Me sinto flutuando nessa melodia, apesar de não ser recente, nunca deixou de ser minha música favorita. Batuco com meus dedos no volante de meu Impala 67 ao ritmo de "A Man without love". Não me julgue, sempre fui um amante de coisas antigas. Elas me fazem que eu me sinta em casa, apesar de quem viveu essa época foram meus pais.
Talvez eu ame isso, por causa deles. Perdi as contas de quantas vezes acordei num sábado, ao som da doce voz da minha querida mãe cantando esta música, enquanto fazia cookies e outras guloseimas para mim e meu pai. Essa doce lembrança, me trouxe um gosto amargo e uma fisgada em meu peito. A dor de estar perdendo a mulher mais doce, meu eterno amor, sempre acumula peso atrás de meus olhos.
Pior do que perder, é ver você perdendo e perceber que está de mãos atadas. Só lhe resta olhar.
Desligo a música e mexo minha cabeça bruscamente para espantar lembranças tão boas e penosas. Ficar deste jeito em plena quarta-feira me dá a sensação de que estou definhando.
Não demora muito para eu ver o grande colégio a pouco menos de 1km. O céu está tão nublado, uma sensação fúnebre gruda em meu peito. Não que eu não ame dias chuvosos e o vento gelado cortando meus lábios. Mas hoje está particularmente esquisito. Perdido em pensamentos banais como o tempo, nem percebi que acabei passando da vaga de estacionar. Onde estou com a cabeça?
Estaciono em outra vaga, um pouco mais afastada da que eu sempre estaciono, encaro a enorme pilha de papéis que está no banco do meu lado com um suspiro baixo. Nunca gostei de ler, mas a busca por conhecimento sempre me fascinou, mas quase sempre me pergunto se era aqui que eu queria estar.
Eu sei que não.
Puxo para mim uma pasta preta e minha pilha de papéis. Só de olhar de relance já me causa uma repulsa, não pelas folhas em si, mas pelo o que está escrito.
O caos cotidiano que tem a minha volta é absolutamente reconfortante.
Alguns adolescentes apaixonados se beijando atrás de pilares de concreto, outros correndo, meninas rindo e conversando, um ou outro professor chegando e entrando no colégio e alguns pais estacionando em seguida dando seu beijinho habitual em seus filhos com eles retribuindo com um olhar rígido e reclamações de como aquilo é um mico.
Vou em direção a escola, subindo uma escada acinzentada. A escola é muito bem preservada, uma ou outra pichação e lixo no chão jogado por alunos porcos. Conhecida por sua educação rígida, é uma das principais e mais conhecidas do estado.
-Ei, professor - uma voz familiar fala atrás de mim, um pouco ofegante.
Sim?
Me viro para olhar e é um dos meus alunos. Mike, 2° ano turma B. Se não me falho na memória...
-Eu irei me apresentar sozinho. Pode ser? Estava pensando, estou em dúvida do que eu gosto. Eu adoro ciências mas...
-O'Que te fascina? - interrompo - Quando você pensa, no que você quer fazer agora, neste exato momento, o'que vem a sua mente? Essa é sua resposta. E você é novo demais - dou um sorriso de canto, afagando seus cabelos de molinhas alaranjadas. - você pode escolher ser qualquer coisa e fazer qualquer coisa. Você tem tempo de sobra. E sim, você pode se apresentar sozinho se não quer fazer com mais ninguém.
Seus olhinhos tem um olhar de deslumbre enquanto me encara, mas logo se apaga, deixando seus olhos num tom azul escuro, como o mar em dias chuvosos.
-O'Que houve, garoto?
-Eu não sou bom. Não no que eu gosto. Irei fazer sozinho porque... ah nada.
-Você acha que não é bom? Oras, você acha que eu sempre fui bom nas coisas que eu gosto? Eu canto muito mal, sabia? - tento aliviar o ar pesado e a tristeza do molecote. - a questão, é que ninguém nasce perfeito. Nascemos com talento, se formos sortudos, mas isso não basta. O'Que te fará bom é sua dedicação. Se você gosta de dançar, dance todos os dias três horas por dia. Molde sua performance, e quando você se olhar dançando de frente para o espelho, o jeito como flutua sobre seus pés, com movimentos graciosos você entenderá que é só questão de dedicação e prática.
O sinal toca, longo e estridente enquanto paro na frente da porta do colégio olhando para Mike.
Ele fica em silêncio por um tempo, talvez esteja digerindo, pensando se concorda comigo e quando finalmente chega em uma conclusão fala:
-Eu... maneiro professor. Você é muito foda. Melhor professor desse hospício. Valeu mesmo - seu sorriso está de orelha a orelha. Sinto uma satisfação em vê-lo assim.
-Obrigada. Ande para a sala.
Sim senhor - sai tropeçando pelo corredor e entrando na terceira porta a esquerda, com sua mochila batendo em suas costas fazendo barulhos metálicos.
Não ouso nem tentar entender, ou questionar o que ele carrega por aí.
Em meio a multidão, que é 98% de alunos indo em direção às suas salas, sempre me pego pensando oque cada um pensa. São várias personalidades, várias histórias e várias vidas. Parece um grande formigueiro, mas se fosse, se a escola fosse um grande formigueiro, me pergunto quem é a formiga rainha. Com certeza não seria nenhum diretor ou professor, os hormônios à flor da pele, a vontade de quebrar regras e ser notável impede a maioria de obedecer regras, tornando divertido quebra-las.
Aos poucos o longo corredor começa a ficar vazio, contendo apenas uma ou outra folha ou lixo de chicletes e outros doces que os alunos deixaram, a voz de dezenas de alunos conversando foi trocada por cadeiras e carteiras sendo arrastadas ao longe.
Mal noto a presença de Maria, a mulher da limpeza. Sempre silenciosa, mas sempre denunciada pelo barulho de seu esfregão e sua placa que está escrito "cuidado, chão molhado". Ela é uma senhora que desperta um carinho imediato com quem fala, apesar de que quase ninguém entende o que ela fala.
-Bom dia senhor - diz uma voz familiar falando mais alguma coisa baixo e veloz demais para eu compreender. Chuto ser algo haver com a infelicidade de não ter um dia ensolarado.
-Bom dia Maria. Como a senhora está? - sorrio de uma forma gentil, retribuindo seu sorriso carinhoso. Talvez ela não tenha me escutado, pois pega sua vassoura e começa a varrer o chão com seus olhos negros fixados e o sorriso ainda estampado. Mas ela me encara de novo, seus olhos sorrindo junto ao resto de sua face. - você me lembra tanto meu neto... Ande rapazinho, um professor não pode chegar atrasado - fala dando uma risada chiada.
Afago seu ombro, sentindo seu osso de tão franzina que é. Não sei muito sobre sua família, apenas que ela mora sozinha e ainda trabalha nesse colégio. Ela se desvia do meu afago voltando a varrer o chão, deixando esse pensamento em minha mente, um pensamento de dúvida que se depender dela, nunca vai ter uma resposta.
Dou as costas para Maria, e procuro a sala que devo dar aula. 3° ano turma C. Mal chego na porta e já consigo escutar meus alunos gritando feito um bando de animais. E acho, que nem animais gritavam tanto desse jeito. Mas ao abrir a porta, é como música para os meus ouvidos. Um por um, começou a se calar.
Um dos meus orgulhos em sala de aula, sempre foi conseguir manter o respeito. Não é medo, e nem amor que sentem por mim.
É algo melhor.
-Bom dia - começo.
Alguns alunos responderam meu bom dia com voz sonolenta e desanimada. Deixo minha pasta e minha detestável pilha de papéis. Só de pensar que passei a madrugada corrigindo tanta estupidez, minha cabeça lateja.
Vou começar o dia fazendo uma pergunta para essas cabeças dorminhocas. Botar o cérebro de vocês para funcionar e pensar em algo além de joguinhos e... saliências. - Eles soltam risadas abafadas e trocam olhares. Me sento na mesa, de frente para todos os meus alunos. Esse ângulo é perfeito para ver todos. - Vocês, com suas cabecinhas pensantes, acham que nascemos bons, ou maus?
Soltam uns burburinhos entre si, e então respondem:
-Nascemos bons. Criança não tem maldade. - diz Vitor.
Mais alguém discorda ou concorda com Vitor? - atiço
As pessoas são corrompidas, elas não são ruins - comenta uma garota de cabelo claro que me encara com uma certa magnitude.
-Bom, muito bom. É isso que adoro nessa sala. Vocês têm opiniões diferentes, e não tem medo de mostrá-las. Não percam isso- sorrio para eles, levantando da mesa e caminhando na sala, passando na frente de carteira em carteira, sentido cada olhar grudado em mim. - Mas segundo Maquiavel somos todos maus. Mesquinhos - olho para meus alunos, para cada rosto expressando diferentes emoções. Solto um sorriso de canto e prossigo - cruéis, traiçoeiros. E que para tirar a prova disso, é fácil. De poder. De poder a ele e você verá. De fato, não nascemos mal. " O homem não é bom nem mau, mas de fato, tende a ser mal." O'Que move as pessoas é aquele pensamento "o'que eu ganho com isso?" Maquiavel defendia o ponto de que a natureza humana é propensa para o mal. E essa ideia é interessante. Para vocês entenderem mais, eu sugiro que leiam um livro que ele fez: "O príncipe". Eu achei interessante a ideia de vocês lerem. Tem gente que considera que ele, na realidade, alertou o povo sobre os perigos da tirania- solto uma risota - E tem outras pessoas que acham que ele é manipulador e de ética relativista. Leiam, para debatermos semana que vem. - paro de caminhar e encaro meus alunos cabeça oca.
A garota de cabelos claros está com a mão levantada, reparo que ela tem leves sardinhas em suas bochechas pois o sol atravessa a janela e bate em seu rosto e cabelo deixando-o com o aspecto brilhoso. Forço para lembrar o nome dela, mas, falho miseravelmente.
-Fale... - tento lembrar seu nome novamente, mas sem sucesso.
O'Que seria ética relativista?
Hum... - penso na forma mais simples de explicar - Traduz-se basicamente na consideração de que o meu juízo moral não é superior ao dos outros e como tal não o devo impor. o relativismo ético não é nada mais que a postura que cada pessoa toma em determinada situação com base na sua ética. Pois cada pessoa possui um ponto de vista diferente, não é mesmo? sendo assim a ética de cada pessoa relativa. Por favor mocinha, poderia escrever o nome dos presentes na sala? - Peço para a menina de cabelos claros que me encara com seus olhos semi cerrados.
-É Margo
-Claro, poderia fazer isso para mim, Margo? - solto um sorriso desajeitado, pois minha memória não é lá essas coisas para nomes.
Sem dizer mais nada, a garota abre seu estojo, pega uma caneta com bichinhos na ponta e olha ao redor. Começa a escrever e me entrega o papel. Um papel com linhas rosas contendo uma letra caprichosa e redondinha.
Vejo bolinhas de papel voando pela sala, enquanto leio os nomes, mas ignoro.
Margo
Lucas
Ana
Anna
Laura
Vítor
Anny
Jaime
Fernando
Andressa
Adriano
Carlos
Victor E.
João
Felipe
Gustavo.
-Obrigada Marg...
O sinal toca antes de eu terminar. Nem percebi como o tempo voava.