O som de pessoas andando e gritando no andar de baixo era algo comum para Clark, mas em dias como este ele sempre se irritava em dobro.
— Sério, qual a dessas pessoas? Já não me bastava os nobres desdenhando, agora aparece um bando de mercenário querendo quarto de última hora?
Reclama o rapaz enquanto anda lado a lado com Alina.
— Se acalma Clark, todo ano é assim, você sabe.
Diz a garota com um sorriso cansado.
— É, mas esse ano temos muita coisa para nos preocupar.
Eles param em frente ao quarto, Alina concorda com Clark, mas antes de abrir a porta ela se vira para ele
— Ainda assim, não adianta se estressar, vamos começar vendo com ele está.
A dupla abre a porta de forma lenta, na tentativa de fazer o menor barulho possível. Ao abrir a porta eles se deparam com o rapaz sentado na cama, próxima à janela, ele observa o cristal jade em seu cajado preto.
O rapaz vira o rosto para o grupo, sua expressão demonstra nitidamente confusão. Ele passa alguns segundos olhando para a dupla, após isso ele coloca a mão esquerda sobre a cabeça e fecha os olhos por um instante.
— Ha… Eu…
Ele começa a falar com uma voz leve que parecia seguir junto do vento.
— Onde eu estou? e… Qual meu nome?
Alina e Clark se olham e abrem um sorriso encostando a porta e seguem andando para dentro do quarto.
— Me chamo Alina e esse é Clark, nos te encontramos em uma caverna.
O rapaz ergue uma sobrancelha estranhando o que a garota diz, ele olha novamente para o cristal.
— Isso me é familiar… mas não consigo me lembrar de nada.
Clark olha para a escrivaninha onde uma jarra de água e copo haviam sido colocados.
— Vamos começar devagar, do que você se lembra?
Alina pergunta, enquanto Clark anda até a escrivaninha colocando água no copo e indo até o rapaz.
O mesmo aceita a água com um aceno de cabeça e olha para seu reflexo na água. Ele fica observando por alguns segundos e bebe a água.
— Eu me lembro de uma vila… depois um castelo e…
Ele para por um segundo, abaixando a cabeça e fechando os olhos, por fim ele suspira.
— Nada, não consigo lembrar nem o meu nome.
— Zefiro, ao menos foi o que Secilia disse.
Diz Olyver aparecendo na porta com uma bolsa de saco e um arco, os três se assustam com a aparição repentina.
Zefiro olha para o rapaz e murmura o seu próprio nome, ele desvia o olhar para o jade que reluz levemente.
— Mas me diz, como você fez aquilo? Destruir aquela criatura foi algo insano, seria necessário o poder de um cavaleiro de 4 Círculo para enfrentar ela ou um mago de 6 círculo para sumir com ela daquele jeito.
Olyver diz entrando no quarto e encostando a porta novamente.
— Criatura? Não me…
Zefiro para de falar no meio da frase tendo um vislumbre de Secilia o fazendo arregalar os olhos.
— O que foi?
Alina pergunta abaixando um pouco a cabeça para encarar o rapaz.
— Secilia… é a garota de cabelo preto? Eu… lembro de ouvir um sussurro e depois eu vi ela, e então acordei aqui.
Olyver anda até a escrivaninha e se encosta na mesma observando o cajado.
— Secilia estará ocupada até o meio dia, o duque vai realizar a cerimônia de início do festival, ouvi ele dizer para Rosaria que permitiria ela trazer Secilia aqui, mas ao que parece ele não está muito satisfeito com essa fuga, parece que o seu pai vai acompanhar a Secilia também.
Olyver termina a frase olhando para Alina com uma expressão zombeteira no rosto, Alina demonstra uma preocupação nítida, afinal, o pai dela é o Capitão da guarda da cidade.
— Dessa vez Secilia se meteu em uma baita encrenca, me impressiona o Duque deixar ela vir aqui.
Clark questiona e em seguida olha para Zefiro.
— Já que vamos ter o dia todo livre, o que acha de conhecer a cidade? — Alina concorda com Clark.
— Talvez Al saiba algo sobre o Zéfiro, afinal, quem mais sabe da história de Riou que "O Bibliotecário"?
Alina faz as aspas e todos soltam uma risada, porém Zefiro franze a sobrancelha e desvia a cabeça para o lado sem entender.
Em um instante um flash passa por sua cabeça, um grupo de 4 pessoas rindo ao redor de uma mesa de bar: Uma mulher de cabelos brancos e vestido azul com uma coroa prata, Um soldado com um kimono e ombreiras de metal, Uma mulher de cabelos marrons e vestido amarelo, Um homem de cabelos vermelhos com uma túnica verde e capa preta. O flash some e ele volta a olhar para as pessoas ainda confuso.
"Quem eles eram…?"
— Não é nada, o que achamos de ir agora?
Clark sorri sem saber diferenciar a confusão do rapaz colocando a mão no ombro de Zefiro que concorda com a cabeça, ele usa o cajado de apoio e se levanta.
— Acho melhor trocar essas roupas antes, estão bem detonadas.
Observa Alina, embora fossem roupas de viajante elas aparentavam estar detonadas.
— Tome, deixei algumas mudas de caçador prontas.
Diz Olyver colocando sua bolsa no chão e tirando uma muda de roupas e colocando sobre a cama.
— Quando terminar, desce as escadas à esquerda do corredor.
Alina diz enquanto puxa seus dois amigos para a porta.
Após ficar sozinho no quarto, Zefiro olha para as roupas e solta seu cajado, ele se move para pegar as roupas quando percebe que largou o cajado sem um suporte, ele se vira de forma impulsiva para segurar o cajado, mas o mesmo estava parado de forma reta.
— Certo, então eu me chamo Zéfiro e matei uma criatura estranha com isso?
Zefiro volta as roupas e se troca enquanto pensa sobre o que ele se lembra.
— Consigo me lembrar de uma vila perto de uma floresta… Um castelo com muros altos e brancos com bandeira vermelha com um símbolo de… Coroa preta com cristais?
Pensa terminando de se vestir, roupas simples de um caçador, camisa branca, jaqueta de couro verde, calça verde e botas de couro marrom.
— Me lembro de um colar de serpente… mas não vejo nenhum nas roupas, será se eu perdi ele em algum momento?
Ele suspira, andando em direção à porta, agarrando o cajado e seguindo para fora.
O salão principal da taverna se demonstra lotado assim que Zefiro chega ao último degrau. Pelo salão, vestido com uma calça verde, camisa branca e jaqueta verde, deixando alguns botões de cima da camisa abertos.
No local, diversos mercenários já estavam bebendo desde cedo, alguns apenas reunidos com mapas e pergaminhos sobre as mesas, e duas garotas passavam pelas mesas anotando e entregando pedidos.
— Você chegou! Vem comer alguma coisa antes de sair.
Zefiro vira para o lado ao ouvir a voz de Clark e abre um leve sorriso, andando até o balcão onde um simples café da manhã estava sobre a mesa.
— Quando terminar, Alina vai te levar para conhecer o bibliotecário.
Clark fala enquanto coloca um copo de água para o rapaz, Alina aparece se sentando em um banco ao lado do rapaz.
— Por que tem tantas pessoas aqui tão cedo?
O rapaz pergunta antes de começar a comer.
— É um festival, Kromblade, inicia amanhã e as pessoas começam a beber um dia antes.
Explica a garota.
— Mas como é um festival com torneio, vários mercenários se reúnem aqui para ganhar recompensas e até mesmo renome com os nobres e por esse ser o 500º festival um grande torneio foi marcado, a recompensa é bem grande, até mesmo se apenas se qualificar para as chaves, o duque vai explicar melhor na apresentação.
Clark explica, bebendo em uma caneca de madeira.
— Torneio e reconhecimento… parece que as pessoas gostam de dinheiro.
Zefiro diz, terminando sua comida e olhando em volta.
— E os mapas? Tem algum tesouro perdido?
Alina abre um sorriso ao ouvir o questionamento de Zéfiro.
— Algo assim, te explico melhor no bibliotecário.
A garota se levanta primeiro, e Zefiro logo após isso, ambos se despedem de Clark com um aceno e seguem para fora do local.
Assim como dentro da taverna, as ruas também se demonstram lotadas. Comerciantes com pequenas vendas de madeira e grupos de mercenários com cartas de papel em mãos a cerca de 10 metros da dupla. Zefiro os encara por um instante antes de Alina perceber.
— Não é educado encarar as pessoas, o que te chamou atenção?
Ela pergunta, olhando na mesma direção que o rapaz estava olhando.
— Existem criaturas por perto? E o que é um Nothic?
Alina cerra os olhos e encara o rapaz ao ouvir a pergunta dele.
— Você consegue ler isso desta distância?
Zefiro olha para a garota acenando em concordância, mesmo ele parecia surpreso com isso.
— O que será mais que eu consigo fazer?
Alina acena negativamente e indica a direção para Zefiro e segue andando.
Após alguns instantes, a dupla chega a um prédio em uma das ruas laterais da cidade, um local de pedra perfeitamente coladas com uma escadaria para uma porta dupla.
— Essa é a biblioteca? Parece mais um templo…
Zefiro observa, franzindo a sobrancelha e colocando a cabeça para o lado. Alina solta uma risada.
— O que foi?
Alina balança a cabeça e sobe os degraus.
— Quando a cidade foi fundada, ela não era tão grande. Isso aqui foi o primeiro templo, mas depois foi criado o setor do orfanato, o templo foi migrado para lá, então esse prédio foi usado como biblioteca desde então.
Alina segue explicando enquanto Zefiro a segue.
— Você sabe muito sobre a história local.
O rapaz observa enquanto entram na biblioteca, um local com 3 andares repletos de livros.
— Ela gosta de ler e livros novos são caros.
Diz um homem de barba branca com camisa azul e colete marrom.
— Prazer, me chamo Alastair Falk, você deve ser um mercenário?
Alastair estende a mão para Zéfiro com um sorriso simpático no rosto. Zefiro responde apertando a mão do homem.
— Me chamo Zefiro, não sou um mercenário e você deve ser o bibliotecário?
Alastair olha para Alina com um olhar crítico. A garota desvia o olhar para o chão e se lembra de algo, ela tira uma carta do bolso e estende para Alastair.
— O Duque pediu que te entregasse isso quando viesse.
O bibliotecário pega a carta e a abre, ele passa alguns segundos lendo a carta antes de a fechar.
— Me sigam.
O homem se vira seguindo em direção ao lado direito da biblioteca, a dupla se olha e segue o homem.
Eles andam até uma parte ao fundo da biblioteca onde havia um portão de metal gradeado, ele remove uma chave de seu bolso e o abre, fazendo o mesmo soltar um leve rangido antes de rolar para o lado, abrindo passagem para os dois.
— Uau, nunca entrei na seção interior.
Alina faz uma observação, seguindo para dentro do local junto de Zefiro.
— Apenas pessoas com permissão do Duque podem entrar nessa área. Na carta, ele disse que deveria mostrar a vocês informações especiais sobre a fundação de Riou.
Zefiro franze a sobrancelha e olha para o homem que, após entrar, seguia em direção a uma prateleira.
— Por que da fundação?
Questiona o rapaz se aproximando do homem.
— O herói é uma lenda de antes da fundação de Riou.
O homem começa a falar, colocando um grande livro de capa marrom sobre a mesa, nele algumas ilustrações eram visíveis.
— Durante a guerra dos corruptos, o último rei do norte junto da família real de Aldena lideraram a guerra. Eles tiveram dificuldades em diversos frontes, um dia o herói apareceu, tudo o que sabemos é que ele usava uma lança e se movia pelos céus como um celestial.
O homem demonstra imagens representando o combate, ele vira a página para uma com a estátua do centro da cidade.
— E depois a história se perdeu, as pessoas não sabem exatamente o porquê, mas um dia ele e o exército de corruptores desapareceram como se nunca tivessem existido. Tudo o que ficou para trás foi sua primeira aparição e a vitória dos reinos sobre o feiticeiro que trouxe os corruptores. Isso foi há mais de quinhentos anos… É claro, existe mais um registro especial sobre ele, no livro dos duques, mas não tenho acesso a ele. Tudo o que sei é que foi um pedido do Herói.
Zefiro franze a sobrancelha e coloca a cabeça para o lado novamente, fazendo Alina soltar uma leve risada.
— Um pedido do herói?
O bibliotecário aponta para uma página onde mostra um desenho sem rosto do herói.
— Ele pediu que sua imagem fosse apagada, esquecida por todos, pediu também que nunca se esquecessem das pessoas comuns que morreram na guerra e do que causou isso, o feiticeiro e os corruptores.
— Então ele matou o Feiticeiro e isso fez os corruptores desaparecerem e depois pediu para ser esquecido? E o que é um corruptor?
Alastair abre um sorriso, ele anda até a prateleira novamente e volta com um bestiário de cor preta, o abrindo onde um marcador verde se encontrava.
— Corruptores são criaturas que vieram de um plano diferente, eles não são nem demônios nem aberrações, são algo diferente. Eles modificam tudo que tocam fazendo eles enlouquecerem e atacar todos os que amam. Se quiser saber mais é melhor perguntar para algum mago que estude isso, mas recomendo que leia um pouco mais sobre a história da cidade, talvez algo te chame a atenção.
No livro, Zefiro pode ver imagens de alguns aberrantes da época, seres grotescos com massas de pus verde que se formavam por toda parte.
Alina observa a conversa dos dois em silêncio, percebendo a expressão curiosa de Zefiro.
— Pode nos deixar a sós um momento, Alastair?
Pede Alina, e o homem sorri, andando para a porta.
— Ao menos agora você usou meu nome, não esqueça de trancar a porta quando saírem. Alina deve conseguir te guiar nas pesquisas agora.
Após o homem sair, Alina olha para o livro ao lado de Zefiro.
— Isso te fez lembrar alguma coisa, não é?
Zefiro concorda com a cabeça, passando a mão sobre um corruptor no livro.
— Eu me lembro dessas coisas, eles atacavam tudo que se movia…
Ele para por um instante, folheando o livro, alguns flashes da guerra passam em sua mente como uma foto queimada.
— E quanto ao feiticeiro? Você se lembra de algo?
Zefiro se apoia no cotovelo direito, esfregando a lateral dos olhos com os dedos.
Embora grande parte parecesse um borrão turvo ou vazio, ele vê um pequeno flash nítido: O topo de uma montanha, o vento passando por suas roupas rasgadas enquanto ele sente seu corpo fraquejar e ouve sua própria voz dizer "Esse é meu limite… Mas ainda tem um último trabalho a fazer…" A memória se torna turva novamente e desaparece.
— Talvez se encontrarmos mais alguma coisa?
Alina pergunta ao ver o rapaz em silêncio por um tempo, mas o rapaz nega, fechando o livro.
— Não acho que isso aqui vai ajudar muito mais. Eu consegui me lembrar de uma coisa… o topo da montanha. Além disso, sabemos que o Herói desapareceu antes da cidade ser fundada, então nada aqui deve ajudar, mas talvez...
— O topo do descanso do herói, onde a cerimônia anual acontece, algo lá deve te ajudar a se lembrar.
Alina continua a frase de Zefiro.
— Então preciso ir até o topo…
Alina anda um pouco pensativa.
— Mas… e na academia Nalfir? Alastair disse que os magos estudam os corruptores, eles devem saber alguma coisa sobre a guerra, talvez mais do que os registros históricos.
Zéfiro ouve a frase de Alina e ergue o rosto a olhando.
— Esse nome, ele me lembra de algo…
Alina sorri ao ver o rapaz a olhar com dúvida.
— Você tem um cajado, talvez foi um mago antes de ser um Herói lendário, mas se pretende ir pra lá… Você precisa de dinheiro e indicações.
Zefiro solta uma risada ao ouvir ela falar isso.
— Vamos voltar? Clark disse que o Duque ia fazer a abertura do festival ao entardecer, então vamos ver se ele e Olyver têm alguma ideia a mais.
Zefiro fecha o livro com um sorriso no rosto e se vira para a saída, a garota sorri vendo que o garoto parecia estar começando a acordar.