Chereads / Sussuro dos Deuses / Chapter 3 - Capítulo 3

Chapter 3 - Capítulo 3

"Máscaras"

~ William ~

A corte com certeza o esperava ansiosamente, mas ele não tinha pressa. Devagar, William penteia seus cabelos para trás do seu rosto desfigurado, os fios passam com maciez pelos dentes do pente de marfim polido. Cabelos tão negros como a noite, muito diferente de qualquer parente vivo que ele conhecia, sempre foi assim, não carregar com sigo os cabelos ruivos da sua família era uma dádiva, era o que diziam.

A porta do seu quarto lentamente se abre, deixando a luz natural entrar no quarto fechado, até então iluminado apenas por velas.

- William, - era a sua irmã mais velha, a qual, infelizmente, tinha os cabelos tão ruivos como o fogo ardente. - não é possível que você possa demorar tanto para se arrumar. Você é um homem afinal, oras! Nem eu passo tanto tempo assim arrumando meu cabelo.

Isso era verdade. Comparado a William que tinha como principal passatempo banhar seus cabelos em óleos e essências Turna era o oposto. Fazia questão de deixar o cabelo sempre acima dos ombros e o máximo de cuidado que o tinha era escovar eles assim que acordava e antes de dormir. Dos pés a cabeça Turna não era uma princesa, talvez um privilégio de quem nasceu com o estigma da família.

A luz que dominou o quarto fez a imagem no espelho ficar mais nítida. Um rosto retorcido desde o nascimento. Marcas de queimadura do lado esquerdo como se a pele tivesse sido derretida diversas vezes, mesmo sem nunca ter entrado em contato com fogo, o lado direito, apesar de ser o seu "melhor lado" como gosta de brincar, não é inseto das deformidades, sem a sobrancelha e o olho cego. William se encarou, como fazia todas as manhãs antes de sair.

- Se não posso melhorar meu rosto, por que não o cabelo? - o rosto de Turna enrijeceu.

- Vamos. - ela proclamou. - A vovó espera por você, hoje é o dia que você se torna oficialmente o herdeiro.

- Era pra ser você, Turna. Você ou o Ilírio, talvez até o Davilon se ele perdesse uns dois sacos de arrogância.

- Você brinca muito, irmãozinho. Suas responsabilidades são suas mas também são nossas. - ela se abaixou a altura dele e o encarou no fundo dos olhos. - Nós somos sua família.

- Até quando? - Turna se afastou. - Até a Amélia ser encontrada morta em alguma vala? Até a vovó morrer necrosada em uma cama sem se lembrar nem o nome dos filhos ou quando o Ilírio morrer nos seus braços?

- Faça o que você quiser. - Ela saiu, arrastando com força o seu vestido preto pelo chão e varrendo o único resquício de luz ao fechar a porta e devolvendo o quarto a sua escuridão.

Fora daquele castelo de morte era o seu lugar, um lugar onde não teria que ver a sua família morrer e no qual não precisaria assumir a responsabilidade de governar o seu país.

Ao abrir a janela um novo mundo se formava à vista. O mar calmo e as ilhas de Exuberante beleza, os preparativos para o grande festival desta noite, o grande mercado com suas frutas frescas e uma população de compradores vorazes, sedentos pelos melhores preços e produtos. Lá fora ele era só mais um, sem os cabelos ruivos da sua família, tudo que precisaria fazer era cobrir sua face retorcida para passar despercebido pela multidão, afinal, todos conhecem seu rosto pela sua abominação. As máscaras eram a sua solução. Debaixo da cama, todos os anos ela aguardava para ser usada, seu interior frio e as marcas em três listras da cor violeta pelo crime de ser um filho fora do casamento, usar a máscara no lugar dos seus pais, mesmo que não pelo dia todo era sua obrigação moral, sentia isso.

É a tradição mais antiga de Borea. Teve o seu início datado pelos mantos brancos como sendo desde o ano 15 D.D. ( depois dos deuses) e perdurando por mais de 900 anos até os dias atuais. Todos os anos em um dia específico quando a lua está nova e as flores da grande árvore do mundo florescem, chegou a hora. Todos os habitantes da ilha principal e os turistas e visitantes de outras ilhas do reino e do exterior usam máscaras brancas com o objetivo de esconder seus pecados frente a ação da Deusa da Vida, o florescimento da grande árvore que ela plantou significava para muitos que o seu olhar divino pairava sobre aquela cidade uma noite todos os anos. Os detalhes das máscaras, como as listras ou outras figuras, assim como suas cores dependiam de qual pecado se está tentando esconder. O vermelho para a raiva, amarelo para a ganância e o violeta para o pecado de luxúria, como por exemplo não aguentar as tentações da carne e deitar com uma mulher fora do casamento. O pecado do seu pai, mas ele nunca usou uma máscara violeta, na verdade, de nenhuma cor. Ninguém da família real fazia isso pois não tem pecados grandes demais para esconder da deusa da vida, até porque ela era a grande ancestral da família, o único ser superior a deixar descendentes conhecidos e se os herdeiros do seu legado no mundo mortal fosse tão corruptos, qual seria o sentido de tudo aquilo.

A janela estava aberta e tudo que indicava que ele era da família real, os descendentes de deus, estavam apagados por uma máscara de madeira branca mal pintada e um termo encardido que escondia o ano todo. Ele pulou, em cada um dos galhos e raízes da árvore do mundo que cresciam quase dominando a parede do quarto para descer até o chão. Era uma rota fácil, fazia aquilo todos os anos para ver o festival, geralmente à noite, já que era esse o horário mais ativo das festividades, mas tinha que sair agora. Não era difícil driblar os soldados durante a noite, mas pela manhã era mais complicado, precisava esgueirar entre o tronco da árvore ou se esconder entre paredes das grandes torres.

Quando finalmente chegou na área dos portões a coisa mudou a seu favor, tudo que precisava era se misturar às pessoas que entravam e saiam a todo instante do castelo para chegar na cidade. Usando a máscara só precisava literalmente andar alguns metros. Todos dos portões, incluindo os guardas, usavam máscaras. Os homens de armadura usavam quase em sua maioria a máscara com bolas vermelhas, simbolizando o pecado de machucar alguém, alguns poucos, dois ou três, usavam a máscara totalmente preta, indicando que já mataram uma pessoa. E foi justamente um desses homens que parou William.

Ele se aproximou, sua silhueta era assustadora mesmo com o rosto coberto. Um brutamontes de quase dois metros de altura reforçado com músculos. Era alguém inconfundível.

- Luxúria? Alguém com sua idade, - ele aproximou seu rosto escondido. - William. Deveria começar a usar amarelo ou verde, são as cores mais comuns. Quem não tem ganância ou aversões, não é mesmo?

Era o general Demétrio, um homem de coração bom, sem dúvidas.

- Pensei que dessa vez passaria despercebido.

- Você sabe como eu sou competitivo.

Demétrio descobriu sobre as saídas de William a alguns anos e entendeu na primeira vez que o pegou escalando os muros pelo prédio da cozinha. Ele tinha uma filha com uns dois anos, era difícil imaginar um homem daqueles fazendo vozes fofas e essas coisas, mas ele era assim. Alguém de coração bom, com uma filha a quem amava incondicionalmente, amor com seu dever, o suficiente para matar pelos seus monarcas. Era esse o seu pecado.

- Volte antes que alguém perceba. - ele deu uns tapinhas leves em William, o mandando seguir em frente. - Posso me meter em encrenca dessa vez. Espero que quando você for rei se lembre disso, viu.

Era longe do castelo que o festival acontecia em todo seu potencial. As bandeiras ainda estavam sendo amarradas entre os prédios e as flores já decoravam as ruas com sua beleza e seus cheiros fortes, os vindos das casas, eram todos os tipos de cheiros doces, vagando para fora do seu interior, da comida sendo assada, batatas, pães e bolos de laranja. O trânsito nas ruas era pesado, a maioria eram carroças de carga levando mantimentos para as pousadas lotadas ou para o castelo, obrigando as pessoas a se amontoarem nas calçadas para conseguirem chegar a algum lugar. Todas elas usavam máscaras, mesmo dentro de casa e durante todos os seus afazeres diários, as cores e as formas variavam. A maioria das crianças usavam com a forma de estrelas, tentando mostrar para a deusa que seus pecados foram cometidos em inocência, os adultos variavam mais nas cores do que as crianças.

De longe, quando finalmente chegou à praça do perdão, conseguiu a esplêndida visão do castelo em toda a sua magnitude. O castelo majestoso se ergue em perfeita sintonia com a árvore colossal, construído acompanhando o crescimento dela, erguido com pedras antigas e adornos com esculturas delicadas, revela uma arquitetura que se curva graciosamente para seguir a forma natural da árvore. A árvore colossal, com galhos que se estendem majestosamente sobre as torres, é um espetáculo por si só. A luz do sol dança entre as folhas, destacando os detalhes intrincados da construção, suas folhas cintilam em tons de verde e os brotos das flores prestes a desabrocharam ao luar, criam sombras suaves que dançam sobre as paredes de pedra. Entre os galhos, pequenas pontes de madeira conectam partes do castelo, proporcionando um caminho único e elevado. As torres imponentes mesclam-se com os galhos, criando uma simbiose única entre a arquitetura humana e a grandiosidade da natureza. Era difícil de compreender a forma do castelo, até mesmo daquela perspectiva.

Um homem se aproximou, talvez com a mesma idade de William, sua pele era escura como a dos estrangeiros do continente de areia costumavam ser.

- É incrível, não é? De onde eu venho até uma árvore é rara mas uma desse tamanho? Isso é loucura.

O homem não usava uma máscara mas tinha todas as suas vestimentas tingidas do mais puro amarelo ouro, como se gritasse com orgulho para o mundo sua ganância.

- Loucura são os homens que lutam entre si e os profetas que semeiam ódio. Isso… isso é belo. - William completou, em um suspiro de admiração.

- Você usa a cor da luxúria e se veste assim? Luxúria e ganância são dois lados da mesma moeda e como pode ver eu aceito o meu pecado como um ganancioso de alma e coração. - ele estendeu sua mão em reverência - Meu nome é Midas, é um prazer.

- O festival é tão atrativo assim para fazer você vir do outro lado do mundo até aqui?

- Bom, além da luxúria vejo que também é mal educado, não que isso seja um pecado, eu acho. O que te fez supor que eu não moro aqui? Meus olhos verdes encantadores me entregaram? - acrescentou, rindo de forma desajeitada. - Sabe, eu tenho um pequeno barco atracado no porto, quer dar uma volta antes do festival começar?

"Esse homem só pode ser um palhaço". Seus olhos eram realmente de uma beleza grande mas a sua voz era a de alguém que não levava nada a sério, nem um rei usava uma roupa com tantos babados e nenhuma mulher usava uma roupa tão justa, especialmente na parte da cintura. "O que eu tenho a perder?", ele precisava espairecer e mesmo que esse homem tentasse algo tinha certeza que conseguiria se defender.

O barco era grande mas também um pouco simples, não carregava a extravagância desnecessária do dono pelo menos. Um enorme convés lotado de cargas e apenas um número limitado de tripulantes tomando de conta delas, ele afirmou com confiança que não precisava de seguranças ou de proteção extra.

- Esse é só o começo da minha companhia. Em alguns anos eu terei tantos navios como peixes no mar.

- Isso é uma ambição e tanto.

Ambos compartilhavam bebida, já haviam conversado sobre os mais diversos assuntos. Midas contou sobre o relacionamento complicado com o seu pai e sobre seus vários irmãos, não conseguia se lembrar dos nomes e nem quantos tinha. Ele saiu de casa a vários anos, na primeira oportunidade, para construir sua própria fortuna e ultrapassar a riqueza do seu pai.

- Você não contou o porquê de sair de casa.

- Eu não era ninguém para eles. Então, jurei que ia ficar tão rico que faria ele ter que implorar pra comprar pelo menos um por cento do que eu tenho.

Era isso que o tornava ganancioso, o desejo de escrever sua própria história longe das sombras da família era o pecado que ele não queria esconder, era sua motivação. "Não tinha motivo para ter vergonha disso", ele disse.

William ergueu sua taça ao alto.

- Um brinde às famílias problemáticas.

A conversa com Midas era revigorante, mesmo com seu jeito estranho suas palavras eram na medida certa. Uma conversa casual, sobre a vida e banalidades, sem coisas chatas como responsabilidades e sem cobranças. Era perfeito, mas o tempo passou e a bebida acabou, o sol se pôs e era impossível ignorar o que aconteceria assim que retornasse para casa.

- Temo que eu tenha que ir. - sua mente já estava embriagada.

- Temo que não possa, não antes de eu ver o rosto do simpático rapaz o qual dividi a bebida. - suas duas mãos encaixaram no rosto de William, ele estava pronto para avançar como uma fera selvagem.

Seus dedos deslizaram sobre a fina faixa que segurava a máscara. William queria impedir, sentia isso, mas não conseguiu, o álcool afetou seus julgamentos e ele era incapaz de raciocinar aquela situação completamente.

As mãos de Midas eram grossas e ásperas como as de um trabalhador braçal, cheias de calos e com uma pegada forte.

- Me permite? - seus dedos estavam prontos para retirar a máscara.

- Não, - ele tirou as mãos de Midas do seu rosto. - acho que você entendeu errado. - era pra ser um "sim" mas o medo da rejeição tomou o controle dos seus lábios. - Melhor eu ir.

As ruas já estavam lotadas de máscaras, seria impossível entrar no castelo agora. Os portões já deviam ter fechado para o festival da nobreza, sessões chatas de orações e oferendas juntos dos Filhos da Terra. Lá fora era muito diferente, a comida e as danças enquanto as flores caiam sobre suas cabeças. A rua do castelo já estava quase totalmente vazia, frente aos portões Demétrio estava à sua espera, atônito e com os cabelos desajeitados, ao seu lado, seu primo Davilon e o seu tio. O cavaleiro de honra, como é chamado.

- Espero que saiba das consequências das suas decisões.

Demétrio estava atrás dele, e disse de cabeça baixa.

- Sinto muito.

Assim como os outros irmãos teve o seu nome retirado no final da grande guerra contra as tribos anciãs, foi onde recebeu esse título especialmente do líder inimigo. Era parte do tratado de paz, todos os herdeiros vivos na época tiveram seus nomes trocados por nomes da cultura dos autoproclamados primeiros homens. O nome que ele recebeu é impronunciável para não nativos, mas a sua tradução é essa: O cavaleiro de honra. Lutou bravamente em cada batalha, respeitando o inimigo da mesma maneira que os aliados. Seus cabelos e barba já eram grisalhos, mas ainda era possível ver uma aura vermelha dos seus dias de ouro, mesmo que a força não fosse mais como antigamente, como um despertado ele ainda era um guerreiro respeitável.

- A nossa avó não está em sua plena saúde, William. Deveria ter pensado no esforço para trazer ela até o salão hoje. - protestou Davilon.

Davilon tinha os cabelos raspados, mas continuava sendo inegável que seus cabelos eram tão ruivos como qualquer outro membro da família, vestia a sua armadura cerimonial, se fantasiava como o soldado que queria ser. Ele já era nascido no final da guerra e recebeu seu nome em homenagem ao deus patrono daquelas tribos, o Deus da Guerra.

"Eles não podem me fazer essas exigências." Seus punhos cerraram. "Eu não pedi por isso."

- William, tire a máscara. Seu pai ainda está lá dentro com os outros membros da ordem. - disse seu tio.

- Tenho certeza que está, como o bom apóstolo que ele é. Tão devoto a uma deusa que nunca se manifestou, é preciso muita dedicação para isso.

- William, ele é seu pai. Deve respeitar ele acima de tudo.

- Você não é o modelo ideal para me falar isso, - "Onde está sua filha mesmo? Ah é, ela preferiu fugir a ficar mais um dia com você". - nenhum de vocês é, talvez o Demétrio, se ele não tivesse com medo de vocês.

- Tire logo essa máscara e vamos encarar as consequências. - sua armadura prateada reluzia a sua fúria.

- Eu irei entrar. - seus sentimentos se dissiparam. - Mas eu irei encarar ele com isso no meu rosto a partir de hoje, agora, toda vez que alguém me ver saberá o pecado cometido por ele e acobertado tão bem por vocês. - William discursou com clareza em sua mente, como nunca havia tido antes.

- Que assim seja.

Enquanto passava por Davilon ele sussurrou.

- Pelo menos não terei que ver o seu rosto nunca mais.