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Filhos das Ruínas

🇵🇹pattsemedo
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Synopsis

Chapter 1 - CAPÍTULO 1 - IMOGEN

Possivelmente, morrerei em breve. Não é bem uma certeza, mas uma possibilidade. Embora esse pensamento pudesse amedrontar muitos, se se encontrassem no meu lugar, estou completamente extasiada. Sempre agi conforme a lógica. Sempre fui boa a distinguir sentimentos de pensamentos, uma mais-valia para a minha vida. Como se costuma dizer… claramente, ainda que eu própria não me reveja nesse registo. Por essa mesma razão, sinto esse momento a chegar cada vez mais rápido. Um destes dias, terei de deixar de fugir e confrontar-me com o meu destino. Porém, até lá, tento escapar da melhor forma. 

A razão por que cresci desta forma, sempre à espera de que a morte me encontrasse ao virar da esquina, é uma consequência directa do mundo actual, que já não se assemelha a nada do que outrora foi. Quando eles ascenderam aos lugares de poder, ninguém imaginou que um dia a humanidade fosse ser empurrada até à beira do precipício, que seríamos obrigados a retornar a um estado mais primitivo. Por esse motivo, a cidade à minha frente é bonita. Mesmo de noite, é possível ver tudo ao pormenor. As ruínas exibem uma beleza que encaixaria na perfeição num postal, se houvesse forma de alterar a parte mórbida da paisagem. É a imagem perfeita da realidade que é, actualmente, a nova condição humana. 

Com os pés à beira do edifício, num esforço para me manter em equilíbrio, sou assolada pela adrenalina a percorrer-me as veias. Um frenesim recebido com agrado e entusiasmo. 

De certo modo, sempre houve algo a chamar-me para este lugar. Não há muitas pessoas que conheçam os caminhos que me trazem até aqui, mas também não há muitos que se atrevam a chegar perto das barreiras seguras da Cidadela. Resto, somente, eu. Aqui, sou capaz de sentir empatia com tudo o que está destruído e que me rodeia.

Quando o início do fim chegou, ninguém estava preparado. Ninguém acreditava no Apocalipse, até este estar a acontecer. Talvez esteja a exagerar um pouco, mas o que aconteceu assemelhou-se muito a isso. 

Após a Grande Guerra, não ficaram nada mais que restos do que outrora formou as nações. Restaram pessoas quebradas, outras doentes, outras loucas; lugares sujos e sem vida; a esperança morta. Houve quem se revoltasse, quem tentasse trazer novamente o poder para as mãos do povo, para que pudéssemos escolher o melhor destino para nós, mas em vão. Na última vaga, morreram milhares. Desde então, o povo conformou-se a viver no que já não era uma civilização, sob as ordens de um Estado que de democrático não tem nada. 

A Muralha separa a Cidadela das Ruínas. Aqueles menos afortunados, que foram banidos dos luxos e expropriados pelo Presidente, em nome do Estado, dos que têm direito a tudo por alguma categorização parva e sem sentido. Talvez isso tivesse servido um bom propósito… se fosse esse o único problema na nossa sociedade.

 Passos ruidosos despertam-me dos meus pensamentos. Como uma bofetada da realidade, recordo-me do que realmente estou ali a fazer. Eles estão perto, por isso inspiro fundo, desço do parapeito e ponho-me em posição.

 Entram disparados no terraço, o seu peito a subir e a descer aceleradamente. Sinceramente, nunca entendi porque insistem em manter essa charada. Todos sabem que os kakois – como se chamam, na gíria das ruas – não sentem fadiga. O seu corpo é, aparentemente, igual ao de um homem comum, porém, não precisam de manter uma sustentabilidade tão complexa.

Observo ambos. O mais alto é loiro e tem algo que realmente me assusta. O seu olhar é o de um predador quando percebe que tem a presa encurralada. Já o outro, muito mais baixo e moreno, tem um ar juvenil. À primeira vista, são iguais aos outros todos. Contudo, quando se olha melhor, notam-se pequenas coisas que mostram o que realmente são – homens manipulados em laboratório. Nenhuma pessoa seria capaz de subir cinco lanços de escadas sem deitar uma única gota de suor, ou exibir o mínimo sinal de cansaço. Além disso, ambos têm um brilho especial, quase sobrenatural. Aparência perfeita, corpos em forma e prontos a lutar. 

Porém, o mais identificável são os olhos. Todos os kakoi têm olhos pretos. Não castanhos muito escuros, mas pretos, onde é impossível distinguir a íris da pupila. Sou capaz de os reconhecer em qualquer lado, pois os meus são exactamente iguais.

O loiro alto avança na minha direcção, aumentando ainda mais a adrenalina no meu corpo.

– Hoje é o nosso dia de sorte – diz, com um sorriso empertigado no rosto. – Quando nos avisaram que te tinham avistado pensei que fosse mais uma mentira. Até me sinto a tremer por estar na presença da "grande" Imogen. Sabias que o teu nome está espalhado nas ruas? És a maior fugitiva do Estado. 

Luto contra a minha raiva devido às suas palavras irónicas. Não há qualquer orgulho no que ele acaba de dizer, e tem perfeita noção do mesmo. O meu rosto preenche as ruas da Cidadela em cartazes com um pedido de captura. Isso é algo que tem dificultado a minha vida em muitos aspectos, é certo.

– Que achas de aceitares vir connosco, pacificamente?

– Vão ter de lutar comigo até à morte. Ah, espera. Vocês não me podem matar. – O loiro torce o nariz, visto que o que digo é verdade. – Acho que vou arriscar.

– Acredita, querida, nada me dará mais gozo e satisfação do que fazer-te sangrar.

– Quero ver-te tentar, grandalhão. 

Ele dá mais um passo em frente. No seu rosto é visível a sede de matar a espoletar. Essa é uma característica muito particular dos kakois – a necessidade de matar, por vezes apenas por desporto. Por breves momentos, enojo-me com o pensamento, sabendo que isso pode acontecer. Eu própria, muitas vezes, tenho de lidar com essa emergência que surge dentro de mim. Mas, para mim é mais fácil. Nunca me deixei impregnar daquele mundo tanto quanto os dois que estão à minha frente. 

– Tu realmente achas que tens muita coragem, não é? – Dá um passo na minha direcção.

O moreno, no entanto, interpõe-se entre nós. – Senhor, o Presidente vai querê-la viva e intacta.

– Senhor? – Deixo o choque levar a melhor. – Quem és tu, grandalhão?

Ele ergue o peito e fala num tom, claramente, orgulhoso. – Amriel.

– Amriel, o general do exército kakoi? – Sei bem quem ele é. De nome, pelo menos. Até agora, ainda não tinha tido a oportunidade – ou a infelicidade – de o conhecer pessoalmente. O seu nome também percorre as ruas, mas em tom de louvor, por todo o seu trabalho e entrega ao Estado. 

– Bem, começo a sentir-me importante. 

– Tens sido difícil de capturar, querida.

– Sabes o que dizem. – Num gesto fugaz, encolho os ombros. – Apaixonei-me, fiz planos para fugir com o rapaz, mas ele deixou-me porque sou parecida convosco. Então vim para aqui, para longe de todos, com o objectivo de me suicidar. Drama de miúda, acho que conseguem imaginar. 

Amriel faz um esgar. – Achas que tens piada.

– Gosto de pensar que sou sarcasticamente engraçada, sim. 

– O tempo para piadas acabou. – Dito isto, faz sinal ao seu parceiro.

O moreno não espera por mais conversas. De espada na mão, investe contra mim. Há nele algo de inocente, despreparado. Essa primeira impressão mostra-se verdadeira quando perde o equilíbrio ao ver-me retirar a espada que tenho prendida nas costas. Luta como um novato. A própria arma é maior do que ele.

 Na minha mente, lamento de antemão a sua morte.

O rapaz tem mais ou menos a minha altura – um metro e setenta e cinco – embora possua uma constituição muito mais larga. Porém, o que tem em peso não tem em cérebro. Move-se rapidamente, mas não o suficiente para conseguir acompanhar-me. Sem qualquer dificuldade, consigo acertar-lhe no pulso que empunha a espada fazendo-o perder parte da força. Primeiro erro.

Mesmo ferido, ele não pára. Continua a investir, com o mesmo ritmo, os mesmos movimentos. Repetidamente. Poucos segundos depois, já sou capaz de reconhecer o seu esquema de luta. Isso possibilita-me, sem esforço, que consiga defender-me de todas as investidas. Segundo erro.

Depois disso, a luta não dura muito. Sangrando cada vez mais, ele continua sem recuar, mas já com as forças a escaparem. De certa forma, essa atitude é de louvar. Contudo, para mim, já não é difícil fazê-lo perder a espada e arremeter contra o seu estômago. Vejo-o cair no chão e abraçar a sua barriga a fim de tentar impedir a hemorragia. Mas é tarde de mais. Sangue preto cobre-me a espada. Com uma pontada muito ínfima de remorso, dou-lhe, por fim, o último golpe no coração para acabar com o sofrimento o mais rápido possível.

– Agora põem crianças a lutar? – É o único pensamento que consigo formar ao ver o corpo do rapaz no chão. Sangue preto espalha-se em volta dele.

Amriel limita-se a encolher os ombros. Olhando-o assim, com calma e com a luz natural da lua a bater-lhe no rosto, quase sou capaz de ver o homem em que se teria tornado, se não tivesse sido apanhado pelo Estado. 

Por momentos, esse pensamento entristece-me. É sabido nas ruas que nem todos os que fazem parte do exército kakoi pertencem ao Estado, seja por vontade própria ou não. É inevitável que isso aconteça. Quem nasce com os olhos escuros é levado em criança para o Quartel para se tornar no que vejo diante de mim, e no que vejo todos os dias, quando me olho a um espelho.

Há quem diga que estão a reunir um novo exército para se tornarem a grande potência das únicas três que sobreviveram à Grande Guerra. No entanto, há quem especule também que é para nossa segurança. A verdade é que ninguém sabe ao certo o que acontece lá desde o momento em que a criança é levada até ao dia em que volta para a Cidadela. Qualquer um que de lá tenha saído vivo não se encontra mais do lado do povo para explicar, mas sim do lado deles. Qualquer um, menos eu. 

– A morte dele está nas tuas mãos, Imogen. Podias ter-te rendido logo, e poupavas-nos todo este trabalho.

Um pico de fúria desperta em mim. Sem aviso, as minhas pernas movem-se em direcção ao kakoi enquanto um grito me sai pela garganta. Amriel recebe o ataque com a maior rapidez e subtileza. Claramente, já estava à espera. A sua intenção é mesmo essa. O outro era um novato, ele não. Sabe o que está a fazer e como o fazer. Consegue amparar todos os meus ataques, sem mostrar o mais ínfimo esforço. 

Com a energia a esvair-se mais rapidamente do corpo, preciso de arranjar alternativas para fugir. Amriel é demasiado forte para que consiga vencê-lo. Antes mesmo de conseguir acabar esse pensamento, ele atira-me para o chão, caindo sobre mim com o intuito de me prender. A lâmina fria e afiada encostada ao meu pescoço.

– Devias ter desistido quando te dei a oportunidade – diz-me, ferozmente.

– Não me importo de morrer.

– Antes disso, ainda vais sofrer muito, muito devagar.

Em vão tento debater-me. Com mais de um metro e noventa e cinco e cerca de noventa quilos, não se torna muito difícil conseguir imobilizar-me pelo tempo desejado. Sinto-me como um mosquito sob a sua força bruta. 

– Se encarares isto como o teu destino tornar-se-á mais fácil para ti – avisa. Os seus olhos pretos, grandes, fixos em mim.

Mantém-te calma. Pensa estrategicamente. 

O primeiro passo é deixá-lo acreditar que estou submissa. Deixá-lo pensar que aceito a derrota e que tem onde me quer. Sem luta da minha parte, ele deduz que não há perigo de fuga e sai de cima de mim. Depois, puxa-me para cima, sempre com a lâmina a fazer-me pressão na garganta, a fim de me imobilizar prendendo-me os pulsos.

O segundo passo passa por distraí-lo. Fazer com que não se aperceba do que tenciono fazer. Decido então tentar recolher algumas informações. 

– Qual é o plano? Levares-me ao Presidente e sangrarem-me até à morte? – questiono-o. Por momentos, Amriel, que se aproximou do corpo do colega para confirmar se realmente está morto, pára para olhar para mim. – Parece-me que em todas as hipóteses que tenho acabo morta. 

– O que ele tenciona fazer contigo não faz parte das minhas funções.

– Tudo porquê? Por ter fugido do Quartel, por não desejar tornar-me no que tu és agora?

– E o que sou?

– Uma marioneta do Estado.

Amriel solta uma gargalhada.

– Todos temos um destino a cumprir – diz-me. – O nosso é este. Só tens de aceitar, querida. 

Quando torna a virar costas, não espero por outra oportunidade nem mais um segundo. Lentamente, encaminho-me para perto do parapeito. Ele está tão absorto a enunciar as últimas palavras ao seu companheiro que nem dá pela distância que vou criando entre nós. 

– Eu, realmente, detesto que me chamem querida – solto bem alto.

Terceiro erro. 

Antes de ele perceber o que está para acontecer, respiro fundo. E salto.