Uma estrada de terra batida serpenteava em meio a um bosque de arvores ralas de folhagens tão negras como a noite. Os primeiros brilhos opacos do amanhecer já se projetavam no céu, ainda que as estrelas e a lua cheia o tomasse de maneira absoluta, enaltecidas pela lua menor que raiava em sua fase crescente, quase que engolida pela presença colossal de sua parceira. Numa curva da escarpa, uma carruagem seguia oeste a dentro num coaxar em sincronia a pedras e buracos que lançavam pra cima e para baixo as rodas decrepitas, que por algum milagre se mantinham inteiras e conectadas. Farrapos servindo como porta na traseira balançavam a força do vento enquanto volta e meia se separavam, revelando dois homens em seu interior. Se algum curioso ou corajoso o bastante se aproximasse daquele decrepito amontoado de madeira isolado com farrapos sujos, veria as correntes grossas, presas a tornozeleiras viçosas, a primeira vista quase que fundidas ao redor das pernas dos homens adormecidos. As tabuas estralavam e ringiam a cada golpe das rodas contra valetas abertas pela chuva forte.
Se o peregrino obstinado seguisse junto a carruagem para além da longa curva, seria incrustado pela neblina espessa que se elevava da terra num baixio, trazendo o gosto amargo da necrópole de arvores apodrecidas aos seus lábios, naquele ponto provavelmente ressequidos pela caminhada. Na depressão profunda da escarpa, notaria um gemido rumoroso oriundo dos lábios de um dos prisioneiros, ao golpe de um buraco negligenciado pelo insensível condutor sombrio, que passara demasiado rápido pelo terreno acidentado. Tal prisioneiro usava um gibão verde, adornado com botões de prata de gola em V, calças de cetim e botas de couro negro; além de uma boina de formato inconfundível, escondendo parte da cabeleira loira encaracolada.
Veria por fim, Eldred abrir seus olhos verdes com dificuldade, sentindo as bochechas sovadas como pães e as costas inchadas. O rosto fervilhava numa dor incessante, como se adormecido junto a um travesseiro de urtigas. Se sentou penosamente, atordoado pela dor e náusea. Passou-se um bom tempo ate se dar conta das mãos e pés atados. A carruagem balançava, pulava e tremia de tal maneira que ate os olhos não conseguiam se fixar diante dele para que enxergasse com clareza, embora lembrasse que a visão turva pudesse resultar da bebedeira desenfreada da noite anterior.
Um vinte ou trinta solavancos da carroça, dirigiu seus olhos ao único ocupante além dele, um homem magro de tez cinzenta e feição abatida, acometido de lacerações pelo corpo. Vestia nada mais que um manto sujo. Eldred tentou lhe chamar a atenção, mas o homem parecia estar num sono tão profundo que sua garganta poderia ser cortada e acordaria no reino dos mortos antes que se desse conta de seus apelos. Ainda sim, o chamou tão veementemente e em tons cada vez mais altos que o homem acabou abrindo os olhos numa lentidão mórbida a ponto de duvidar se as pálpebras não tivessem sido coladas.
-OH, Finalmente! achei que pudesse estar morto. Não há de me culpa meu caro, uma vez que seu corpo não apresenta o mais saudável dos perfis, ouso dizer ate de um homem vivo. De toda forma, aparentemente estamos igualmente acometidos pela mesma infeliz situação- Se interrompe ao analisar os arredores- E gostaria de discutir oque diabos é isso!
O homem reteve o olhar de soslaio, enquanto os grãos dos olhos tremiam grotescamente. Parecia ainda estar num estado letárgico e as palavras de Eldred davam a impressão de se dissolver por um dos ouvidos e ser arremessados pelo outro floresta adentro sem o mínimo de esforço em ser retidas pelo cérebro.
-Me diga algo homem! Pra onde estamos indo e quem diabos nos amarrou?
A pergunta causou um efeito compulsivo, uma vez que a feição do prisioneiro transpareceu que o entendimento havia retornado aos olhos ate então sem vida. Esperava que ao despertar da letargia o companheiro lhe fornecesse a tranquilidade do esclarecimento, mas tudo que se sucedeu fora nada mais que um pandemônio, uma vez que começara a se debater loucamente e se arremessar contra a parede feito um condenado diante da guilhotina. Ainda que a mordaça o calasse, os gritos que lançou foram tão altos que o gemido rouco e acentuado de desespero escapou pela espessa camada de pano, fazendo Eldred estremecer. Os olhos do homem reluziam e quase saltavam das orbitas no mais amargurado e intenso desespero, se retorcendo feito uma cobra ferida.
-Oque esta fazendo? Acalme-se! Mas que merda.
A carruagem se reteve logo que as batidas contra as tabuas se tornaram altas o bastante para sobrepujar os sons das rodas frouxas e do casco dos cavalos. Pararam numa intercessão da estrada onde as arvores encobriam toda e qualquer raio do luar. Uma figura disforme parou além das cortinas esfarrapadas, não havia duvida de que fosse o condutor do maldito transporte, mesmo que o delimitar de sua forma dificilmente o colaria a par deste trabalho. Levou a mão ate o rosto do lunático e a puxou para perto de si. O medo havia contagiado Eldred e pareceu ampliar o cheiro fétido da figura esguia que havia se retido a sua frente. O gesto rude não surtira efeito e o prisioneiro pareceu ter sido marcado com ferro quente ao se dar conta de quem agarrava-lhe a face, oque acabou resultando num soco tão forte no rosto que um som gutural de ossos quebrando pode ser ouvido. A violência tomou os pensamentos de Eldred e fez com que seu corpo se retraísse involuntariamente, mas não deixou que as palavras lhe escapassem diante da inquietação.
-Quem é você? Qual seu proposito em me ter imobilizado? E por Odin, para que buraco pretende me arrastar? -A resposta fora nada mais que um ranger de dentes, seguido de uma cusparada de desdém.
-Maldito! Exijo saber oque se passa, tenho deveres de extrema importância e as consequências que caíram sobre você serão pesadas...
Antes que as consequências pudessem ser enumeradas de menor gravidade para maior, a figura de ombros largos soprou um pó contra seu rosto, lacrimejando seus olhos de imediato. Ao levar as mãos ao rosto seu corpo amoleceu como se os ossos subitamente houvessem se tornado mel, e desabou.
"Osmund, seu desgraçado! Os deuses me amaldiçoaram por sua culpa. Tenho certeza de que foi você que convenceu nosso pai a me mandar nessa viagem amaldiçoada..."
A consciente se esvaia rápido, os sons da carroça voltaram como antes. Enquanto sucumbia ao sono profundo, lembrou-se das palavras de seu irmão, ressoando tão fortes como nunca antes.