consecutiva
após o acidente.
Minha casa veio a ruínas. Ela explodiu. 293
As chamas ainda penetravam em
minha mente, e arranhavam as
paredes do meu coração. Eu ainda me
lembro dos gritos, do ataque cardíaco
de Dona Clóe e os latidos dos cachorros
da vizinhança. Eu me lembro da
fumaça escura e da explosão.
Eu matei os meus pais e eu nem sabia
disso.
Eles se foram, mas eu não, por algum
motivo desconhecido, já que o carro
não havia explodido por sorte ou ter
sido arremessado para longe com a
pressão como acreditariam acontecer,
disseram que havia sido um milagre eu
ter me salvado.
Tudo dependia de ponto de visto.
Eu não via como um milagre, pelo
contrário, eu via como uma maldição.
E de certa forma, era.
A porta do quarto foi aberta
abruptamente e minha avó adentrou o
quarto ofegante.
- Querida, o que houve? - A
preocupação sondou sua voz. — O
pesadelo outra vez?- indagou ainda
ofegante.
Assenti, sem dizer uma única palavra,
não havia nada a ser dito ou que eu
quisesse dizer.
A luz da lua iluminava o quarto
naquela madrugada me permitindo
ver seu rosto. As marcas dos anos,
estampada em sua pele envelhecida.
Ela trazia uma mancha de dor, assim
como eu, que desde o acidente eu
não havia chorado nenhuma sequer
vez, nem mesmo a vontade de chorar
surgiu, eu não sentia nada. A sensação
ruim ainda se mantinha ali. Algo
dentro de mim persistia em dizer
que eu já sabia que isto aconteceria,
assombrando a mente todos os dias.
Seus braços quentes e finos me
envolveram, diluindo a raiva do meu
coração. Eu sentia segura ali, naquele
momento, entre aqueles braços.
- Vó? - Minha voz rouca de sono
soou em um sussurro desesperador.
-Sim, querida?
Hesitei em perguntar, eu não sabia ao
certo se desejava mesmo a resposta.
-Como será daqui pra frente?
Era a primeira vez que conversávamos
sobre isso. Era a primeira vez que
conversávamos sobre algo nos últimos
dias. Desde o acidente, eu não falei
muito além de "Obrigada" e "Estou
bem". É como se a minha voz morresse
também ou minha vontade de falar.
- Apenas seguiremos em frente - A
senti apertar-me mais. — Uma hora
essa dor vai embora, querida. Ela não
será eterna.
Mas foi!
Iríamos viajar semana que vem
respondi sentindo a revolta crescer em
mim.
- Eu sinto tanto, querida. Eu ainda
não acredito que é real — confessou
chorosa.
- Queria que isso fosse apenas um
pesadelo!
Eu soube que meus medos e traumas
nunca foram pesadelos, eles eram
reais.
- Eu também! - sua voz entristecida
soou baixa e acolhedora. - Mas você
-ainda pode seguir em frente. Você
pode escolher o seu futuro - ela
aliviou o aperto ao dizer.
Afastei-me um pouco para olhá-la.
Seu rosto um pouco escurecido
pela ausência de luz trazia os olhos
brilhosos de um choro contido e uma
expressão pensativa.
- O que quer dizer, vó? - indaguei
receosa.
-Poderá escolher... - hesitou antes
de dizer. - Se deseja ficar aqui comigo
e continuar a vida normalmente.
Escola, amigos, trabalho continuou.
- Ou ir morar com sua tia Meredite na
Inglaterra.
-Assustei-me com sua última
alternativa. Aquela atrocidade nem
devia ser levada em consideração.
Ir para a Inglaterra?! - Não pude
evitar o nervosismo e indignação que
pairaram pelo meu rosto.
-Sim, querida! Inglaterra
Terá uma vida diferente, longe
declarou.
-daqui... - ela dizia cabisbaixa. —
Longe disso tudo!
E eu entendia seus argumentos. Estar
ali trazia à tona todas as lembranças,
sentimentos e um turbilhão de
emoções. Era como um soco no
estômago. Como viver diariamente no
meu pesadelo. Revivendo e revivendo
aquele momento que se tornou um
memória tão sombria que escurecia
até os pontos mais lúcidos da minha
alma. Eu me sentia morrer lenta e
dolorosamente.
Eu não sei o que fazer. Ela devia
estar aqui, devia me dizer o que
fazer, eles não tinham o direito de me
abandonar e me deixar com um peso
que eu não consigo carregar.
E eu desabei em choro, soluços,
desespero e destruição. E porque pela
primeira vez na vida eu não tinha
mais ninguém que me mantivesse em
pé, e isso era aterrorizador. Os meus
pais eram os meus alicerces, os meus
pilares, e por vezes eram tudo o que
eu tinha. E eles se foram, então eu não
tinha mais nada, além de duas lápides
e um milhão de lembranças boas que
foram massacradas por um momento
ruim.
Ela me abraçou tão forte que eu senti
que queria juntar todos os meus
cacos espalhados pelo chão e me
deixar inteira outra vez. Isso não era
possível, não aconteceu, mas ela não
permitiu que mais nenhum pedaço
meu se partisse. E isso era tudo o que
precisava naquele momento. Era o
mínimo para me manter viva.
Você vai ficar bem! Leve o tempo
que levar - garantiu. — E quando
passar, você poderá ser feliz de novo
e nunca mais precisará sentir essa dor
outra vez.
Ela não devia ter me dito aquilo.
Porque eu acreditei que nunca mais
sentiria uma dor como aquela.
Mas eu senti.
Muitas e muitas vezes.
Não tem que decidir nada agora,
está bem?! - ela se levantou da cama.
E no fundo eu sabia que eu não a
deixaria porque ela precisava de mim,
e sim porque eu não suportaria perder
mais ninguém.
- Boa noite, querida — senti seus
lábios em minha testa e vi seu vulto
passando pela a porta.
Boa noite, vovó sussurrei.
- Você é mais forte do imagina,
Ardena - Sua voz soou firme em meio
a escuridão. Muito mais!
- Eu não vou, vovó. Não a
abandonarei, prometo! - garanti
sendo retribuída por um sorriso fraco.
Eu não entendi exatamente o que ela
queria me dizer, mas me serviu de apoio. Eu precisava me sentir forte.
Ir para a Inglaterra era um ideia tão
distante que nem devia ser levada em
conta. Eu não poderia deixar tudo para
trás...
Mas um parte minha se questionava:
"Poderia?!".
"Não! Eu não podia e não iria. A minha
vida era aquela, e nada, nem ninguém
mudaria isso. Perder meus pais abriu
um vazio gigantesco em mim". E então
uma sensação me tomou, assustei-me,
mas de alguma forma eu já sabia que
era só o começo.
Deitei minha cabeça no travesseiro e
me recusei a pensar em algo além das
pessoas que me restavam. Tudo estava
me sufocando e eu só precisava mudar
o foco. Nem que por cinco minutos.
Então eu me foquei no meu namorado.
resmunguei. -Ah, Brian...preciso de você.
Foi como um pedido a Deus, uma
suplica para que ele estivesse ali.
Adormeci com as lembranças do meu melhor amigo e amante, talvez eu só
precisasse focar nele para que toda a
dor fosse embora.
De certa forma ele era tudo o que me
restava. E eu escolhi acreditar que no
dia seguinte as coisas melhorariam,
não que eu realmente acreditasse
nisso, mas eu tinha que tentar.
- Amanhã será outro dia, amanhã...
E aquela foi a primeira vez que percebi
que a minha vida era um efeito
dominó, uma peça desencadeava uma
destruição em massa. Ou seja, um
conjunto de escolhas e... Mudanças
perigosas!