Aka Yuki dormia aquecida e confortável sob quatro cobertas na sua cama
de palha, quando de repente...
— YUKI! — sua mãe gritou — Mensagem da vovó. Venha, venha!
Normalmente Yuki pularia da cama e desceria as escadas voando, ela
adorava a "vovó Mori" e era raríssimo receber um corvo mensageiro dela.
Mas daquela vez ela não ousou mexer um dedo.
Sua cama era o único refúgio do frio daquele inverno insuportável. Um
paraíso de calor. Num piscar de olhos ela voltou a dormir. Mas não durou
muito.
Yuki, acorde – sua mãe disse com uma voz serena — Sua avó precisa de
você.
Então Yuki se virou e viu sua mãe sentada ao lado da cama, segurando um
pacote comprido enrolado em um pano pardo.
— O que está acontecendo mãe?
— Sua avó nos mandou um corvo. Uma tempestade destruiu todos os
mantimentos do armazém dela. Nesse inverno, filha... — ela engoliu seco
— logo ela não terá o que comer.
— A gente tem que levar a comida daqui da fazenda para ela, mãe! – Yuki
jogou suas cobertas e pulou da cama procurando seu casaco de peles
preferido — Eu arrumo nossas coisas enquanto você...
— Não, Yuki. Você vai sozinha. — as duas se olharam por um tempo em
silêncio — Seu pai está viajando, só tem eu para guardar nossa fazenda.
Você tem que dar conta.
— Eu consigo, mãe, já sou forte e...
— Escute, Yuki — sua mãe falou séria — Existe um motivo para quase
nunca vermos sua avó. O caminho é extremamente perigoso.
— Eu dou conta mãe, relaxa
Não é brincadeira, você pode morrer! — ela limpou algumas lágrimas que
escaparam dos seus olhos e voltou a dizer com uma voz trêmula —
Enrolado nestes panos está a katana que protege nossa família há mais de
dez gerações, nunca olhe para ele em vão, nunca. Leve ele escondido
dentro do seu casaco. E só use se estiver em perigo.
Era muito para Yuki processar ao mesmo tempo... e o semblante sério da
sua mãe a deixou preocupada. Ela pegou a katana envolto naqueles panos
pardos imaginando como ele seria. Forçou um sorriso falso e acariciou o
rosto de sua mãe.
— Fica tranquila, vai dar tudo certo, se algo acontecer, vou honrar nossos
ancestrais com essa katana! — disse torcendo para estar certa.
— Filha, mais uma coisa. Aqui está um mapa do caminho, não saia da rota!
Lá é muito perigoso — ela hesitou segurando um soluço choroso — Lá tem
feras selvagens e pessoas más, não confie em ninguém! Agora desça comer
enquanto eu pego os mantimentos que você levará para sua avó.
Yuki agradeceu e sua mãe desceu rápido para arrumar a mochila da
viagem.
Enquanto a menina devorava pães e ovos fritos, via sua mãe para lá e para
cá tentando esconder o choro. Yuki terminou o café, pegou o mochilão
preparado para a viagem, encaixou a katana na cintura e fechou bem seu
casaco vermelho.
— Estou pronta mãe, logo nos veremos de novo! — falou com
determinação e confiança.
Elas se abraçaram e se despediram em silêncio. Quando Yuki partiu voltou
a nevar, ela ergueu o capuz do casaco vermelho e sua mãe assistiu ela se
distanciar de costas. Yuki já era uma adolescente forte, mas sua mãe só
sabia enxergar uma menininha de casaco e chapeuzinho vermelho, indo em
direção a perigosa floresta das montanhas, cada vez mais longe...
Até se transformar apenas num pontinho vermelho em meio ao horizonte
branco do inverno.
***
Yuki viajou a manhã inteira sem parar.
Pensava. "Não posso deixar a vó Mori passar fome!"
Seguindo o mapa que sua mãe deu, logo ela entrou na floresta em direção
ao norte. No começo tudo deu certo, as copas das árvores protegiam ela do
vento e da neve, o chão áspero coberto de folhas secas e gravetos ajudava a
andar rápido.
Mas a sorte não durou tanto, conforme avançava as árvores ficavam mais
espaçadas, a brisa fria e os flocos congelados penetravam na mata,
deixando o chão escorregadio e a menina com frio. Ela levou alguns
tombos doloridos, ainda assim manteve o ritmo e chegou cedo onde
nasciam as montanhas.
"Nossa, será que são as montanhas do mapa? Se forem, já andei metade da
trilha. Ainda hoje eu chego na vovó!"
Ela não podia estar mais errada...
O caminho demarcado por sua mãe ficou tortuoso e lento, para contornar o
sopé das montanhas era necessário desviar de paredões, ribanceiras, rios
recém congelados... isso sem contar que a cada passo Yuki afundava sua
bota na neve fofa e alta. Naquele mar branco era cada vez mais difícil
identificar onde ela estava no mapa. Sentiu medo e até pensou em desistir,
mas seguiu com fé e determinação!
O sol se punha quando ela finalmente recebeu sua recompensa, "Aleluia!
Uma floresta sem neve no chão!"
Yuki armou sua barraca embaixo de uma árvore grande, acendeu uma
fogueira com galhos secos e pedras, comeu e depois guardou as pedras
aquecidas em seu saco de dormir.
Desmaiou assim que entrou no saco de dormir com pedras quentes. Ficou
na mesma posição até o meio da madrugada, quando despertou com um
murmurar estranho.
— Quem está aí!? — disse enquanto saltou para fora da barraca, tentando
desenrolar os panos pardos que envolviam o Katana de sua família —
Apareça!!!
Então um Youkai, um lobo humanoide, saiu do meio das árvores sorrindo
com os caninos a mostra. Seus olhos cintilavam e ele imaginava de que
forma iria devorar aquela menina assustada.
— O que faz sozinha nessa floresta tão perigosa? — e zombou — Menina
do chapeuzinho vermelho.
Então Yuki finalmente revelou seu Katana, que brilhou na noite como a luz
da lua! Era feito de uma liga branca como a neve, com a bainha cravejada
de rubis, cuja luz vermelha penetrou no fundo dos olhos assustados do
Youkai.
— Ca-calma, chapeuzinho! Eu venho em paz.
— Eu não confio em você, fera, suma daqui!
— Eu não sou uma fera, sou inofensivo, eu sou...
— Você é um Youkai. Minha avó já me contou várias histórias sobre
Youkais e vocês não são nada inofensivos. Afaste-se agora ou prove o
sabor da minha lâmina.
— E o que sua avó sabe sobre os Youkais dessa floresta, em? Nada!
— Sabe sim! Ela mora aqui perto!
O Youkai sorriu com a inocência da menina e tentou se aproveitar.
— Se você ouviu histórias sobre os Youkais, sabe que podemos ser
civilizados.
— Não acredito em você, fera.
— Pois deveria. E pare de me chamar de fera, eu tenho nome, me chamo
Kemono.
— Perdão... suma da minha frente ou morra, Kemono.
— Calma, vou te chamar de chapeuzinho. Você sabe que essa floresta é
perigosa?
— Sim. Agora vá embora!
— E já ouviu histórias sobre assassinos na floresta?
— Sim.
— Eu estou sendo caçado por assassinos que querem me empalhar, como
um troféu, um exemplar exótico para sua coleção de feras. Nisso você
acredita?
— Bem... talvez...
— Por favor, me ajude.
— Eh... o que você quer?
— Me proteja esta noite, me deixe dormir com você, sua katana com
certeza vai afugentar qualquer malfeitor.
— Jamais!
— Ora, chapeuzinho, então, se encontrar alguém na estrada, diga que não
sou uma fera e que é para me deixarem em paz de uma vez. Por favor!
Yuki era uma menina de bom coração, ficou com pena das palavras tristes
dele.
— Está bom, Kemono, mas vá embora! Amanhã eu tenho uma longa
viagem e preciso dormir. Se eu te ver de novo, juro que te mato!
— Sim, sim, tudo bem. Já que você me ajudou, acho que posso te ajudar
também. Você está perdida?
— Não, eu sei muito bem onde estou.
— E para onde você vai?
— Para a casa da minha avó.
— E onde fica isso?
— Não vou te contar, mas é depois dessa floresta.
— Ah, sim... deve ser nas campinas do norte. O melhor caminho para lá é
na trilha a esquerda daquela rocha.
— Por quê?
— Porque é um atalho, mais rápido e seguro.
— E por que devo acreditar em você?
— Não precisa, amanhã de manhã você enxergará melhor, com seus
próprios olhinhos. Tenho certeza que concordará comigo. Boa noite,
chapeuzinho. Até uma próxima, quem sabe.
— Boa noite, Kemono. Até nunca mais!
***
Yuki dormiu e acordou abraçada com sua katana.
Ela admirou aquela arma por alguns instantes até se tocar que deveria usar
ela somente quando necessário. Então a escondeu dentro de sua capa e
seguiu viagem para a casa de sua avó.
"Bem, estou viva. Se o Youkai não me atacou à noite, acho que posso
considerar o que ele me falou."
Quando chegou na rocha que o Youkai comentou, analisou o caminho
sugerido. Parecia muito melhor que o caminho do mapa de sua mãe. Então
Yuki decidiu confiar em Kemono e partiu pelo atalho.
Após andar um pouco, Yuki viu se aproximar um samurai robusto que
usava armadura de batalha. Ela pegou na bainha de sua katana por baixo de
sua capa.
— Não chegue perto, ronin, ou será atacado! — disse tremendo de medo.
— Menina, não sou um ronin, sou um samurai dos feudos das campinas. E
estou caçando um Youkai.
— Deixe ele em paz, seu assassino!
— Como assim deixe ele em paz!? Aquele Youkai vem assassinando
viajantes nesta floresta há anos!
— Ele é inocente e tem nome, se chama... — então, foi interrompida pelo
samurai.
— Sim, ele tem nome. Se chama Kemono, o Carniceiro! Menina insolente.
— Co-como?
O samurai se aproximou. Confusa, Yuki desembainhou sua majestosa
katana branco cravejado de rubis, que reluziu com força suas cores outra
vez. O samurai esbugalhou os olhos e se ajoelhou.
— Honorável ancestral de Aka Tsuki, o Libertador, perdoe minha
infelicidade e falta de educação. Mas saiba que digo a verdade, pela minha
honra samurai. — disse curvando-se mais ainda em reverência.
— Não, não pode ser!
— Você deve ser parente da senhora sacerdotisa, Naoso Mori.
— Sim! Ela é minha avó e acho que... droga! O Youkai foi atrás dela
ontem a noite!
— Temo dizer que pode ser tarde demais.
Yuki partiu correndo de volta para o caminho que sua mãe indicou no
mapa, deixando o samurai sem olhar para trás, ignorando todos os
chamados dele.
Enquanto isso, nas campinas ao norte do outro lado da floresta, a avó de
Yuki estava ajoelhada na varanda de sua cabana de madeira. Ela esculpia
um vaso de gelo cheio de detalhes e inscrições.
Curvada e concentrada em seu ofício, a senhora entalhava as últimas
gravuras no delicado vaso, quando ouvi um ruído vindo da floresta.
Ela se virou e viu Kemono, o Carniceiro. O Youkai mostrou os dentes num
rosnado feroz, abriu suas garras e avançou.
***
Yuki avistou a cabana de sua avó e desabou no chão.
Ofegante, ela tentou recuperar suas forças, enquanto pegava a katana de sua
família.
"Maldito Youkai traiçoeiro, se você fez algo com minha avó eu vou me
certificar de que todos da sua raça que respiram deem seu último sopro de
vida sob a lâmina do minha katana"
De longe, viu algo inusitado. Sua avó estava sentada de costas na varanda,
mexendo em um vaso de gelo. Mas ela parecia muito maior do que se
lembrava, seu vestido estava extremamente apertado e ela não se virou
mesmo quando ouviu sua voz.
— Vovó? Você está bem? — Yuki perguntou enquanto se aproximava com
medo.
— Estou sim querida, mas estou muito ocupada, por favor espere aí que a
vovó já vai.
Desconfiada, Yuki foi se aproximando devagar, passo a passo.
— Vovó, por que você está de costas?
— É para trabalhar melhor no meu vaso, minha querida.
— Vovó... e por que está tão curvada? — continuou dirigindo-se até a
cabana.
— É para enxergar melhor o meu vaso, netinha.
— Vovó, e porque você não se vira para me ver? — disse já com a sua
katana nas mãos.
— É porque a vovó está concentrada no vaso, meu amorzinho.
— E por que você está tão grande, vovó? — disse subindo os degraus da
varanda.
— É para te proteger melhor dos perigos — e finalmente virou mostrando
seu corpo de Youkai.
Yuki saltou desferindo um golpe de sua katana. Mas o Youkai desviou.
— Sou eu, Yuki, sua avó, não precisa me atacar! — desviou novamente de
outro golpe de Yuki.
— Maldito, Kemono! Eu vou te matar!!! — e pulou golpeando o Youkai de
cima para baixo.
Mas o Youkai conseguiu segurar o cabo de sua katana e desarmou Yuki.
Ele carregou a menina até dentro da cabana e amarrou ela numa das
cadeiras da cozinha.
Então o Youkai trouxe o vaso de gelo e a sua katana da família de Yuki,
colocou os dois na mesa da cozinha e se sentou na frente da menina.
— Yuki, eu sou sua avó, Mori.
— Não é não! Eu vou te matar e vou matar todos os Youkais que
existem!!! Kemono seu desgraçado!!! — lágrimas de raiva vertiam dos
olhos de Yuki.
Não, minha netinha. Eu sou híbrida. Meio humana, meio Youkai —
enquanto dizia isso, começou a se transformar em humana.
Yuki não pôde acreditar no que viu. De fato, aquele Youkai se transformou
na sua avó! Era ela, Naoso Mori!
— V-Vó, o que es-está acontecendo? Você é o assassino Kemono?!? —
disse aterrorizada.
— Claro que não, Yuki! Eu sou uma sacerdotisa fiel à doutrina! De onde
tirou isso... deixa eu te desamarrar — e começou a desamarrar sua neta.
— Vovó escute, Kemono, o Carniceiro está a caminho daqui!
— Aquele cão sarnento? Chegou antes que você — disse sorrindo.
— E o que você fez? Derrotou ele como Youkai? Onde ele está?
— Não querida, ele está bem na sua frente — Mori notou a feição perplexa
de sua neta e continuou — eu selei ele dentro desse vaso de gelo aí.
Yuki arregalou os olhos, surpresa com a naturalidade de sua avó. Então,
fitou o vaso e notou alguns ideogramas arcaicos entalhados no gelo.
— Co-como?
— Minha netinha, você tem muito o que aprender sobre os poderes de uma
sacerdotisa. E sobre nosso sangue ancestral de Youkai — disse enquanto
mexia no mochilão que Yuki trouxe — deixe me ver o que você trouxe de
bom... vamos preparar algo para comer enquanto eu te ensino umas
coisinhas!
FIM