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Chapter 2 - Caminho tortuoso

Meu enlace solicitado com Isidório trouxe alegria ao meu clã e principalmente ao meu "noivo". A festa foi iniciada assim que deixei a casa de Aquileutes, pelas ruas os guerreiros festejavam com música e bastante bebida. As comemorações viraram a noite.

Pela manhã, quando saímos do templo, ainda era possível ver as celebrações em cada canto da cidade. Pelo jeito, a festa iria durar dias, era uma oportunidade que eu precisava para que embarcasse em minha jornada em busca de Atena e salvar Ares sem que ninguém sentisse a minha ausência.

Sorrateiramente, adentrei a casa da minha família, organizei uma pequena manta com comida e armamento, mas antes de partir, tinha que encontrar Ádria e pedir ajuda. Eu sabia muito pouco sobre Atena e queria estar preparado para os perigos que poderia encontrar ao entrar em seu templo. Assim, como entrei em casa, eu saí, furtiva. Esgueirei-me pelas ruelas de Theriarã com um capuz escondendo meu rosto, contudo minha tentativa de passar despercebida foi frustrada, senti uma mão em meu braço segurando-me. 

 — Yelena, onde você está indo, escondendo-se sob esse manto como uma fugitiva? — Perguntou-me Isidório, visivelmente embriagado, seu sorriso de satisfação por ter-me pegado em flagrante era irritante. 

— Solte-me, seu porco arrogante, aonde você não te diz respeito! — Bruscamente puxei meu braço do seu agarre frouxo; e, em um surto de birra pela minha resposta malcriada, Isidório agarrou-me pelo queixo. Ele tremia de raiva. 

— Pois bem, minha amada Yelena, desde que perdeu a luta ontem, você deve me responder todas as explicações que eu quiser. Você agora é minha prometida, me pertence perante o clã e aos deuses. Acostume-se, pois, como seu noivo, sou seu dono e senhor. E aproveitarei todas as oportunidades que tiver de te tocar e fazer de você uma serva das minhas vontades. Não se preocupe, tenho plena verdade de que você irá amar tudo o que planejo fazer com você. 

Finalizando seu discurso possessivo, ainda com minha cabeça presa em suas mãos, ele lambeu a lateral do meu rosto, deixando sua saliva pegajosa em mim. Fiquei tão atordoado pelo comportamento bruto, não comum à personalidade de Isidório, que não reagi, até ele me arrastar pelas ruas em direção a um beco sujo mais adiante de onde estávamos. 

— Largue-me, idiota! Não me trate como uma serva qualquer, sou uma guerreira e mereci minha posição, no mínimo deve tratar-me como uma igual. — Tentando o afastar, o empurrei e ele me segurou mais forte, prendendo-me contra a parede e beijando-me com violência. 

Mordi seus lábios até sentir o sangue escorrer, e ao invés de afastá-lo, o sangue viscoso foi como um combustível, o incentivando a continuar. Ele agarrou com força meu cabelo pela nuca com uma de suas mãos e com a outra segurou-me contra ele.

Mesmo tentando tirá-lo de mim, em meio ao agarre solicitado, deixei-me "por um segundo" levar-me por suas carícias, tinha que admitir que sua fama de bom amante não era leviana, ele sabia como despertar o desejo de uma mulher apenas com o toque dos lábios.

No momento em que senti suas mãos passando pelo meu corpo decidindo que acabaria com aquilo independente das consequências, dei um forte chute em suas genitálias e quando ele se sentiu lento dor, dei uma cabeçada em seu queixo o desequilibrando, e conforme o desajustado tombou finalizei chutando sua nuca, fazendo com que ele apagasse. 

A vontade era de matá-lo e deixar o corpo ali, jogado para os cães de rua o devorarem lentamente. Entretanto, matar um pretendente, principalmente depois de ter perdido o duelo e ter dado minha palavra de que aceitaria a derrota, casando-me (mesmo que o enlace proposto fosse como o meu), era um crime repudiado pelo clã. 

Nas relações entre dois guerreiros que contraíssem o casamento, a fim de resolvermos nossas diferenças, poderíamos lutar até que o sangue jorrasse, mas nunca acabaremos com a vida do outro sem uma justificativa plausível. Infelizmente, tocar meu corpo, mesmo sem minha autorização, era um direito de Isidório. 

Tinha que libertar Ares o mais rápido possível e desfazer o meu compromisso com Isidório, antes que o bastardo aproveitasse todos os privilégios e acessos ao meu corpo que nosso enlace proporcionava. Recolhi minha manta que ficou jogada na entrada do beco com os preparativos da viagem, recoloquei os capuzes (agora frouxo em meus ombros) de volta à minha cabeça e parti para o templo de Ares em busca de Ádria. 

Sobrava-me apenas algumas horas, até acharem Isidório no beco, ou até o desconfortodo acordar e me caçar por toda a cidade para colocar as mãos em mim. Entrando no templo, demorei para encontrar Ádria, que estava na parte mais escura do subsolo em meditação, a sacudida, a despertar do seu transe, e confusa, ao abrir os olhos, ela não me encontrou, atacando-me. Baixei o capuz e o fogo bruxuleante, que dançava em uma pira próxima, mostrou meu rosto ainda coberto do sangue que havia tirado de Isidório.

— Yelena, é você? — Ádria chamou meu nome ainda embriagada pelas ervas alucinógenas que as sacerdotisas bebem para que seu espírito pudesse comunicar-se com os deuses. 

— Sou eu. Ádria, preciso de sua ajuda! 

— Tem sangue em seu rosto e vestes. Você está machucado? — Ela me perguntou, deixando as sombras da sombra dissiparem-se dos seus olhos. 

— Não é meu, é de Isidório, ele me atacou quando estava vindo para cá, não se preocupe com isso. 

— Você perdeu o juízo? Diga-me que não matou seu noivo para desfazer o acordo com Aquileutes. Você sabe que a pena para esse ato é a morte. 

— Claro que não o matei! Por mais que ele mereça. O infeliz me agarrou sem meu consentimento contra a parede de uma viela imunda, dei apenas um corretivo nele, é provável que eu esteja despertando agora.

— Ele é seu noivo, tem direito de te tocar. Aquileutes ficará furioso quando souber o que você fez com o filho dele.

— Depois, eu me preocupo com Aquileutes. Preciso que me ajude a chegar até o tempo de Atena. 

— Atena? O que você quer com a Deusa da sabedoria e da guerra? Sabe que em nosso clã é proibido que os guerreiros venerem ou levem tributos a outro deus que não seja Ares. 

— Não é isso. Tenho que te contar algo que descobri recentemente sobre Heílotes. 

— Heílotes? O serviçal do templo?

— Sim. Descobri que ele não é apenas um serviçal, é o deus Ares, aprisionado por Aquileutes. Tenho que encontrar Atena e pedir à deusa que o liberte do encanto que o prende aqui. 

— Deixe de bobagem. Yelena, Aquileutes é um grande guerreiro, mas não possui poder suficiente para prender um deus como Ares. Mesmo com a ajuda das sacerdotisas, isso seria impossível e uma heresia. 

— Ádria, estou falando sério, é verdade, preciso de sua ajuda. — Insisti com minha amiga, e ignorando meus apelos, ela voltou para sua pose de meditação próximo à pira e fechou os olhos. 

Agachei-me perto dela e, tocando de leve sua mão, continuei suplicando — Por favor, me diga como faço para invocar Atena, e se devo me preparar para alguma "surpresa desagradável" ao adentrar em seu templo.

Ainda com os olhos fechados, ela falou-me sussurrando. — Eu não devia dar asas aos seus delírios, mas sei que se eu não te contar o que você quer saber, você não me deixará voltar para o meu transe. Como posso tornar-me um oráculo com você interrompendo o meu treinamento?

— Tenho que fazer isso, Ádria. Mesmo que não me diga como invocá-la, eu vou ao templo na Acrópole rogar que ela ajude Ares. — A sacerdotisa continuou imóvel, com seus olhos fechados, respirou fundo e falou-me sem emoção na voz…

— Não vá ao templo principal da Acrópole. Pegue a trilha mais ao sul de Theriarã, siga durante duas luas até a faixa de terra tornar-se tão estreita que é difícil caminhar por ela. Você encontrará um pequeno templo em ruínas. Na entrada, pegue as ervas com flores de cor lilás que se estendem pela entrada. Macere-as e engula. Entre no templo e invoque a Deusa dizendo seus títulos e, se ela aparecer para você, o que acho pouco provável, faça sua solicitação "maluca". E lembre-se, ela é a deusa da sabedoria, irá testar sua inteligência antes de te ouvir. 

Abracei Ádria empolgada e quase a derrubei, ela olhou-me, abrindo apenas um dos olhos com o semblante contrariado. Enquanto eu me afastava, ouvi sua voz dizendo que a deusa me mataria por importuná-la sobre algo tão absurdo. 

Suas palavras não me abalaram, pouco me importava a ira da deusa, a única coisa que pairava em minha mente era libertar Ares, e eu faria o que pudesse para conseguir tirá-lo das garras de Aquileutes. Corri pelo templo sem me importar em ser vista pelas pessoas que entravam e saíam do local com oferendas. 

Ao chegar na trilha mais ao sul de Theriarã vi ao longe guerreiros agrupados, abordando as pessoas que transitavam. Não me surpreenderia se descobrisse que eles estavam me procurando a mando de Aquileutes. Apressei o passo e adentrei a trilha, antes que eles pudessem me interceptar. 

Os suprimentos que eu havia levado para a viagem seriam mais que suficientes para a jornada. Meio-dia de caminhada e a sede me fez parar, agachei-me perto de uma fonte que brotava de uma encosta rochosa, bebi até sentir o estômago estufar e recarreguei meu "odre". 

Continuei a jornada até que a lua estava em seu auge, parando brevemente para descansar enquanto a mata fechada emitia seus sons noturnos característicos. Entre piados de aves e uivos de lobos, segui o caminho que começava a estreitar-se, a todo momento fiquei pensando em Heílotes, e como não notei que era Ares; e também, questionando-me como Aquileutes conseguiu prendê-lo, e suspeitava que o objeto no pedestal do templo estava associado a isso.

Mais um dia de jornada, e minha determinação em ser bem-sucedida na missão só aumentava, eu levaria o recado de Ares a sua irmã, e caso ela se recusasse eu imploraria com minha vida e ofereceria qualquer coisa que ela quisesse em troca da liberdade do deus da guerra. 

No decorrer da caminhada, senti que estava sendo observada. Por diversas vezes os pelos do meu braço se arrepiaram alertando-me que havia perigo, busquei entre as árvores tentando encontrar a fonte do meu desconforto, apesar disso não encontrei animal ou homem que estivesse em meu encalço, o provável era que o cansaço da jornada estivesse me fazendo alucinar. 

A noite mais uma vez apareceu e a trilha era quase inexistente, apenas uma pequena linha da largura de um passo mostrava que outrora existiu um caminho por ali, mantive-me alerta, para não desviar da passagem iluminada por pequenos fragmentos do luar que se infiltravam pela fresta da copa das árvores. 

Ao amanhecer, as primeiras flores lilás surgiram espaçadas e depois, ao final da trilha, várias amontoavam-se em frente a uma construção antiga, abandonada e coberta de raízes. As plantas brotavam das ranhuras das paredes de pedra, dando ao templo um ar sombrio. 

Na entrada encontrei uma abertura baixa, a qual se projetava para dentro da terra e olhei desconfiada para escuridão que claramente tentava me afugentar. 

Fiz como Ádria me instruiu, peguei algumas flores e as esmigalhei com as mãos, coloquei-as na boca e seu gosto amargo me deu náuseas, engoli antes que a ânsia me fizesse cuspir a pasta gosmenta no chão. Já sentindo meu corpo dá os primeiros sinais que as propriedades alucinógenas da planta proporcionavam, abaixei-me para adentrar no templo e a escuridão cegou-me ao passo que descia até a câmera central. 

O corredor estreito permitia que eu fosse tateando com as mãos na parede. Uma corrente leve de ar soprava indicando que mais a frente havia um duto de ventilação, uma luz tímida surgiu ao fundo e ao aproximar-me percebi vir de uma pequena abertura no teto. 

A luz incidia sobre uma estátua em tamanho real da deusa Atena. Imponente ela carregava seu escudo entalhado com a imagem de Medusa, na outra mão uma enorme lança, na cabeça um elmo ricamente esculpido. 

Não me atrevi, naquele primeiro vislumbre, a olhar diretamente em seu rosto, por medo e respeito a toda glória que a escultura irradiava. 

Ajoelhei-me aos seus pés… e recitei seus títulos a convocando. — Atena, deusa da sabedoria, das artes, da inteligência, da guerra e da justiça, protetora zelosa das cidades, dos arquitetos, dos tecelões e dos fabricantes de joias, heróis, poetas e filósofos. Eu, Yelena, guerreira de Theriarã, rogo-te que escute o recado que vim humildemente trazer em nome do seu irmão, Ares. 

A escultura começou a ganhar cor, um brilho sobrenatural suave e inesperadamente fui jogada para trás, minha cabeça bateu com força no chão; atordoada pela pancada e pelo efeito das ervas em meu corpo, fiquei letárgica. E antes que pudesse levantar-me vi Isidório aproximando-se, o desgraçado aproveitando do meu momento de fraqueza chutou-me no estômago fazendo com que o ar fugisse completamente do meu corpo. 

Por mais que eu quisesse reagir, meus braços e pernas não respondiam com a agilidade que eu necessitava. Acabei ficando à mercê de Isidório, o qual estava acompanhado de outros guerreiros do clã, ele puxou-me pelos cabelos, levantando-me do chão, enquanto seus companheiros torciam meus braços nas costas, contendo-me, para evitar que eu lutasse contra eles.

Olhei em direção à estátua de Atena e o brilho suave que vi anteriormente dissipava-se, o rosto da deusa mostrava um sorriso desdenhoso e um olhar de aprovação para a captura que se desenrolava diante dela, talvez pelo efeito das drogas eu pudesse ver a escultura quase viva zombando de mim, já que os guerreiros ao meu redor pareciam não enxergar o que eu via. 

Antes que a deusa se fosse por completo, comecei a gritar. — Vim trazer um recado do seu irmão, ele te dará qualquer coisa se o libertar. Por favor, ajude-o. — A deusa apenas se foi ignorando meus apelos. 

— O que você está falando, Yelena? Irmão? Libertar? Está louca, mulher. — Isidório questionava-me, virando a cabeça constantemente, dividindo sua atenção entre mim e a estátua da deusa. Suspeitava que ele soubesse do que eu estava falando e estava dissimulando para não revelar a verdade sobre Ares aos guerreiros do clã que o acompanhavam. 

— Largue-me, Isidório, eu ordeno! 

— Você não ordena nada. Yelena, voltaremos para Theriarã, pois temos contas a acertar. 

Em um acesso de raiva, eu cuspi no rosto de Isidório, que não hesitou em socar-me forte na cara, me fazendo apagar. 

Não sei dizer quanto tempo se até passou o meu despertar, senti um sacolejar leve, meu rosto latejava onde o desgraçado me socou, eu me vi prostrada de bruços em cima do seu cavalo, com as mãos e pernas amarradas como uma corça recém caçada e pronto para o abate, os homens ao redor conversavam em voz alta, divertindo-se pela minha captura.

O efeito da erva que mastiguei estava se dissipando, assim que eu me livrasse das amarras e lutasse com cada um dos guerreiros que me capturou fazendo-os implorar por misericórdia, e deixaria Isidório por último para que mostrasse a ele com quem de fato ele estava se metendo. 

A lua já estava alta no céu quando o grupo de guerreiros resolveu acampar e dar descanso às montarias. Isidório me tirou do cavalo, deixando-me encostada em uma árvore, ainda com as mãos e pés amarrados, enquanto eles montavam suas tendas e acendiam o fogo. 

Assim que a estrutura do acampamento foi montada, as bebidas coletadas foram distribuídas entre os guerreiros, que, sob efeito do álcool, gargalhavam e atiravam pedrinhas em mim. 

Com a ponta dos dedos alcancei uma pedra pontuda que estava próxima às minhas costas e sem fazer movimentos bruscos comecei a partir da corda que me prendia, aos poucos senti os fios afrouxarem e com as mãos soltas, sem alarde, desamarrei meus pés à proporção que os guerreiros distraídos - pelas conversas e bebidas - já não me davam atenção. 

Liberta, ataquei o guerreiro próximo a mim que estava de costas bebendo em volta do fogo, roubei sua espada e, com o cabo, bati em sua cabeça, fazendo-o apagar. Os outros assistiram à cena sem reagir; em seguida, como se receberam um choque, saltaram desesperados, colocando-se de pé, empunhando suas espadas e adagas. 

Leíandro, um dos guerreiros com quem eu lutava regularmente nos treinos, tentou me dissuadir do ataque iminente. — Yelena, baixe a espada, estávamos apenas nos divertindo, não leve sua captura para o lado pessoal. Venha beber conosco! 

Os guerreiros olharam-me amedrontados. Isidório, saindo da escuridão, apareceu na beira do fogo. – Quem foi o idiota que a soltou? 

— Ninguém o fez, ela conseguiu retirar as amarras de algum modo e destruir Pithos roubando sua espada. — falou Leíandro para Isidório, explicando o ocorrido e apontando para Pithos desfalecido no chão. 

Isidório caminhou em minha direção com as palmas das mãos levantadas, fazendo um gesto apassivador. — Vamos, Yelena, abaixe a espada, não comece uma luta desnecessária, vamos conversar, está bem?

Abaixei a espada e, quando os guerreiros relaxaram visivelmente, eu os ataquei sem piedade.

 

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