Continuei sentindo aquela pressão esmagadora em meu corpo por alguns segundos, como se uma rocha estivesse me prensando contra o chão. Mas assim como surgiu, ela também sumiu sem deixar nenhum rastro para trás.
— Que droga… foi essa...? — murmurei, ofegante, enquanto encarava o colar em minhas mãos.
Tomei alguns segundos para me acalmar e logo em seguida desci da árvore.
Lá embaixo, eu ainda me perguntava o que diabos tinha acabado de acontecer, quando lembrei o motivo de estar ali. Já era quase meio-dia e eu tinha que levar a lenha de volta para casa. Sem pensar muito, amarrei o feixe nas costas, apanhei meu machado e voltei rapidamente para a vila.
Enquanto caminhava pensando no ocorrido, ouvi a voz de alguém chamando por meu nome.
— Kayon! — Olhei para o lado e vi uma senhora acenando para mim. — Venha até aqui, por favor.
Seu cabelo era grisalho, e ela usava um vestido negro que por pouco não tocava o chão. Aquela talvez fosse a pessoa mais respeitada em nossa vila. Não por conta da idade, mas por ser a única capaz de curar em segundos qualquer ferimento que alguém sofresse.
— Bom dia, Obba! Precisa de algo?
— Bom dia, querido. Na verdade, sim. Preciso que-
— Já sei! — interrompi-a com um grito. — Você precisa de um jovem habilidoso, que esteja disposto a aprender magia para ser seu ajudante, e por isso veio me procurar! Né?! Né?! Né?!
Enquanto eu falava repetidamente e sem intervalo, ela acenava com as mãos na tentativa de me parar.
— Querido, calma, calma! Eu só preciso que você dê um recado para o seu pai...
— Ah, Obba... por favor! Da última vez eu quase consegui conjurar aquele feitiço, eu até criei uma gota de água na mão, você viu!
— Kayon, aquilo era uma gota de suor da sua testa. Inclusive, eu lembro muito bem que você quase desmaiou com a quantidade de esforço que fez.
— Tsc, mas eu tava quase conseguindo... — resmunguei, torcendo a boca.
Admito que não era minha primeira vez falando aquilo, mas a verdade é que eu realmente morreria se continuasse tentando conjurar um feitiço. Era como se meu corpo se negasse a usar qualquer tipo de magia, a ponto de eu desmaiar de exaustão só por tentar canalizar minha energia.
— Não se preocupe, você ainda é muito jovem, tem bastante tempo para praticar. Eventualmente aprenderá a usar magia, mesmo que esse não seja... o seu ponto forte. — Ela coçou a bochecha e desviou o olhar, tentando disfarçar o que falou.
— Mas tem um problema... Em breve vou sair da vila, e pra onde eu tô indo a maioria das pessoas consegue usar magia. Não queria ser o único de lá que não pode fazer isso, sabe...
Minha afirmação sobre a viagem claramente pegou a Obba de surpresa, mas apesar disso, ela não se propôs a fazer-me qualquer questionamento.
— Então faremos um acordo. — Ela ergueu o indicador direito e levou a outra mão na cintura, como se estivesse prestes a me dar mais um de seus sermões. — Preciso de uma jarra nova para fermentar algumas ervas que vou usar em minhas poções, e você ficará responsável por enviar meu pedido para seu pai. Quando estiver pronta, traga ela para mim, e antes de voltar tentaremos recitar aquele feitiço mais uma vez. O que acha?
Quando acabou de falar, ela começou a fazer pequenos movimentos circulares com a mão. De repente, algumas gotas de água emergiram da ponta de seu dedo, formando um fino anel ondulante bem acima dele.
Ela apontou o dedo em minha direção e o círculo o seguiu como se ambos estivessem conectados por uma haste invisível. Estendi uma mão para perto, e num leve movimento do indicador, ela fez o anel de água circundar meu braço como uma pulseira, até ela recolher o dedo, desfazendo o anel num simples punhado de água que se espatifou no chão.
— Uou, isso foi incrível! Pode deixar, eu prometo que vou dar o recado o mais rápido possível! — afirmei com um entusiasmo invejável.
Após isso, saí apressado, acenando de longe para despedir-me dela.
Assim que cheguei em casa, fui direto aos fundos, onde meu pai estava trabalhando. Desamarrei toda a lenha e coloquei aos pés do forno que ele usava para assar as cerâmicas.
— Aqui está.
— Obrigado, Kay. — Suas mãos estavam atoladas num punhado de argila molhada que girava rapidamente sobre um torno de madeira.
— Pai, a Obba disse que precisa de uma jarra nova pra fermentar algumas ervas.
— Tudo bem, acho que dá tempo de moldar mais uma peça enquanto as outras vão assando. Assim que terminar essa daqui, faço a que ela pediu.
Ele parecia já estar bem satisfeito com minha ajuda, então o deixei trabalhando e fui para meu quarto. Lá dentro, encostei meu machado na parede e andei até minha cama, onde notei minha insígnia repousando sobre ela. Decidi estreá-la ali mesmo, então a prendi como um broche em meu peito, perto do colar.
Após isso, peguei minha velha espada embaixo da cama e fui até as margens do rio que ficava ao lado da vila. Aquele era o local onde Blake e eu treinávamos nossa esgrima, e apesar de não frequentar mais lá, a presença dele permanecia nas marcas de corte feitas em alguns troncos fincados no chão, os quais usávamos como alvo de nossos ataques. Pus-me a golpeá-los com o mesmo entusiasmo da época em que treinávamos juntos, enquanto inutilmente tentava replicar seus golpes precisos.
O céu já estava escuro quando retornei, e no mesmo instante que entrei em casa, meu pai veio dos fundos com uma linda jarra recém-moldada nas mãos.
— Aqui está! — Ele ergueu-a como se fosse um troféu. — Demorou bastante no fogo, mas finalmente ficou pronta.
— Essa é a jarra que a Obba pediu? — perguntei.
— Sim, é essa mesmo. Amanhã cedinho vou fazer a entrega.
— Não! — Involuntariamente, joguei os braços para frente e sacudi as mãos. — Quer dizer... não precisa esperar até amanhã, eu posso entregar hoje.
— Mas essa hora...? Já está muito tarde.
— Eh... sabe o que é… — Eu olhava de um lado para o outro, tentando pensar rapidamente em alguma desculpa plausível. — é que ela parecia muito, muito apressada mesmo. Disse precisava fazer as poções quanto antes, então é melhor levar isso logo. E nem tá tão tarde assim... eu posso fazer isso. Tenho certeza que ela vai ficar muito feliz!
— Deixa ele ir, querido — minha mãe interveio —, a casa da Obba não fica tão longe daqui, e você sabe que ela é a única curandeira que temos na vila.
— Bom… tudo bem — disse ele. — Mas vem jantar antes de ir.
Sentamos e fizemos a última refeição do dia. Em seguida, peguei a jarra e saí apressado para fazer a entrega. Eu estava muito ansioso, aquela seria minha última chance de aprender a usar magia antes de ir para Capital, então daria tudo de mim.
No entanto, enquanto me aproximava do centro da vila, comecei a escutar alguns gritos distantes. Achei aquilo estranho, mas continuei andando normalmente. Minha distração era tanta, que eu ainda não tinha notado a imensa nuvem negra pairando no céu bem à frente, até sentir o cheiro de fumaça em meu nariz.
— Mas o que... isso é fogo?!
Apressei meus passos para ver o que era aquilo, já que pelo tamanho, não parecia ser nada pequeno. Pouco antes de chegar no centro da vila, senti o ar ficando muito quente, como se eu estivesse caminhando na beira de um forno. E quando finalmente cheguei lá, eu vi fogo, fogo em todos os lugares.
As chamas estendiam-se por cima dos telhados das casas, enquanto gritos vinham de seus interiores. Aquilo me deixou completamente apavorado, mas o que meus olhos focaram em seguida fez meu corpo congelar. Meus braços perderam toda a força e eu soltei a jarra em minhas mãos, que se espatifou em pedaços no chão.
Haviam corpos espalhados por todo lugar. A casa da Obba estava envolta em chamas, e seu corpo bem à frente dela, no chão, deitado sobre uma poça de sangue.
— O-o q-que aconteceu aqui...?
Mal tive tempo de fechar a boca, quando um dos camponeses veio correndo e gritando apavorado em minha direção.
— CORRAM! SÃO OS SOLDADOS DE ANDRALL, ELES VÃO MATAR TODOS NÓS!
Andrall…? Por quê? Faz séculos que Andrall não entra em conflito com Stardia... Por que esse ataque repentino? E por que justo nossa vila...?
Meus olhos tremiam de tanto medo, eu não conseguia dar um passo sequer. Quando aquele camponês chegou perto de mim, escutei algo cortando o ar. No mesmo instante, ele deu um gemido de dor e caiu de bruços bem na minha frente. O motivo de sua queda ficou evidente quando olhei para o chão. Uma longa flecha estava cravada em suas costas, e quase imediatamente, sua roupa começou a ensopar de sangue.
Quando tirei os olhos daquele homem morto e foquei-os à frente, vi uma dezena de soldados vestindo armaduras de ferro com detalhes vermelhos. Alguns com arcos, outros com espadas e tochas. Os poucos camponeses que restavam ali estavam tentando correr enquanto eram alvejados por flechas ou talhados por golpes de espada.
Eu fiquei em estado de choque, paralisado, mas os passos pesados das pessoas correndo na direção oposta a mim fizeram-me retomar meus sentidos. Me virei rapidamente e corri desesperado para casa. Meu coração estava para saltar do peito, e o ar seco fazia minha garganta arder a cada vez que eu respirava.
Abri a porta com a mesma violência que corria, assustando meus pais que ainda estavam limpando a mesa de jantar.
— O que foi isso?! — Ele perguntou.
Minha mãe vei até mim com um olhar preocupado, e quando eu a vi, corri direto para seus braços.
— Filho, você tá bem?
— Andrall! Os soldados de Andrall tão atacando a vila! A Obba... ela tava no chão, e tinha fogo por toda parte!
— Andrall?! Isso não é bom... — disse meu pai. — Lilyan, leva o Kayon pro quarto e escondam-se, agora!
Ele abriu a porta do meu quarto, pegou meu machado, e foi até a entrada. Assustada, minha mãe me puxou pelo braço e fez o que ele pediu. Lá dentro, ela travou a porta com um pequeno móvel, depois veio até mim e pôs as mãos em meu rosto.
— Filho, eu preciso que você me escute agora. — Enxuguei as lágrimas do rosto e acenei positivamente com a cabeça. — Quero que vá pra debaixo da cama e não faça nenhum barulho, não importa o que aconteça, entendeu?
— Mas e você? E o papai?
— Vai ficar tudo bem, só faz o que a mamãe tá pedindo.
Apesar do sorriso em seu rosto, sua voz trêmula revelava o medo que estava sentindo. Contudo, sem muito tempo para pensar, fiz o que ela pediu e escondi-me debaixo da cama.
Momentos depois, a luz das tochas iluminaram as janelas do quarto. Ouvi o barulho da porta da frente sendo arrombada. Após isso, vieram alguns gritos e o som de duas coisas metálicas se chocando, seguido por um gemido de dor, e o mais absoluto silêncio.
Embaixo da cama, eu observava os pés de minha mãe descalços, imóveis em frente à porta. Por alguns segundos, tudo que se ouvia era o atordoante ranger do assoalho, anunciando que alguém caminhava lentamente pela casa, até que o som dos passos cessou-se, dando lugar a um estrondo da porta do quarto. O impacto do golpe jogou-a longe. Ela gritou de dor ao bater no chão, mas tentou levantar-se rapidamente, enquanto um homem de armadura se aproximava.
— Por favor, nos deixe em paz… Por que vocês estão fazendo isso...?
— Calada, sua vadia! — Ele gritou.
O som do tapa em seu rosto ecoou pelo quarto inteiro.
Ela novamente foi ao chão, caindo bem aos pés da cama. Eu estava tremendo tanto que mal conseguia controlar minha respiração, mesmo ambas as mãos na boca. As lágrimas escorriam por meu rosto e formavam uma poça abaixo dele.
Minha mãe estava há poucos centímetros de mim, olhando diretamente para meus olhos. Seu rosto estava ferido, e sua boca suja de sangue. Discretamente, ela levou o dedo indicador até os lábios e fez um discreto sinal de "silêncio" para mim, enquanto forçava um sorriso.
O homem largou a tocha que segurava no chão e agarrou-a pelo cabelo, erguendo-a no mesmo instante. Foi quando notei meu machado sujo com sangue fora do quarto, no chão. Embaixo da cama eu só conseguia ver até a altura dos joelhos, mas ele estava refletindo ambos de corpo inteiro.
— Vou te ensinar a ficar em silêncio...
O homem sacou sua espada e colocou contra a garganta dela, mas quando estava prestes a fazer o corte, minha voz simplesmente escapou.
— MÃE!
Com meu grito, ele a largou no chão, ao passo que se aproximou da cama, ajoelhou-se, e segurou um de meus braços, puxando-me para fora. Era um cara alto e muito forte, com várias cicatrizes no rosto.
— Olha só o que eu achei aqui...
Num ato de desespero, minha mãe apanhou a tocha que estava no chão e lançou-se contra ele. Ela o atingiu no rosto com o fogo, fazendo-o me soltar e gritar de dor. Porém, a resposta foi um corte ascendente com sua lâmina, que percorreu de uma diagonal à outra do tronco dela.
Naquele instante, o tempo ficou lento, enquanto eu via minha mãe caindo, com um rastro de sangue acompanhando sua trajetória até o chão.
A única coisa que pude fazer naquele momento foi gritar. Corri até ela, mas antes de alcançá-la, fui agarrado pelo pescoço por aquele maldito assassino. E ele parecia estar ainda mais fora de controle.
— AGORA É A SUA VEZ, PIRRALHO DE MERDA! — disse ele, antes de me arremessar contra a parede.
Eu a atingi com tanta força que o ar saltou para fora dos meus pulmões, caindo debruçado no chão. Ele apanhou a tocha novamente e começou a passá-la pela mobília, ateando fogo no quarto inteiro.
Enquanto eu tentava, com dificuldade, respirar, ouvi uma voz muito fraca chamando por meu nome.
— Kay... — Ergui a cabeça e vi minha mãe chorando, coberta de sangue. — Fuja, fuj-ja...
Aquelas foram suas últimas palavras... Até o último segundo, ela estava lá, cuidando de mim. No fundo de seus olhos pude ver minha imagem refletida, conforme suas pálpebras foram se fechando, e uma última lágrima emergiu deles.
Numa única noite, eu perdi tudo que mais amava. Não havia me restado nada, absolutamente nada. "Fugir", esse foi seu último pedido, mas fugir para onde? Eu não tinha pra onde ir...
Enquanto minhas lágrimas caíam, aquele assassino miserável veio até mim para terminar o serviço. Coloquei-me de pé com dificuldade, enquanto uma mistura de raiva e desespero me consumiam por dentro.
Mãe, pai, me perdoem… Se eu fosse um pouco mais forte, só um pouco…!
Ele empunhou a espada e empurrou-a contra meu peito. No mesmo momento, olhei no fundo de seus olhos, e através deles vi meu próprio reflexo. Porém, aquele já não era mais eu, não havia mais brilho nos meus, eles estavam escuros como uma noite tempestuosa.
Em compensação, o cristal em meu colar brilhava tal qual a lua cheia. E junto do brilho, uma onda de energia começara a emanar dele, repelindo tudo que tocava enquanto se expandia lentamente durante segundo interminável.
Conforme aquela ínfima fração de tempo chegava a seu fim, vi a expressão no rosto do homem mudar drasticamente, mas não tive tempo de conferir o fim da transição, pois o interminável segundo terminou-se, e no instante seguinte nós dois fomos lançados em direções opostas pela onda de choque.
O soldado voou contra uma parede, ele a atingiu com tanta força que parte do telhado, enfraquecido pelo fogo, cedeu sobre sua cabeça, esmagando-o com os detritos em chamas. Eu fui arremessado para o outro lado e acabei atravessando uma das janelas, voando para o lado de fora da casa. Caí rolando no chão enquanto atingia ele repetidas vezes, ferindo meu corpo inteiro. Só parei quando bati em uma árvore, ficando inconsciente com o impacto. Felizmente, minutos depois despertei, mas quando olhei de volta para minha casa, ela já estava totalmente tomada pelo fogo.
Tudo aquilo foi demais para mim... e antes que pudesse sequer digerir o que meus olhos viam, escutei a voz dos outros soldados aproximando-se dali. As últimas palavras de minha mãe ecoavam como pedras em minha cabeça. Eu não sabia o que fazer, nem sequer conseguia raciocinar direito, então eu apenas corri. Com passos trêmulos para trás, me virei e fugi para longe daquele lugar.
A única coisa clara em minha mente era conversa que tive com meus pais pela manhã, talvez por isso fui em direção à Capital. Eu não sabia se conseguiria chegar lá, nem o que faria caso conseguisse, mas não havia me restado nenhuma outra alternativa...
Por dias peregrinei pela floresta. Completamente sujo, sentindo fome, sentindo sede. Cada centímetro do meu corpo doía, as feridas ardiam, minhas pernas estavam quase falhando, e eu não tinha mais forças nem para levantar os braços. Na verdade, nem existiam motivos para eu continuar resistindo, mas ainda assim, não parei de andar um só segundo.
Durante uma tarde, cambaleando por um estreito caminho de terra, meus olhos que mal estavam abertos avistaram a base de uma imensa estrutura. — Aquela só podia ser a muralha da Capital…
Ergui a cabeça com dificuldade e notei um borrão laranja à minha frente. Minha visão estava tão turva que quase não percebi que era uma pessoa. Até tentei pedir ajuda, mas estava tão exausto que mal emiti algum som.
— S-so... socor...
Aqueles foram meus últimos momentos de consciência. Após isso, minha visão escureceu e meu corpo foi ao chão.
Então é isso, andei tanto pra morrer aqui, a metros do lugar que planejava realizar meu sonho. Que piada… eu realmente não merecia a segunda chance que eles me deram…
…hã? Que calor é esse…?