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Entre a foz e a Nascente

🇧🇷Daoist5Xia2n
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Synopsis
Narciso é um trabalhador pejotizado tentando sobreviver na sede do funcionalismo público. A rotina extenuante aos poucos agrava seu quadro de saúde mental e exaure seu relacionamento com a realidade à sua volta. Numa vernissage, ele conhece um casal de amigos que mudará sua vida. Obra completa: https://www.amazon.com.br/-/pt/dp/B0CLJ1DX24?ref_=ast_author_mpb
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Chapter 1 - Casca de Jacarandá

Tem algo dentro de mim que não consigo nomear. Tem algo dentro de mim que não sou capaz de representar. Existe uma angústia, uma ansiedade grávida, gestando algo que procuro as palavras certas pra descrever. Sei que não sou o único carregando esse embrião de incertezas pra todo lugar que vou. Não posso ser. Tudo mudou tanto. Tudo mudou tão rápido. Acho que não conheço mais ninguém de verdade. Desconfio que nada disso seja verdade. No início parecia tudo tão simples, parecia que qualquer um poderia fazer. Ao meu redor estão rostos cansados. O meu rosto refletido no vidro está cansado. Não, não deve ser projeção. As pessoas parecem cansadas. Não, não parecem cansadas apenas por esse ser o último metrô dessa linha a circular hoje, tem algo a mais por trás de todo esse esgotamento. Sim, as pessoas estão esgotadas. Um esgotamento completo. Tão completo, uma exaustão tão final, que é como se tivessem sido sufocadas por tanto tempo que já não conseguissem se contorcer ao buscar por ar. Acabou? É isso? Fomos derrotados e condenados e esperar por uma execução de pena capital que ainda não decidiram exatamente qual? O calor certamente já está levando muitos. Recém-nascidos, idosos, animais selvagens ou não. Difícil dizer até quando se pode resistir a isso. A fome, a inflação, o subemprego, o desemprego, o suicídio. Tudo parecia tão simples antes, tão corriqueiro, tão trivial. O tempo acabou. O tempo escorreu por entre os dedos e só o que restou foi esse rosto cansado, refletindo mais do que sei nomear. Disseram que esses seriam os melhores anos das nossas vidas. Disseram que a vida começa depois dos trinta. Perdão, dos quarenta. Ou, até quando der pra empurrar o cume de uma montanha às avessas. A cada mês que passa, meu salário enche menos o carrinho no mercado. A cada mês que passa, aumenta o peso da conta de energia, mesmo eu não tendo comprado nada de novo. A cada dia fica mais claro que não vou a lugar nenhum, não adianta mais tentar me contorcer. As amarras definem o que posso fazer. E o que posso fazer é só gerar calor desperdiçado. O que faço é me esforçar mais e mais para receber cada vez menos. Por que estou fazendo isso? Até quando vou seguir fazendo isso? É difícil dizer qual é maior entre a ansiedade e a desesperança. Algo se perdeu. Alguma coisa muito importante se perdeu por detrás de todos os rostos esgotados.

Será que todos percebem a futilidade dos seus esforços? Será que décadas de tentativas frustradas de conquistar "um futuro melhor" estão hoje estampadas na nossa cara? E pra quê? Pra quem? O que explica essa disparidade entre os rostos exaustos que se assomam ao meu redor e o semblante sorridente da garota na imagem que extrapola da tela brilhosa do celular de um corpo sonolento que se equilibra com dificuldade ao meu lado? Será que ele não repara que nunca vai conseguir alcançar a cenoura atada ao fio que pende da vara?

A verdade é que não queria, não queria estar nessa situação. Não queria ter que encurtar a duração de uma noite agradável porque o metrô ia fechar e porque tenho que estar cedo no escritório amanhã. Por que a cidade é projetada pra que apenas donos de carros exerçam o direito de ir e vir quando querem? Por que um carro é tão caro? Não consigo angariar dinheiro suficiente para comprar um videogame que me ajude a tirar a mente da crescente falta de propósito que vejo refletida no vidro imediatamente à minha frente, como vou conseguir comprar um carro? É isso? Estou condenado a viver desejando aquilo que não posso ter apenas por ter nascido no lugar errado? Ou será, será que está aí o problema? Desejar. Sidarta disse que o desejo é a raiz de todo o sofrimento. Estou sofrendo agora porque desejava ter ido pro apartamento com Cassandra? Estou sofrendo agora porque sei que desejo estar com ela? Desejo estar com ela mas sei que não tenho nada a oferecer e por isso desejo ter mais do que consigo?

Talvez não sejam as coisas que eu deseje. Talvez o que eu realmente deseje seja companhia. Talvez o que realmente deseje seja respeito, admiração. Só posso ser admirado se tiver coisas que os outros desejam ter? Só posso ser respeitado se viajar a lugares que outros gostariam de estar? O que desejo, na verdade, é a capacidade de instigar desejo nos outros e assim aumentar seu sofrimento? Eu não sei o que desejo. Não sei se posso desejar nada. 

Não, não acho que me seja aconselhável desejar o que seja. Através de uma tela, sou constantemente inundado, sobrecarregado de objetos de desejo. Do lado de cá da tela, me é negado qualquer possibilidade de saciar o que desejo. Ao meu redor, a realidade se mostra cada vez menos desejável. Cercado de violência, doença, pobreza, morte, calor e plástico; um plástico que vai durar muito mais tempo do que meus ossos exumados. O palco do teatro do desejo na tela não encontra similar na realidade. O filtro entre o rosto da influenciadora e a tela é mais real que seu sorriso. Será que o rapaz que se esforça pra encontrar seu centro de gravidade também enxerga isso? Será que ele sabe de tudo isso e, deliberadamente, troca a realidade a sua volta pela irrealidade da tela simplesmente por não suportar o que vê ao seu redor? Qual é o objetivo de coletar dados e exibir anúncios para quem não pode consumir, apenas desejar? Será que quem pode consumir o faz apenas porque acredita que os outros desejam aquilo que ele consome? Não sei, não saberia dizer. Nunca estive nessa posição antes. A posição que estou hoje é a mesma que estava ontem. A posição em que me encontro é a mesma em que sempre estive.

Não, não é isso. A posição é a mesma, apenas a ilusão da paralaxe desapareceu. A ilusão da progressão, da evolução em direção a um futuro. Quando criança, acreditava que existiria um futuro e eu seria capaz de conquistar esse futuro. Acreditava que, com esforço e sacrifício, qualquer coisa seria possível. Acreditava que era possível alcançar o que se desejava. Desconhecia a dimensão das forças que estavam colocadas para me manter sempre no mesmo lugar, desperdiçando minhas forças, acreditando estar me aproximando dos meus sonhos, ou desejos. Era ingênuo, demasiadamente ingênuo.

Hoje, tenho decorado o circuito diário que preciso percorrer entre a casa e o trabalho e de volta outra vez, seis dias por semana. Um rato de laboratório pode ter uma rotina mais interessante decifrando diferentes labirintos. Ao menos o camundongo não precisa redigir relatórios que ninguém vai se importar de ler um dia após o anterior. Para onde vão esses relatórios? Os clientes certamente não leem os relatórios, eles se acumulam na memória persistente de seus computadores e só são mencionados quando alguma coisa dá errado. Mas raramente algo dá errado. Pra dar errado, alguém precisa estar prestando atenção, alguém precisa estar procurando uma falha. Sim, até mesmo um camundongo confinado pode ter uma vida feliz, especialmente quando não enxerga as grades que o restringem. Ninguém está prestando atenção. As bibliotecas estão todas desatualizadas. Talvez o mundo pareça muito maior e interessante para um rato, ainda que seja um rato de laboratório. Talvez esteja esperando o momento que uma serpente albina irá me engolir.

Será isso? Estou apenas esperando o dia que vou ser removido desse circuito? Estou aguardando o instante que serei surpreendido por um assaltante que irá disparar, surpreendido com a minha inútil resistência? Há uns dias atrás, presenciei uma sequência de clarões e escutei disparos ao lado do prédio onde moro. Observei tudo da janela e tive vontade de descer pra ver de perto, não por curiosidade, mas pra saber se havia alguma bala com o meu nome. O rato procura o queijo ao final do labirinto. Estou andando em círculos. Estou de pé, parado, encarando meu reflexo no vidro do metrô e me perguntando se o rapaz ao meu lado ainda está acordado. Quero enviar uma mensagem pra ela. Odeio escrever no teclado da tela do aplicativo. Pior seria enviar áudio. Pior ainda seria enviar áudio em um lugar público. Já está tarde, não quero parecer estar desesperado. Acho que está escrito na minha cara que estou desesperado. E se ela só me deu o número porque sabia que eu pegaria o contato do irmão e talvez tentasse pedir pra ele o seu contato? Ela deve estar rindo da possibilidade de eu querer tentar alguma coisa com ela. Nossa, não era mesmo uma piada quando disse que não tinha nenhuma autoestima. Como posso ter alguma autoestima quando moro quase que de favor no apartamento de um colega de faculdade? Com o salário que recebo mal consigo subsistir e pagar as contas de energia e condomínio. Seria impossível sobreviver e pagar um lugar pra morar sozinho. Desejo. Por que insisto em desejar aquilo que sei que não posso ter? O que uma garota bonita e bem de vida iria querer com alguém que não passa de uma casca quebradiça de ser humano no fim do dia? O que ela poderia querer com alguém que guarda metade da marmita do almoço na geladeira pra esquentar no micro-ondas no dia seguinte? O que eu poderia querer com uma garota que provavelmente vai me olhar com a repulsa de quem pisa sem querer sobre uma barata ao caminhar numa calçada? Não, não vou enviar mensagem agora, nem amanhã, nem dia nenhum por assim dizer. Preciso aprender a não querer.

Mas, se já estou conformado, resignado a não desejar aquilo que não posso ter, então, por que seguir percorrendo o circuito? Por inércia? Por não ter escolha? Sempre me intriga a ironia de viver cercado de defensores da liberdade individual quando a realidade não nos dá nenhuma escolha. Sempre me surpreende a capacidade que eles têm de nos convencer a seguir caminhando como no paradoxo de Zenão, seguindo sempre em frente sem nunca alcançarmos o final desse cul-de-sac. 

Será por medo? Da covardia que é gestada na ignorância de não se saber ao certo o que vem em seguida? Resta então sufocar lentamente com a fumaça dos pequenos focos de incêndio pelo caminho? Cada um desses focos individuais que queima sozinho, simultaneamente aqui nesse vagão. O crepitar dos estalidos ecoa como gritos de socorro sufocados em vidas que ardem lentamente, pouco a pouco a cada dia, e viram fuligem de queima de expansão. Queimamos nossas vidas individualmente, sem saber para que serve o sacrifício de quem impede que o fogo se alastre. A quem impedimos que o fogo atinja? Aos que nos ensinam a ansiar por água sem nunca nos permitir saciar a sede? Àqueles dispostos a incinerar tudo a sua volta desde que sejam os últimos a ver o mundo queimar? Quais sementes germinam à custa de nossos incêndios recorrentes e periódicos?

Não, não é exatamente medo. A maioria das pessoas pularia da janela de um arranha-céu em chamas. Talvez seja curiosidade. Sim, a curiosidade de assistir como essa lenta decadência irá se desenrolar. Ou será que não levará tanto tempo? Acredito que eu não seja o único nesse vagão a preferir um cataclisma súbito. Um alívio instantâneo pra esse esgotamento geral. Um meteoro, uma invasão alienígena, uma bomba atômica caindo como uma bigorna sobre nossas cabeças. Um fim pra esse lento e arrastado padecer. Um fim rápido, uniforme, democrático. Um fim para essa seca que nos envolve e nos cerca. Essa seca que nos define, nos delimita, nos obriga a poupar saliva. Nos deixa monossilábicos, isso quando ainda somos capazes de dizer "bom dia". Essa seca que nos curva e nos dobra e nos contorce. Crescemos tortos, desafiando o sol e resistindo às queimadas do dia a dia. A seca define nossas fronteiras. Nos ensina até onde podemos crescer. E insistimos em acreditar que ainda podemos crescer. Curvados, com os pés fincados na terra vermelha. Resistindo, como masoquistas sedentos, esperando esparsas gotas de chuva. Economizando saliva enquanto nossos lábios acumulam rachaduras. E a grama do condomínio esverdeia.