Nada daquilo estava certo. Abel estava pagando por algo que não tinha cometido. Ele tinha passado a noite toda com ela, confortando-a. Era o jeito de Abel, sempre confortando sua dona nas noites de sono e, principalmente, nas não dormidas.
Sem seu calor, sem o pelo curto, sem o conforto do cachorrinho, Rosana não conseguia relaxar. Seus pensamentos não paravam, rodeavam mais do que pernilongos e eram tão irritantes quanto.
Será que ele estava bem? Como estava o tempo lá fora? Conseguiria dormir sobre a terra? As galinhas o incomodavam? Ele incomodava as galinhas? Ela poderia afrouxar um pouco a corda, pelo menos um pouquinho, antes que o pai visse. Será que estava zangado com ela? Estava tão quietinho. Ele sempre foi assim, calado. Então de onde vinha aquele latido?
Era um latido forte, alto e pesado. Não era incessante como o de outros cães, tinha pausas espaçadas como as de marteladas. Doía não só aos ouvidos, mas também no estômago.
Rosana correu sozinha pela casa. Ninguém, nem mesmo Pedro, que dormia no mesmo quarto, parecia ter escutado os latidos de Abel. Será que não se preocupavam com o bem do cachorro? Afinal, por que ele estava latindo? Nunca fazia isso. Teria atacado mesmo as cabras de seo Geraldo?
Do lado de fora, Rosana viu seu cão. Estava de pé, os pelos eriçados, latindo com os olhos fixos na colina. Abel se debatia e puxava a corda que o amarrava, tentando se libertar a qualquer custo. O nó em seu pescoço apertava a cada impulso nervoso do cão, estrangulava-o aos poucos. No entanto, Abel não parecia se importar com a dor ou a falta de ar que causava a si mesmo.
As lágrimas correram pelo rosto de Rosana. A menina gritava, implorava para que o cachorro parasse de se ferir, mas ele não a ouvia. Abel parecia outro animal, parecia-se com a raposa que tinha se enroscado na cerca semanas antes. Ela se aproximou dele para lhe tirar a corda e Abel avançou como se quisesse arrancar sua mão com os dentes pontudos. Rosana recuou com o rosto ainda mais molhado.
Aquele não era Abel.
A fricção da corda arrancava os pelos de Abel, esquentava sua pele, deixando o com vergões avermelhados, até produzir pequenos cortes. As patas já tinham cavado buracos na terra. O galinheiro todo balançava com a força do cão, que colocava em risco a estabilidade da estrutura. Abel começou a pular, ganindo a cada vez que a corda o puxava. Então andou para trás, pegando impulso, correu e pulou.
A corda se partiu com um estalo. Abel caiu de mal jeito no chão, mas se colocou de pé com agilidade e correu exasperado. Por conta de seu grande tamanho e pouco peso, a cerca não era um obstáculo desafiador para ele. Abel saltou sobre a cerca com maestria, como se tivesse treinado para aquele momento sua vida toda.
— Rosinha! — uma voz chamou, mas a menina ignorou.
Rosana nunca tinha visto seu cachorrinho daquela forma, correndo e pulando com tanto desespero. Não pensou muito a respeito, quando percebeu que o cachorro seguia morro acima, para a fazenda do Sr. Geraldo.
A menina correu atrás do cão sem pensar, sem se preocupar em fechar a porteira. Abel não podia matar mais cabras, nem mesmo ser visto por perto da fazenda vizinha. Aquele seria seu fim. Rosana não podia perdê-lo.
Era difícil correr na noite escura. A luz do lampião iluminava pouco mais de um metro a sua frente e Abel corria rápido como uma onça. As pernas de Rosana começavam a queimar. Ela pensou em chamar pelo cachorro, mas se deteve ao perceber que estava bem ao lado do terreno do vizinho. A menina já se preparava para pular a cerca e impedir que o cão avançasse sobre uma das cabras, quando percebeu que Abel não estava nem um pouco interessado nelas.
Abel continuou a correr, deixando a fazenda para trás, descendo a colina, indo para a mata fechada. Rosana estava logo atrás de seu amado bichinho, não queria parar de segui-lo, temendo a segurança dele. Mas à medida que se aproximava da mata, perguntava-se se sua segurança não estaria em risco também. Ali viviam os animais ferozes e os peçonhentos.
Rosana seguiu o cão pela mata, gritou seu nome algumas vezes, mas ele não parou. Ela já não aguentava mais e o lugar lhe botava medo. Estava quase desistindo quando viu a fila de animais.
Rosana estacou. Esfregou os olhos para enxergar melhor. Uma fila única de animais selvagens, esperando sua vez para entrar numa gruta, de onde saía uma forte luz alaranjada de fogo.
Quatis, ariranhas, raposas, gatos, jaguatiricas, cobras, jacarés e onças esperavam pacientemente. Abel continuou a correr, furando a fila e adentrando a gruta com pressa. Uma dupla de quatis entrou vagarosamente e toda a fila deu um passo à frente, tão organizados quanto gente. Era impossível que eles estivessem todos postos daquela forma, não podiam estar todos ali sem se atacarem. As corujas planavam com delicadeza até a entrada, se colocando à frente das ariranhas, que lhes davam passagem sem nem mesmo olhar para o lado. Todos tinham os olhares fixos, praticamente mortos.
As fábulas faziam a situação parecer menos assustadora do que era de fato. Animais não deveriam se comportar daquela forma. Era impossível, irreal, um sonho. Isso! Era um sonho! Os tempos de insônia fizeram Rosana esquecer como era sonhar. Era um sonho desagradável, mas era um sonho. Só podia ser. Logo algo aconteceria e ela acordaria. Então sentiu algo roçar em seu pé.
Uma multidão de aranhas se arrastava pelo chão, enegrecendo o solo com seus corpos, movendo suas patas com velocidade e adentrando a gruta iluminada.
Rosana gritou com toda a força que tinha. Nenhum dos animais pareceu se importar com ela, exceto um. Abel saiu correndo da gruta, ignorando as aranhas, que abriaram passagem para suas patas pesadas, e alcançou sua dona. Não deu tempo para a menina reagir, apenas latiu para ela e deu um pequeno passo para trás. Rosana, branca de pavor, continuou parada, encarando o cão que não reconhecia mais. Abel girou e latiu, dando mais um passo para trás. A garota não se movia, então Abel se aproximou da mão livre de sua dona, a lambeu e encostou sua cabeça nela.
Foi impossível resistir. O cão deu um passo à frente e ela o seguiu. Não havia mais aranhas para pisar, estavam todas dentro da gruta e era para lá que Abel a guiava. Ele se distanciou um pouco e Rosana apenas o seguiu, mesmo não querendo, como se algo estivesse lhe ordenando. Abel balançava contente seu rabo, vendo que Rosana adentrava a gruta junto a ele.
A gruta estava quente, estupidamente quente. Não era para menos, já que era possível ver ao menos cinco fogueiras montadas naquele espaço estreito. Rosana ia cada vez mais fundo e parou de contar as fogueiras quando viu pilha de corpos de animais mortos.
Os animais tinham cortes profundos em seus pescoços, iguais aos da cabra que o Sr. Geraldo tinha lhes mostrado. Na montanha de corpos ensanguentados, via-se apenas animais que teriam condições de se defender com suas garras e presas, mas pareciam ter perdido a luta pela sobrevivência e agora se amontoavam ali como troféus.
Com o canto do olho, Rosana viu as ariranhas adentrarem a gruta com calma, caminhando para trás da pilha de corpos. Só então a menina notou a estranha sombra que se escondia por trás da montanha mórbida. Abel notou o olhar curioso e a convidou para dar mais alguns passos adiante.
Era irresistível. Rosana acompanhou o cão e viu uma enorme pata escamosa afundar suas garras na cabeça das ariranhas e jogá-las ao monte sangrento. A menina sentiu seu corpo gelar ao ver o monstro.
Era grande, duas vezes maior que uma onça. Sustentava seu peso sobre quatro patas de garras afiadas, ainda sujas de sangue. Seu corpo era coberto por escamas, como as de cobras, brilhantes e acinzentadas. De trás de seu corpo grosso, saía uma cauda longa que se afinava até ficar pontuda como a de um jacaré. O pescoço era quase imperceptível, curto e grosso, como seu corpo. Pelos brancos saíam do meio de suas costas e subiam até a cabeça quadrada. As orelhas pontiagudas se assemelhavam a de morcegos. A mandíbula forte e a bocarra cheia de dentes grotescos, sem lábios para escondê-los, lhe dava um sorriso asqueroso. As narinas enormes ficavam achatadas bem na ponta de seu focinho. Os olhos amarelados não eram animalescos nem humanos, mas penetraram no olhar de Rosana mesmo sem ser possível dizer para onde apontavam, já que lhe faltavam íris e pupilas.
Não podia ser real, seu pai tinha lhe dito que aquilo não passava de uma lenda. Então a criatura abriu suas asas num movimento brusco. Eram asas de morcego enormes, saíam de suas costas e alcançavam o teto, formando uma grande sombra sobre a menina.
Não havia mais como negar. A criatura não era apenas uma lenda. São Jorge podia ter matado um, mas não matara o último. Todos aqueles anos evitando olhar para a imagem do santo tinham sido em vão, pois agora Rosana via o monstro bem a sua frente em carne e osso. Não era qualquer monstro.
Era um dragão.
Abel estava logo ao lado da criatura, convidando a menina para se aproximar. Mas dessa vez, com o pavor correndo por suas veias, Rosana se recusou. Deu um pequeno passo para trás e olhou todos os cantos em busca de uma fuga. Seus olhos acabaram pousando sobre um ninho.
Não era fácil enxergá-los, já que estavam cobertos por terra e areia, mas Rosana percebeu que eram enormes ovos que estavam enterrados logo atrás do dragão. O monstro de olhar frio e expressivo não fez questão de esconder sua prole das vistas da menina.
Em silêncio, Rosana rezou para o santo matador de dragão, desejou ter uma lança para se defender daquela coisa horrível a sua frente. Mas se quisesse se salvar, teria que fazer sua parte.
Ela girou sobre os calcanhares e correu para a saída aos berros. O dragão não se moveu, deixou que um jacaré a derrubasse com um girar de pescoço. Rosana caiu com força sobre as pedras da gruta, tentou se erguer e foi impedida por onças e até mesmo Abel.
Os animais a cercavam enquanto Abel latia, como se lhe desse um sermão por desobedecê-lo. A menina continuava no chão, suplicando por sua vida.
— Abel, por favor… — falou com voz chorosa.
— Ele está sob meu comando — disse uma voz gutural. Rosana olhou para trás e notou que a voz vinha do dragão.
O monstro se aproximou, os animais que cercavam a menina abriram espaço para que ele se colocasse à frente dela.
— Você também deveria me obedecer — o dragão falou com frieza. — É assim mesmo, humanos são sempre mais difíceis de cair em meu encanto. Mas difícil não é impossível.
Ouvir o dragão se deleitar com suas palavras causava arrepios.
— Acham que são melhores que as outras criaturas, nem mesmo se consideram animais. Se não fossem, eu jamais poderia manipulá-los.
A menina estava ofegando, lembrando-se de como tinha perdido o controle de sua vontade ao ser tocada por Abel, minutos antes.
— Humanos pensam que suas técnicas de caça são mais bondosas que as nossas. — O monstro olhou para os animais ao seu redor. — Se assim fosse, seria impossível lhes encantar.
Rosana queria dizer algo, queria suplicar, queria rezar para são Jorge, queria rezar para São Francisco, queria chamar seus pais, queria pedir socorro, mas tudo que conseguiu fazer foi gritar em agonia até sua garganta arranhar.
— Vocês não são melhores que eles — o dragão voltou a falar com sua voz gutural. — Sua carne está cheia da carne de outros, o que facilita meu trabalho. O único empecilho é sua consciência, que insiste em dizer para não seguir minhas ordens. E até para isso eu tenho uma solução.
O monstro ergueu uma pata dianteira vagarosamente. A garra enorme apontava para a perna de Rosana, aproximando-se com cuidado. Ela queria puxar a perna para si, mas o olhar do monstro dizia que seria pior assim. A garra perfurou a pele, não muito fundo, e fez um corte com menos de um palmo. Tinha sido um movimento minucioso e preciso, Rosana mal sentiu dor. O sangue logo se mostrou e escorreu devagar.
O dragão recolheu sua pata, abriu sua bocarra e exibiu uma língua comprida, fina e bifurcada, como a de uma cobra. A língua grudou sobre a ferida com velocidade e a menina sentiu sua perna queimar. Rosana gritou, urrou, xingou, suplicou.
— Abel, me ajuda! — ela balbuciou com o rosto coberto por lágrimas.
O cão assistia a cena impassível. Seus olhos não transmitiam pena, medo, atenção, preocupação… Nada. Abel tinha um olhar completamente vazio.
A língua quente continuava sobre a ferida, ignorando os gritos de Rosana. Não era só a língua que queimava sua pele, mas todo o seu sangue parecia estar borbulhando, sentia-o correr por cada uma de suas veias como se fosse água fervida.
Então parou.
Assim que o dragão tirou a língua de serpente de cima da ferida, tudo estava bem novamente. Rosana olhou para sua perna e viu que já não havia mais sangue sobre o corte, nem mesmo saliva.
A menina voltou os olhos para Abel. Não se importava mais com o monstro que tinha a atacado, queria saber por que seu amado cachorrinho não se preocupava mais com ela. Por que ele continuou parado? Estava gostando daquilo? Era parte de seu plano o tempo todo? Tinha a enganado? Há quanto tempo estava sob controle do dragão? Teria sido ele mesmo quem atacara a cabra?
— Não — o dragão falou de repente. — Abel não atacou a cabra. Fui eu. Senti vontade de caçar como meus ancestrais, mas isso já não me dá mais prazer. Prefiro que tragam a comida até mim. Todo aquele barulho me incomodou e deixei cabra por lá mesmo.
Os olhos de Rosana se arregalaram, ela respirava forte. Não era possível. Não tinha como o monstro saber o que ela estava pensando.
— Mas eu sei, humana. — o dragão falou com orgulho. — Parte de você está em mim agora. E sei exatamente o que fazer para entrar na sua cabeça. Você teme que seu cãozinho tenha sido meu servo todo esse tempo. Vou poupá-la desse sofrimento e lhe dizer que foi só nesta noite que consegui atrair o fiel Abel.
— O que você fez com ele? — Rosana gritou.
— Abel sempre esteve ao meu alcance, assim como todos os animais que você vê aqui e… Ah sim! — o dragão falou como se tivesse se lembrado de algo. Mas a memória não era sua. — A raposa que roubou sua galinha. Ela estava desesperada para atender meu chamado, porque todos sabem que atender ao meu chamado é mais importante que sua própria vida. Mas Abel era diferente. Ele possuía um forte desejo de servir e proteger sua família, estava sempre em seus braços. O que mudou, humana?
Rosana engoliu em seco. As lágrimas não paravam de cair.
— Pode achar que fez o que pôde, mas Abel é apenas um cão. Não entende a complexidade humana, não é? — O monstro fez uma pausa longa. — Então, amarrado e largado sob o luar, Abel fraquejou e ouviu meu encanto.
O dragão virou o rosto para o cão que estava logo ao seu lado, virou-se para o outro lado e abocanhou o pescoço de uma onça, jogando seu corpo inerte na direção do monte de corpos. Seguiu matando todos os animais, usando seus dentes e garras.
Rosana continuou deitada no chão, inerte. Queria se levantar, queria gritar e correr para longe, mas não conseguia. Ficou ali, junto ao cão que um dia lhe trouxe tanto conforto, mas agora apenas a encarava com um olhar frio. E vendo o dragão matar o último animal que se apresentara na gruta, Rosana se perguntou se aquela seria a vez dela e de Abel.
— Não — o monstro respondeu. — A fidelidade que o cão mostrou ter a sua família me será muito útil. Ele protegerá meus filhos e lhes servirá toda essa comida que separei, além de manter as ameaças afastadas desta caverna com seu latido imponente. Já você…
O dragão se inclinou sobre a menina e aproximou o rosto ao dela, olhando-a fixamente nos olhos.
Aqueles olhos amarelos cheios de tudo e nada.
— Você voltará para casa e jamais permitirá que alguém se atreva a vir para cá. Jamais dirá o que viu.
Ar quente saiu das narinas do dragão, queimando o rosto de Rosana. O monstro se ergueu, deu meia volta e caminhou até a saída. Estava escuro do lado de fora e a criatura cinzenta se camuflava na noite, mas ainda era possível ver sua pele brilhante. O dragão olhou levemente por cima do ombro.
Rosana se colocou de pé imediatamente, conseguindo se mover como queria, finalmente. Então não conseguiu se mover mais, não porque se sentia impedida, mas porque não acreditava que estava se movendo mais uma vez. Olhou para o lado e viu que Abel já não estava mais ali, tinha caminhado até o ninho e se sentado ao lado dos ovos.
O dragão abriu suas asas em toda sua magnitude e, por mais que Rosana não gostasse de admitir, eram lindas. Com um pequeno trote e algumas batidas de asas, o monstro voou para os céus e desapareceu no luar.
A menina deixou a gruta, sentindo o frio da madrugada lhe abraçar novamente, deixando para trás o calor nauseante.
Caminhou pela floresta escura, sem lampião e sem medo. Sabia que não havia mais nada ali para lhe atacar. Não havia mais nada que pudesse lhe amedrontar naquela noite. As lágrimas caíam de seus olhos apenas porque se via sozinha, sem a companhia de Abel, que continuava vivo, mas estava morto. Ela sabia que ele jamais voltaria.
Quando Rosana chegou em casa, sua família estava toda reunida na cozinha, de mãos dadas, rezando. Francisca pulou para abraçar a menina assim que a viu entrar pela porta e a encheu de beijos. Severino notou que ela tremia e chorava, por isso pediu que se sentasse.
— O que aconteceu, Rosinha? — Pedro perguntou com preocupação.
A garota abriu a boca para contar sobre seu encontro maldito. No entanto, o ar travou em sua garganta, engasgando-a. A mãe se apressou para lhe trazer um copo d'água. Rosana bebeu devagar, como o pai aconselhara, e voltou a abrir a boca. Seus lábios e língua se mexeram, mas não emitiram som algum, então voltou a se engasgar.
— O que tá acontecendo? — Rosana perguntou para si mesmo, olhando para o chão e com as duas mãos sobre a garganta.
Havia apenas uma palavra em sua mente, falhou ao tentar pronunciá-la em todas suas tentativas. Tentou outra que pudesse dar o mesmo sentido, mas não conseguiu. Sua garganta doía de tanto tossir, sua língua ardia, seu estômago doía.
A menina desabou em lágrimas, desistindo.
— Filha, — Severino falou com calma — cadê o cachorro?
Rosana tentou falar mais uma vez, fazendo todo esforço que conseguia e quase vomitou.
— Eu vi ele se soltando da corda e vi você correndo atrás dele — Pedro falou. — Ele fugiu e você seguiu ele, não foi?
— Sim — Rosana falou com voz pequena, surpresa por ter finalmente conseguido falar alguma coisa.
— Eu te chamei, mas você não ouviu. Cheguei a correr atrás de vocês, mas foram tão rápidos que os perdi. — Pedro falava com voz fraca, justificando-se como se quisesse pedir desculpas. — Ele foi para a fazenda do seo Geraldo?
— Não.
— Ele continuou correndo? Para onde foi?
Rosana tentou falar mais uma vez e parou ao sentir a pontada na garganta. Uma lágrima solitária escorreu por sua bochecha. Agoniada, ela cobriu o rosto.
— Ele correu. — A voz saiu abafada.
— Se continuou reto então foi parar no meio da mata — disse Severino. Rosana apenas concordou com a cabeça suavemente. — O que aconteceu com ele?
Ela não conseguia responder, na verdade, mal tentou.
— Ele vai voltar? — Pedro perguntou. A menina negou com a cabeça dolorosamente, sentindo tudo de novo. — Por que não consegue nos contar tudo, Rosinha?
— Eu… — Rosana tentou explicar mais uma vez e foi tomada por outro acesso de tosse. — Eu só não consigo. Minha garganta, minha barriga… Tudo dói.
— O Cão — Francisca falou de repente. — O diabo fez isso com ela, só pode. Eu sempre soube que aquele lugar era do cão. É por isso que Abel não vai voltar, não é, minha filha?
Não. O motivo era outro, mas talvez o dragão não fosse assim tão diferente de um demônio. Podia até mesmo ser um. Afinal, não era por isso que São Jorge tinha matado aquele dragão? Para livrar os homens de Deus das garras persuasivas dos demônios.
Rosana concordou com as afirmações da mãe, que reforçou que sempre desconfiou da presença de demônios por aquelas redondezas. Só isso poderia explicar todos os males que atingiam a família.
Francisca, Severino e Pedro passaram horas a fio conversando sobre as desgraças que encontravam por ali, sobre como precisavam manter todos longe da mata onde o cachorro tinha sido assassinado. Quando o sol nasceu, foram até a fazenda vizinha relatar o ocorrido e alertar toda a família de Geraldo. O homem quis ver com os próprios olhos, mas se acovardou ao se aproximar da mata densa.
Ninguém mais se aproximou do lugar. Os poucos que se arriscavam diziam ouvir uivos e latidos com a força de um trovão e voltavam para suas casas com as calças borradas. Passaram a chamar o lugar de Gruta do Cão, outros a chamassem de Gruta do Diabo. A lenda dizia que lá uma garota e seu cãozinho tinham sido devorados pelo próprio diabo ali. Outras versões contavam que a menina sobrevivera, mas tinha perdido a voz. Ninguém sabia o que era verdade.
Exceto Rosana, que desde aquele dia, desistiu de tentar contar a alguém o que tinha visto. O silêncio forçado também lhe causava dor, em todas suas formas. As memórias voltavam a ela o tempo todo, menos quando dormia. E Rosana passou a dormir o tempo todo, sem sonhos nem pesadelos, vivendo num mundo onde nada existia.