"Sagae, vamos parar por aqui, eu não aguento mais continuar a viagem."
Uma voz rouca que soava como o arrastar de uma pilha de folhas secas soou do velho homem que era carregado por seu neto. Hoje, completava o quinto dia de viagem em busca do estimado curandeiro que residia em Taoxi.
Uma camada de neve espeça se espalhava pelo chão, assim como nas árvores altas em formato de cone.
"Vovô Luo, ainda não... você não pode me deixar! Dê-me mais uma semana, é tudo que preciso para levá-lo ao Distrito de Taoxi."
Lágrimas rolavam pelo rosto de Sagae. Seu avô, o último de seus parentes, se tornou vítima de uma das piores pestes que já atingiram o sul do Continente.
Deixando de lado as tosses e marcas escuras por toda sua pele, as forças de seu avô haviam chegado em um ponto crítico, provavelmente não haveria cura para seus sintomas graves.
"Minha criança, em uma semana você completará seu décimo quinto aniversário, mas você já é tão responsável... Ponha-me no chão."
Sagae parou por um instante, sentando seu avô sobre um tronco de árvore seco, já derrubado. Retirou de sua bolsa um recipiente com água fresca e deu-lhe para beber.
Recusando, o velho homem continuou: "Escute atentamente, Sagae. Você é o último remanescente da família Wuji, mas isso não é motivo de preocupação. Ser sozinho também pode ser bom."
Levando suas mãos ao rosto, ele tossiu sangue. Isso não o impediu de continuar a falar: "Volte para casa, continue cultivando e assim você conseguirá se manter vivo e alimentado. Eu realmente queria ter lhe dado a oportunidade de crescer como um cultivador, esse é meu único arrependimento."
"Vovô, não se culpe... O único culpado é meu corpo inútil, incapaz de avançar nem mesmo para o terceiro nível do primeiro grau espiritual." Sagae cerrou os punhos e continuou: "Eu lhe prometo, vovô, este não é o fim da família Wuji."
Sagae segurou as mãos de seu avô, esperando por uma resposta que nunca chegou. O brilho em seus olhos havia se apagado e seu corpo já começava a se tornar tão frio quanto a neve que os cercava.
"Vovô..."
Ele se ajoelhou e agradeceu profundamente. Apesar de nunca terem vivido como nobres, seu avô sempre se esforçou para fornecer o melhor para todos os seus netos. A família Wuji era grande e tinha um importante papel na alimentação dos moradores da vila mais ao sul de Taoxi.
Tudo isso foi por água abaixo desde a chegada da peste. De um ano para o outro a família Wuji fora reduzida de 50 membros para um único membro.
Apesar de seus pais terem morrido alguns meses após seu nascimento, o impacto de ter o resto da família dizimada ainda era tão doloroso quanto ter uma facada enfiada em seu peito.
"Vou encontrar um lugar digno de receber seu corpo, vovô."
Sagae seguiu caminhando com o corpo de seu avô até finalmente encontrar um local no cume de uma pequena montanha. Todo o local emitia uma fragrância suave que rapidamente fez a mente do jovem se acalmar.
Neste ponto a neve parecia ter se dissolvido no solo macio coberto por uma espécie de gramínea semi-transparente. Tudo parecia perfeito para o descanso eterno de vovô Luo, afinal, ele merecia isso.
"Espero que você aprecie essa linda vista, vovô."
De fato, a vista era de perder o fôlego. Distante no horizonte era possível enxergar até mesmo o oceano ao Sul. Sagae não demorou mais e começou a cavar com as mãos nuas.
Devido aos diversos anos trabalhando com seu avô na produção de trigo e outras sementes, o braço de Sagae não era nem um pouco fraco, podendo se igualar até mesmo ao físico de um homem de vinte e poucos anos.
Somando isso às técnicas de botânica da família Wuji, abrir um buraco no chão era realmente uma tarefa tão fácil quanto levantar os braços. Uma pequena camada de luz branca envolveu as mãos de Sagae.
Todo o processo foi mentalmente doloroso, mas vendo a paz no olhar de seu avô, o coração de Sagae pôde descansar.
O Sol havia começado a se esconder quando Sagae finalmente se deu conta de que apesar da morte de seu avô, sua vida ainda continuaria. Esse sentimento o fez enxergar o quão pequena era a importância dos humanos para o funcionamento do universo. Mesmo se fosse ele ali, enterrado no chão, nada mudaria.
Ele estava sem sono, mas não se atreveu a voltar para casa. A trilha que levava ao centro do distrito de Taoxi era rodeada por uma densa floresta congelada. Apesar do frio realmente ser um problema, o verdadeiro perigo estava nas criaturas que habitavam aquele local.
Sagae procurou um local ideal e se sentou para cultivar. A fragrância doce da montanha parecia impulsionar seu cultivo, já que sua energia interna parecia tão agitada. Isso não adiantava muita coisa, afinal, seu dantian havia nascido com um problema que o impedia de avançar até mesmo para o terceiro nível do primeiro grau espiritual.
Apesar disso, a sensação ainda era bastante confortável. Horas se passaram, mas o sono de Sagae ainda não havia chegado, isso não era realmente ruim. Ter a energia externa da montanha do túmulo penetrando em seus poros era algo refrescante e prazeroso. A noite passou como um sopro, com a mente de Sagae lentamente assimilando a morte de seu avô.
"Eu vou trazer a glória novamente à nossa família, vovô."
Sagae se virou, deu uma última olhada para o túmulo e finalmente partiu. O caminho de volta, apesar de ser o mesmo, não levou tanto tempo, afinal, ele não precisava mais carregar um corpo. Chegando à antiga residência da família Wuji, Sagae sentiu um aperto em seu peito. O cenário inteiro parecia triste e pesado, de certa forma, incompleto. Qualquer pessoa vinda de fora não acreditaria que alguns anos atrás, aquele local foi repleto de vida.
A semana se passou rapidamente e nada especial aconteceu. Sagae acordou cedo como de costume e iniciou sua rotina diária de agricultura e plantação. A pesada enxada de ferro colidia fortemente com o solo, emitindo um ruído alto e rígido a cada golpe.
"Com licença."
Sagae fincou a enxada no chão e se virou para a pessoa que havia o chamado. Nos últimos dias ele não havia dado tanta atenção para sua própria aparência, então ele não estava realmente apresentável. Apesar disso, Sagae não se importava realmente. Seu olhar focou na garota que estava parada em sua frente por alguns segundos, esperando-a falar, mas nada aconteceu.
Impacientemente, ele disse: "O que você quer?"
Como se parecendo acordar de algum sonho a garota finalmente continuou: "Meu nome é Leman, Você deve ser o Sagae."
"Sim, sou eu."
"Minha tia pediu para verificar se você estava se alimentando corretamente."
Leman tinha um rosto bonito e usava um vestido branco que deixava suas curvas bem nítidas, as ondas formadas pelo corpo de Leman flutuavam com o vento. Apesar do cenário, Leman ainda parecia com uma fada.
A expressão de Sagae, no entanto, ainda era a mesma. Ele se lembrou que seu avô, antes da doença, era bastante querido entre os moradores das vilas vizinhas, provavelmente Leman era sobrinha de uma dessas pessoas.
"Diga à sua tia que estou bem, há comida suficiente para passar a temporada." Ele respondeu Leman e voltou a manejar a enxada.
"Ok, ainda assim vou deixar essa cesta com alguns doces e frutas." A menina deixou a cesta em cima de um carrinho de mão e continuou observando, enquanto Sagae manejava a enxada para cima e para baixo.
Apesar de focar sua atenção 100% no trabalho, agora, com o olhar da garota penetrando diretamente a sua alma, ele não conseguiu mais continuar.
Fincando novamente a enxada no chão, ele perguntou: "Você precisa de mais alguma coisa?"
"Só estou pensando que talvez seja mais fácil executar esse trabalho se você infundir poder espiritual na ferramenta."
Sagae encarou a garota por alguns segundos, sua mente só pôde pensar em uma coisa: 'Mestra espiritual'.
Desde o início da conversa Sagae não estava realmente interessado no assunto. Mas quando Leman finalmente citou o 'poder espiritual', uma curiosidade sem precedentes brotou no seu coração: "Leman, em que nível chegou seu cultivo espiritual?"
Ela respondeu: "Segundo nível do segundo grau."
Sua expressão caiu 'Segundo nível?! Tão jovem?'. Ele realmente ficou sem palavras.
Vendo que Sagae parecia em choque, ela voltou a falar: "Mas isso não é tanto assim... Nossa geração possui gênios muito mais impressionantes."
De fato, o conhecimento que Sagae tinha referente ao mundo do cultivo era muito pouco, ele não fazia a mínima ideia das médias de poder entre os cultivadores.
"Para mim, você continua sendo bastante impressionante. No entanto, meu núcleo não pode passar do terceiro nível do primeiro grau."
Essa informação pareceu deixar Leman um pouco desconfortável.
"Oh... Eu não sabia sobre isso, desculpe-me." O rosto de Leman corou. Ela finalmente se virou para partir. "Eu estou indo agora, não se esqueça de comer os doces."
"Obrigado, não vou esquecer." Assim que ela saiu, ele voltou a manejar a enxada.
Na realidade, aplicar poder espiritual na enxada de Sagae não era realmente impossível. No entanto, devido ao seu baixo nível cultivo, se tornaria impossível manter o aprimoramento espiritual por mais de alguns minutos.
O resto do dia não foi muito diferente. Sagae continuou plantando e colhendo até finalmente encerrar suas tarefas diárias, parecia que os negócios da família Wuji voltariam ao normal logo, logo.
Ele entrou, tomou um banho gelado e deu uma olhada nos doces de Leman. Haviam alguns bombons e pequenas frutas. Fazia algum tempo que Sagae não comia coisas tão gostosas.
Um sentimento difícil de entender passou a tomar conta do coração de Sagae. Preocupação era um sentimento que não poderia ser comprado, e após a morte de sua família, Sagae não imaginava que alguém se preocuparia com ele tão cedo. Seus olhos já estavam molhados quando um som vindo de fora o acordou.
Uma explosão longe e quase imperceptível veio do céu. Sagae nunca foi um homem medroso, e logo pensou: 'Deve ser um relâmpago'
Olhando através da janela, Sagae passou seu olhar pelo céu estrelado. A lua, hoje, parecia ainda maior e mais bonita. focando em sua plantação, pequenas mudas poderiam ser vistas por toda parte, era difícil não se sentir orgulho.
"As coisas estão começando a- "
Sua visão focou em uma silhueta preta quase totalmente imersa no ambiente. Ela estava claramente abaixada sobre a plantação, provavelmente arruinando-a.
"Como se eu fosse deixá-lo brincar em minha propriedade."
Devido a distância era impossível distinguir o formato da sombra, apenas leves movimentos puderam ser vistos. Sagae segurou sua foice com força, ele sabia que não poderia contar com poder espiritual, logo, sua força interna era tudo o que ele tinha.
Abrindo a porta com a foice e uma pequena lamparina, Sagae avançou bravamente em direção a silhueta que se tornou mais nítida a cada passo. Quando apenas 5 metros os separavam a figura misteriosa se tornou clara como a luz do dia.
Um enorme coelho de olhos vermelhos o encarava. Seu tamanho era suficiente para alcançar sua cintura.
'Como pode existir um coelho tão grande? Seja como for, você não pode brincar como quiser por aqui!'
Sagae balançou a foice em direção ao coelho gigante, apenas na intenção de assusta-lo, mas o animal nem mesmo se moveu. Sua boca igualmente grande mastigava as plantas que foram retiradas do chão.
"Maldito, você é tão burro que nem mesmo tem noção do perigo? Eu não queria fazer isso, mas..."
A foice balançou de baixo para cima novamente, dessa vez, sem parar, Sagae golpeou diversas vezes. Os olhos do coelho se tornaram mais brilhantes durante alguns segundos, parecia que finalmente ele havia se dado conta do perigo. Um borrão foi tudo que Sagae viu, e logo não havia nada em sua frente.
"Tão rápido?!"
O coelho saltou em direção à floresta gélida além dos limites das cercas da família Wuji. Vovô Luo sempre repetia: 'Todo mal deve ser cortado pela raíz, ou você estará fazendo mal à própria plantação.'
Sagae levava todas as palavras de seu falecido avô como regra, portanto, ele não se segurou e seguiu atrás do Coelho veloz.
"Volte aqui, maldito. Não seja um covarde, sua família nunca lhe ensinou isso?"
Pulando a cerca, Sagae seguiu as pegadas e sons vindos da floresta, mas não havia sinal do coelho. Agora, a luz de sua lamparina era a única coisa que iluminava o local.
"Droga, eu estou me destacando demais. Já que o pequeno maldito não aparece, então amanhã eu venho buscá-lo."
Como se parecesse entender a voz de Sagae, o coelho finalmente apareceu. A foice balançou rapidamente mas o coelho parecia incorpóreo de tão rápido. Se fosse apenas isso, ainda estaria tudo bem, no entanto, uma segunda silhueta apareceu.
Como se não bastasse, uma terceira, quarta e quinta figuras também apareceram, todos eram coelhos de diversos tamanhos, o maior, poderia alcançar o peito de Sagae.
'Ele me trouxe para uma armadilha?' O coração de Sagae parou por alguns segundos encarando os cinco coelhos enormes. A pior parte era que todas as vias de fuga tinham um coelho gigante bloqueando.
"Irmãos coelhos, eu realmente não entendo o motivo de tamanha intimidação, nossas famílias nunca tiveram nenhum conflito..." Sagae gesticulava com as mãos enquanto tentava negociar com os animais. Qualquer pessoa que acompanhasse essa cena cairia em gargalhadas, como poderiam os coelhos entenderem as palavras de um ser humano?
Mesmo que entendessem, eles não agiriam levianamente com Sagae, afinal, a família Wuji tinha caçadores espirituais especializados em acabar com bestas e animais que representassem o mínimo perigo para os negócios. Mas isso era antes, agora, apenas Sagae poderia proteger seu terreno e ele obviamente não possuía forças para tal.
O rosto do coelho maior se distorceu um pouco, como se houvesse um traço de zombaria em sua expressão.
'Maldito'
Os minutos seguintes não foram nada contentes, os coelhos pularam diretamente em Sagae, cada um mordendo, arranhando e cortando a pele do último membro da família Wuji.
"Parem" Ele usou as mãos para se proteger, mas os coelhos eram muito fortes "Eu imploro, por favor" Ele gritou mais alto, porém ninguém poderia ouvir tão longe na floresta. "Socorro!".
Seus dedos foram devorados, assim como alguns pedaços da sua mão. Seu estado atual era de dar pena, mas não havia sinal de que os coelhos parariam tão cedo.
"Droga, eu só queria ser mais forte. Não consigo nem mesmo cuidar de mim."
Os coelhos destruíam cada um de seus membros, sobreviver à um ataque conjunto como esses seria praticamente impossível.
'Vou morrer tão jovem?Desculpe-me, vovô, eu realmente queria reerguer a família Wuji.'
A consciência de Sagae perdeu para a dor, seus olhos se fecharam e os malditos coelhos gigantes continuaram devorando seu corpo, até que... Um som ainda mais alto do que o último foi emitido do Céu. Trovões? Não, era algo ainda mais poderoso. Uma linha flamejante se formou entre as estrelas, alguma coisa estava caindo.
Os coelhos pararam sua sessão de mutilação e olharam para cima. Pela primeira vez na noite um traço de medo surgiu nos olhos de cada um. Eles não demoraram e rapidamente abandonaram o corpo de Sagae no meio da floresta escura. Mesmo se estivesse acordado, ele ainda não poderia fugir de seja lá o que estivesse se aproximando pelos céus.
Nada mais que alguns segundo se passaram até que finalmente o impacto estrondoso varreu tudo que estava em um raio de 10 metros para ainda mais longe. Ninguém além de Sagae estava próximo o suficiente para enxergar o que exatamente caiu do céu.
Um círculo de fogo se formou ao redor dos destroços vindos do céu, quando a poeira baixou, no centro não havia nada além de uma mão.
A mão completamente negra possuía um total de seis dedos, cada um contendo um anel de cor diferente. De início, ela parecia sem vida, mas logo, assim como uma aranha, ela começou a andar de um lado para o outro, se não houvesse um círculo de fogo no chão, acompanhado por um corpo mutilado ao lado, a cena seria um tanto cômica.
Como se parecesse atraída pelo cheiro do sangue, ela se aproximou de Sagae. A mão andou ao redor dele, parecia sondar seu corpo, até que finalmente pulou em seu peito e se dissolveu em sua pele.
Tudo isso não durou mais que alguns minutos. Na floresta, uma aura de morte se espalhou, dentro de 50 metros, todas as árvores, plantas e animais secaram. Nem mesmo os coelhos poderosos se atreveram a entrar nesta área.
Enquanto isso, o corpo de Sagae, anteriormente na linha entre a vida e a morte lentamente recuperou sua vitalidade. Seus membros destroçados se reconstruíram como se o tempo voltasse, um chifre negro surgiu na lateral de sua testa, fazendo-o parecer como uma besta assustadora durante alguns minutos. Após uma quantidade substancial de horas, tudo que restou na floresta foi um corpo seminu próximo ao círculo de terra queimada.
"Sa-Sagae?" Uma voz doce quebrou o silêncio da floresta morta. O sol já havia nascido e a fragrância mortal também deixou de existir, sendo absorvida pelo corpo de Sagae.