Quando finalmente decidiram parar, Sunny estava à beira de desmaiar. Depois de horas e horas atravessando a áspera encosta da montanha, seu corpo estava quase no limite. Contudo, para a surpresa de todos, Ardiloso parecia estar ainda pior do que ele.
Os olhos do escravo trapaceiro estavam turvos e sem foco, vagando sem rumo. Sua respiração estava áspera e rasa, como se algo estivesse exercendo pressão sobre seus pulmões. Ele parecia febril e doente.
Assim que Herói encontrou um lugar adequado para acampamento, Ardiloso simplesmente desabou no chão. O mais inquietante em toda a situação era a ausência dos palavrões enfurecidos aos quais eles já se acostumaram. O escravo jazia silencioso e imóvel, com apenas os movimentos de seu peito denunciando que ainda estava vivo. Alguns momentos depois, ele destampou seu caneco com uma mão tremendo e bebeu alguns goles grandes com voracidade.
"Economize sua água," disse Herói, um toque de preocupação encontrando seu caminho em sua voz normalmente estoica.
Ignorando estas palavras, Ardiloso bebeu mais, esvaziando completamente o caneco.
Acadêmico não parecia muito melhor que ele. A difícil subida cobrou um preço pesado do escravo mais velho. Apesar do frio insuportável, ele estava suado, com os olhos injetados e uma expressão séria no rosto.
Sendo o mais fraco dos três, Sunny de alguma forma conseguiu suportar o melhor.
"Não podemos simplesmente derreter a neve quando não houver mais água?"
Herói deu a Acadêmico um olhar complicado.
"Chegará um momento em que não poderemos fazer fogo, para não atrair atenção indesejada."
Ninguém comentou, cientes perfeitamente bem de cuja atenção eles precisavam evitar. A memória do horror do Rei da Montanha ainda estava fresca em suas mentes.
Por sorte, hoje Herói conseguiu encontrar um alvéolo natural na parede da montanha, escondido precariamente atrás de uma saliência estreita. O fogo estava bem escondido pelas pedras, permitindo que eles desfrutassem de seu calor sem o medo de serem notados. Ninguém estava no clima para falar, então apenas grelharam fatias de carne de boi acima das chamas e comeram em silêncio.
Quando o céu já havia ficado completamente escuro, Ardiloso e Acadêmico já estavam dormindo, perdidos no transe de seus próprios pesadelos. Herói pegou sua espada e se moveu para a borda da saliência de pedra.
"Tente descansar também. Eu assumirei o primeiro turno de guarda."
Sunny assentiu e se deitou perto do fogo, exausto. Adormecer dentro de um sonho era uma experiência nova para ele, mas, inesperadamente, acabou sendo bastante comum. Assim que sua cabeça tocou o chão, sua consciência escorregou para a escuridão.
Após o que pareceram apenas alguns segundos, alguém o despertou suavemente. Atordoado e desorientado, Sunny piscou algumas vezes, finalmente notando Herói pairando sobre ele.
"Estes dois não pareceram muito bem, então é melhor deixá-los ter tempo para se recuperarem. Não deixe as chamas se apagarem e nos acorde assim que o sol começar a nascer. Ou se... se a criatura aparecer."
Sunny silenciosamente se levantou e trocou de lugar com Herói, que colocou mais alguns troncos no fogo e logo estava profundamente adormecido.
Por algumas horas, ele estava sozinho.
O céu estava negro, com estrelas tênues e uma lua crescente afiada recém-nascida. Entretanto, sua luz não foi suficiente para perfurar a escuridão que envolvia a montanha. Apenas os olhos de Sunny pareciam ser capazes de fazer isso.
Ele se sentou quieto, olhando para baixo pelo caminho que eles vieram. Apesar do fato de terem conseguido subir bastante durante o dia anterior, ele ainda podia ver a fita distante da estrada. Ele podia até traçá-la de volta à plataforma de pedra onde a luta contra o tirano aconteceu.
Os pontos minúsculos espalhados pelas pedras eram os corpos mortos dos escravos.
Enquanto os observava, uma figura escura rastejou lentamente na plataforma de debaixo do penhasco. Permaneceu imóvel por um tempo e depois se moveu para a frente, arrastando suas garras contra o chão. Toda vez que uma garra atingia um dos corpos, o tirano agarrava-o e o levava à sua boca.
O vento trouxe os sons abafados de ossos sendo mastigados aos ouvidos de Sunny. Ele estremeceu, acidentalmente empurrando uma pequena pedra fora da saliência. Ela caiu, atingiu a encosta e então desceu, fazendo com que mais algumas seguissem.
O barulho dessas pedras caindo soou como trovões na noite silenciosa.
Lá embaixo, o tirano de repente virou sua cabeça, olhando diretamente para Sunny.
Sunny congelou, petrificado. Ele estava com medo de fazer até o menor som. Por um tempo, ele até esqueceu de respirar. O tirano estava olhando diretamente para ele, sem fazer nada.
Alguns segundos torturantes se passaram, cada um parecendo uma eternidade. Então o tirano se virou calmamente e continuou a devorar os escravos mortos, como se não tivesse visto Sunny de maneira alguma.
'Ele é cego,' Sunny de repente entendeu.
Ele inalou, observando o Rei da Montanha de olhos arregalados. Era verdade. A criatura não podia ver.
Olhando para trás em tudo que aconteceu, ele ficou cada vez mais certo de sua suposição. Aqueles olhos leitosos e inexpressivos. Pensando bem, ele nunca viu o tirano movê-los de jeito algum. E quando Sunny estava empurrando o vagão do penhasco, o tirano só reagiu depois que o vagão começou a cair, raspando alto contra as pedras.
Claro! Tudo estava fazendo sentido agora.
***
Ao romper da aurora, Sunny acordou os outros. Herói esperava que uma noite inteira de descanso fizesse bem para Ardiloso e Acadêmico, mas seus esperanças foram frustradas. De alguma forma, os dois escravos pareciam ainda piores do que antes. Era como se a escalada do dia anterior tivesse exigido demais de Acadêmico.
Contudo, a condição de Ardiloso não podia ser explicada por mera exaustão. Ele estava mortalmente pálido e trêmulo, com olhos semi-conscientes e um olhar perdido no rosto.
"O que há de errado com ele?"
Acadêmico, que também não estava muito bem, balançou a cabeça impotente.
"Pode ser o mal da montanha. Afeta diferentes pessoas de maneiras diferentes."
Sua voz soava rascante e fraca.
"Estou bem, seus idiotas. Saiam da minha frente."
Ardiloso teve problemas para formar frases completas, mas ainda insistia que estava bem.
Herói franzu o rosto e então pegou a maioria dos suprimentos que o escravo desafiante deveria carregar antes de adicioná-los ao próprio peso. Depois de hesitar um pouco, ele deu alguns a Sunny, também.
"Algo aconteceu enquanto dormíamos?"
Sunny olhou para ele por alguns segundos.
"O monstro comeu os mortos."
Herói franziu ainda mais o cenho.
"Como você sabe?"
"Eu ouvi."
Herói se moveu para a beirada do penhasco e olhou para baixo, tentando discernir a distante plataforma de pedra. Após um minuto aproximadamente, ele cerrava as mandíbulas, mostrando sinais de incerteza pela primeira vez.
"Então teremos que nos mover mais rápido. Se a criatura terminou com todos os corpos, será a nossa vez em seguida. Precisamos encontrar aquele caminho antigo antes do anoitecer."
Assustados e desolados, eles partiram novamente e continuaram a subir. Sunny estava morrendo lentamente sob o peso da carga adicional. Felizmente, Ardiloso e Acadêmico já haviam bebido a maior parte da água, aliviando um pouco.
'Isso é um inferno,' ele pensou.
Eles subiram mais e mais alto. O sol estava subindo com eles, se aproximando lentamente do zênite. Não havia conversa, nem risadas, apenas respiração tensa. Cada um dos quatro sobreviventes estava concentrado em seus próprios passos e na firmeza de seus pés.
Contudo, Ardiloso estava ficando cada vez mais para trás. Sua força o abandonava.
E então, em algum momento, Sunny ouviu um grito desesperado. Virando-se, ele só teve tempo de ver um rosto tomado pelo pânico. Ardiloso caiu para trás, seu pé escorregou em uma pedra coberta de gelo. Ele bateu no chão com força e rolou para baixo, ainda tentando agarrar algo.
Mas era muito tarde.
Paralisados e impotentes, só puderam assistir enquanto o corpo dele deslizava pela encosta, deixando marcas sangrentas nas pedras. A cada segundo, Ardiloso parecia menos humano e mais uma boneca de pano.
Alguns momentos depois, ele finalmente parou, atingindo o topo de uma grande pedra saliente com um monte de carne despedaçada.
Ardiloso estava morto.